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André de Leones: 'O patriotismo nunca trouxe nada de bom'

Em entrevista a Adérito Schneider, escritor comenta o novo romance, 'Vento de queimada', que ele chama de 'pequi noir'


25/08/2023 04:00 - atualizado 25/08/2023 00:27
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André de Leones
André de Leones: "Isso de "pequi noir" é mais uma brincadeira que faço. Mas gosto muito de estabelecer e sublinhar contrastes, e poucos países são tão convidativos para esse tipo de expediente quanto o Brasil" (foto: Divulgação)
André de Leones é um escritor goiano radicado em São Paulo. Nasceu em Goiânia, em 1980, e cresceu em Silvânia, no interior de Goiás. Reside na capital paulista há mais de uma década. Ostenta uma carreira literária de ao menos 17 anos, considerando o ano em que venceu o Prêmio Sesc de Literatura com seu romance de estreia “Hoje está um dia morto” (Record, 2006). Publicou também o livro de contos (e uma novela) “Paz na Terra entre os monstros” (Record, 2008) e os romances “Como desaparecer completamente” (Rocco, 2010), “Dentes negros” (Rocco, 2011), “Terra de casas vazias” (Rocco, 2013), “Abaixo do paraíso” (Rocco, 2016) e “Eufrates” (José Olympio, 2018), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Oceanos. 

Além disso, Leones é autor da obra infantojuvenil “Daniel está viajando” (Quase Oito, 2019) e participa de diversas antologias brasileiras e no exterior. Ele acaba de publicar seu sétimo romance, “Vento de queimada” (Record, 2023), que ele mesmo define como um “pequi noir”. A seguir, a entrevista do autor ao jornalista e escritor goiano Adérito Schneider, especialista na obra de Leones, a respeito do novo livro e de seu trabalho.
 
 
Adérito Schneider
Especial para o EM
 
Tive a impressão de que “Vento de queimada” é um romance em que você faz espécie de balanço de sua carreira literária. Tem Silvânia (cidade goiana) com suas três escolas católicas de “Hoje está um dia morto” (sua publicação de estreia) e, como você mesmo disse em outra ocasião, a gênese do romance está no conto que dá título ao livro “Paz na Terra entre os monstros”. Além disso, você mesmo afirma trabalhar nessa obra com a falsa dicotomia entre “mundo” e “submundo” que começou a desenvolver em “Abaixo do paraíso” e o romance tem um final que aponta para recomeços possíveis, que você mesmo ressalta como algo que marca “Dentes negros” (que aparece numa cena de pesadelo em “Vento de queimada”) e “Terra de casas vazias”. É isso mesmo? Você está neste momento de fazer um balanço da trajetória como escritor?
Talvez, mas não em um nível consciente. Sei que em todos os meus livros sempre levo alguma coisa dos anteriores. Aquele em que fiz isso de forma mais consciente foi “Abaixo do paraíso”, no qual há citações (explícitas ou implícitas) de tudo o que eu havia publicado até então. O que acontece é que, de uns anos para cá, o meu processo criativo se tornou menos linear. Antes, eu tinha uma ideia e trabalhava exaustivamente nela e em torno dela, sem desvios ou distrações, do começo ao fim do processo. Era um processo “limpo”, reto. Hoje, tenho uma infinidade de ideias que se atropelam e atravessam, coisas iniciadas e abortadas e resgatadas, e tem sido cada vez mais difícil amarrar os projetos em meio a essa confusão. Consegui com “Eufrates” e “Vento de queimada”. Terminei de escrever “Vento de queimada” há dois anos e, desde então, não consegui nenhuma “amarração” satisfatória. Escrevi as primeiras versões de um “prequel” (sobre a viagem de Garcia de 1965-66), mas não parece certo, não parece bom, tanto que o engavetei. Tentei e tento flertar com coisas distantes desse universo, mas também não deu liga, algo sempre parece deslocado, fora do tom, fora do prumo. Não é que eu esteja bloqueado. Tenho ideias e escrevo quase todos os dias. Só não tenho escrito nada que me pareça auspicioso.

Não pela primeira vez, seu romance é uma constelação de cidades. Desta vez, em especial Goiânia e cidades do interior goiano, Brasília e cidades satélites e São Paulo (e Santos). Naturalmente, aqui temos uma queimada (uma série de assassinatos) que se alastra com o vento por esses territórios, num período de seca. A protagonista (Isabel) é tanto vítima de incêndio criminoso quanto algoz, ou seja, o próprio fogo que queima e mata (embora ela também se “purifique” com o fogo, em alguma medida). Mas, na primeira entrevista que fiz contigo, cerca de três anos atrás, você me disse que foi “meio nômade até os trinta anos”. Qual é a relação deste “road movie” de Isabel com sua própria vida e as cidades nas quais viveu e vive?
Gosto mais da expressão “road novel”. Respondendo à pergunta, a relação é completa. Como não me canso de dizer, só consigo escrever histórias que se passem em lugares nos quais já vivi ou estive por um certo período de tempo.

Você resume “Vento de queimada” como um “pequi noir”, mas flerta explicitamente também com outro gênero: o western (ou faroeste – ou bangue-bangue, para ser mais claro). Num determinado trecho do romance, chega a falar até mesmo em “volta do cangaço”. Como foi trabalhar com essas referências, flertando com esses gêneros num trânsito entre Goiânia, uma metrópole roceira; Brasília, a capital (planejada) do país; São Paulo, a maior e mais cosmopolita metrópole brasileira; e as cidades do interior goiano, ou seja, o “interior do interior”?
Isso de “pequi noir” é mais uma brincadeira que faço. Mas gosto muito de estabelecer e sublinhar contrastes, e poucos países são tão convidativos para esse tipo de expediente quanto o Brasil. Acho que isso ajuda, também, a debelar conceituações falhas como “regionalismo” e afins. A questão, para mim, é lançar esse olhar de dentro para fora, e não o contrário. Embora viva em São Paulo há tempos, o meu olhar é e sempre será centro-oestino. Não digo que um paulistano da Mooca não possa escrever um romance situado em Bonfinópolis. Não caio nessa cretinice. Todo escritor é livre para escrever sobre o que quiser, do jeito que quiser e de onde estiver. Mas o olhar do paulistano sobre Silvânia será diferente do meu olhar por motivos óbvios. E é preciso sublinhar isso: diferente, mas não necessariamente melhor ou pior.

Num determinado trecho de “Vento de queimada”, é dito que o Brasil é “um amontoado de países estrangeiros. Para onde quer que se olhe. Uma terra estrangeira depois da outra”. E a narrativa começa em Goiás (o município, antiga capital, vulgarmente conhecida como Goiás Velho – ou Goiás “Véi”, para ser mais exato), num feriado, em um evento religioso e turístico (a Procissão do Fogaréu), e a primeira frase do romance é justamente a fala de um gringo (estadunidense) com um “levíssimo sotaque estrangeiro”. Você se sente um estrangeiro em Goiás? Você se sente um alienígena no Brasil?
Acho que os bairrismos e o patriotismo nunca trouxeram nada de bom. Não chego ao extremo de afirmar (como faz um personagem do romance) que o patriotismo é uma doença mental, mas coisa boa não é — vide o uso que os sistemas totalitários à esquerda e à direita fazem desse tipo de sentimento, vide a que o patriotismo levou alguns brasileiros em tempos recentes (em alguns casos, e com justiça, à cadeia). As mazelas do Estado moderno já foram devassadas por gente muito mais capaz do que eu, como o Giorgio Agamben do “Homo sacer”. Agora, creio que o estranhamento é algo que sinto no Brasil ou fora dele. É algo que sempre senti, uma espécie de inadequação essencial. E ela certamente me ajuda a escrever, pois cria ou alimenta um distanciamento que me parece imprescindível para a minha criação literária.

Tenho a sensação de que “Vento de queimada” é o seu romance mais goiano, mesmo que muitas de outras de suas narrativas estejam ambientadas (ainda que parcialmente) em Goiás. Mais do que isso, tenho a impressão de que esse é seu romance mais conscientemente goiano. As dezenas de cidades do interior, Goiânia, a culinária, a música, os times de futebol, as festas populares, o sotaque, as expressões e gírias... Você concorda com isso? Caso sim, o que motivou essa postura? E como foi trabalhar com essa “goianidade”?
Talvez seja mesmo o meu livro mais goiano, junto com “Abaixo do paraíso”. A história a ser contada é sempre o principal motivador. A partir do momento em que delimito a ambientação, muita coisa é decidida, por assim dizer. É uma parte do trabalho de que gosto muito, isso de pesquisar sobre fatos e curiosidades locais, como foi a Procissão do Fogaréu naquele ano, quem ganhou aquele Vila vs. Goiás etc. A sensação de frequentar certos lugares e festividades é algo que não se esquece, e foi relativamente fácil encontrar palavras para descrever isso, sempre em função de cada personagem. Eu crio essas pessoas e tento ver as coisas pelos olhos delas. Às vezes, o que elas veem coincide com o que eu vejo; na maior parte do tempo, não, e é aí que as coisas ficam interessantes.

O romance é primordialmente ambientado em 1983, anos finais da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), e a questão da ditadura e dos militares está constantemente presente, mas não é exatamente o foco. O que motivou essa escolha focal?
Nos últimos anos, falou-se muito sobre o fim da Nova República e a instauração sabe-se lá do quê. Não acredito que esteja morta, mas que tenha sido aprimorada para o mal, com seus vícios incrementados graças a figuras como o atual presidente da Câmara dos Deputados. Quis voltar ao período imediatamente anterior à redemocratização para ressaltar como esses vícios estão presentes desde sempre. O livro é, também, uma obra marcadamente decadentista. Situar uma obra nos estertores da ditadura militar me pareceu uma forma de ressaltar esse aspecto. Por fim, muito do que acontece na narrativa não seria possível (ou não se daria daquela forma) após o advento da telefonia móvel. Aliás, as dificuldades de comunicação (e não apenas por motivos tecnológicos) são muito importantes para o desenrolar da história, e realçam a sensação de que, em diversos momentos, Isabel está encurralada e incomunicável.

Mais uma vez, seu romance tem uma protagonista feminina. De alguma maneira, sinto que você faz (com qualidade) personagens femininas complexas (assim como a Patricia Melo é excelente na construção de personagens masculinos – e também a Ana Paula Maia, para ficar em apenas dois exemplos contemporâneos). É claro que mulheres podem discordar radicalmente do que estou afirmando e me acusarem de estar falando uma enorme besteira. Mas, enfim, gostaria que você falasse um pouco dos motivos para escolher uma mulher como protagonista deste romance “noir” e de que forma isso foi construído.
Volto àquele lance dos contrastes, e de como gosto deles. Queria que a protagonista fosse uma pessoa vulnerável, fisicamente franzina, pequena. Pensei que isso contrastaria bem com os muitos antagonistas, todos maiores e ameaçadores, poderosos, fortes: uma Davi cercada por vários Golias, uma mulher cercada por “cidadãos de bem”. Então, foi uma questão de incrementar os motivos que constituem e alavancam a narrativa.

Como disse em nossa primeira entrevista, percebo a crise da masculinidade – que é um tema central em boa parte da literatura brasileira contemporânea – muito forte em sua obra. Em “Vento de queimada”, temos uma pistoleira que atira nos bagos de um jagunço arruaceiro, um homem impotente que sonha com a mulher castrando-o com uma tesoura, um velho pedófilo de pau murcho... De que maneira essa questão é importante para você, como autor?
“Vento de queimada” foi escrito durante o governo Bolsonaro, quando a toxicidade machista chegou a níveis insuportáveis. Foram anos em que senti muita raiva. Todos os dias. Era exaustivo, mas a escrita me ajudou a canalizar essa raiva. Criar personagens deploráveis e colocá-los em situações como as que você citou foi algo terapêutico.

Seu primeiro romance (“Hoje está um dia morto”) foi adaptado para os cinemas e virou o filme (longa-metragem) “Dias vazios”, dirigido pelo cineasta (goiano) Robney Bruno Almeida. Li que “Vento de queimada” será adaptado para o cinema pela Conspiração Filmes (com sede no Rio de Janeiro). Como é para você ver seus romances virando filmes, especialmente considerando que você é um cinéfilo?
Acho ótimo. E torço para que as pessoas que adaptarem “Vento de queimada” sintam-se tão livres quanto o Robney na hora de lidar com o livro. Embora repleto de peripécias e de ação, é também um livro que se passa muito na cabeça de Isabel. Estou curioso para saber como vão lidar com isso, como traduzirão isso cinematograficamente.

Para fechar, volto ao começo: qual é o balanço que você faz de sua carreira até aqui? Como enxerga o atual momento da literatura brasileira (e do mercado editorial brasileiro) e como se enxerga no meio disso tudo?
Estou satisfeito com o que produzi até aqui e com a recepção dos meus livros. Fico feliz que um grande grupo editorial se disponha a publicar meu trabalho. Olhando ao redor, parece-me haver uma diversidade cada vez maior de vozes e estilos, o que é sempre ótimo. O mercado editorial sofreu diversos baques em anos recentes, com os calotes e a quebradeira das grandes redes e a pandemia, mas parece se recuperar aos poucos. No Brasil, tudo é muito incerto, mas a proliferação de editoras menores, que apostam em nichos específicos, é algo a se celebrar. Quanto mais, melhor. Quanto maior a diversidade, melhor.


*Adérito Schneider é jornalista, escritor, roteirista, cineasta e professor e pesquisador de Cinema e Audiovisual do Instituto Federal de Goiás (IFG) – Campus Cidade de Goiás. É um dos autores e organizador das antologias “Cidade sombria” (MMarte Produções / Ideia de Girino, 2018) e “Cidade infundada” (martelo casa editorial / Ideia de Girino, 2022) – este último em parceria com a escritora Fernanda Marra – e autor de “O rastro da lesma no fio da navalha” (Patuá, 2022). 


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