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Estado de Minas PENSAR

Livro reúne reflexões sobre trajetória da professora Eneida Maria de Souza

Coletânea presta homenagem para a autora de estudos influentes e uma das maiores especialistas em Mário de Andrade e Pedro Nava, morta em 2022


11/08/2023 04:00 - atualizado 10/08/2023 23:53
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Eneida Maria de Souza
Eneida Maria de Souza, autora de ensaios como "Tempo de pós-crítica", "Janelas indiscretas" e "Narrativas impuras": livro-homenagem será lançado hoje na Livraria Quixote, na Savassi (foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press - 22/6/10)

 

No entrelaçamento entre a arte, a cultura e a literatura, em enfrentamento contra o elitismo avesso às manifestações populares marginalizadas pela estética literária hegemônica importada, a professora emérita da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (Fale-UFMG), Eneida Maria de Souza, construiu uma carreira acadêmica de mundos plurais tão vasta quanto o desafio de textos diante da vida. Para além de ter sido uma das fundadoras do doutorado em Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFMG – ponto de inflexão nas pesquisas de teorias literárias e estudos culturais, pela transdisciplinaridade com a filosofia, a história, a psicanálise, as artes plásticas e a sociologia –, protagonizou uma travessia entre objetos literários e culturais, transformando a prática crítica no Brasil e despontando como um dos expoentes da teoria literária, da literatura comparada e dos estudos culturais. 

 

Para Eneida, os espaços de saberes são marcados pelo “nomadismo” e pelo “trânsito”, em permanente movimento e interação, em claro contraponto à lógica binária inflexível das fronteiras delimitadas pelo “saber puro do estudo do objeto”, que opunham a teoria da literatura aos estudos culturais. De Jorge Luis Borges a Mário de Andrade  e Pedro Nava; das biografias à ficção e à teoria literária; da canção popular de Carmen Miranda, Caetano Veloso e Chico Buarque aos folhetos de cordel, artesanato e universos do cinema e da fotografia, foi uma profunda e ousada imersão, de sobreposições e deslocamentos teóricos, nessa passagem do estruturalismo para o pós-estruturalismo – das obras literárias aos aspectos textuais – descortinando na intertextualidade uma diversidade de estradas, até então pouco trilhadas pela academia brasileira.  

 

Vítima de um câncer do endométrio descoberto tardiamente, Eneida Maria de Souza, considerada uma das maiores especialistas brasileiras em Mário de Andrade e Pedro Nava, faleceu aos 78 anos, em 1º de março de 2022, no centenário do modernismo brasileiro. Para homenageá-la, 22 acadêmicos de 11 instituições de ensino e pesquisa discorreram em textos de diferentes naturezas, distintos aspectos teóricos e pessoais do trabalho e obra da professora, reunidos e organizados por Roberto Said, professor de Literatura da UFMG e Wander Melo Miranda, professor emérito da UFMG, em “Uma crítica cult” (Editora Autêntica). 

 

O lançamento de “Uma crítica cult” será hoje, na Livraria Quixote, às 19h. O título é referência à obra de Eneida Maria de Souza, “Crítica cult”, publicada em 2002 (Editora UFMG). À época, o livro trouxe a então emergente polêmica no meio acadêmico em torno da transculturação, modernidades tardias, políticas identitárias e territórios transdisciplinares, que propuseram a revisão de teorias no campo das ciências humanas, ao mesmo tempo em que ampliou o diálogo da crítica literária nacional com a latino-americana. Nas palavras de Wander Melo Miranda, “Crítica cult” influenciou uma geração de pesquisadores, em sua maneira “muito imprópria/própria de filiação aos estudos culturais, sem abrir mão da perspectiva literária, fazendo dela um campo de observação especial das práticas sociais e artísticas entre nós”.

 

Além de “Crítica cult”, Eneida é autora de dezenas de livros, entre os quais, “Pedro Nava: o risco da memória” (Funalfa, 2004) e “O século de Borges” (Editora Autêntica, 2009). Organizou diversas publicações, como “Modernidades tardias” (UFMG, 1998) e “Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa – Correspondências” (Edusp/Petrópolis, 2010). “Narrativas impuras” (Cepe Editora/2021), última obra publicada, é considerada o seu testamento literário: traz coletânea de ensaios sobre Mário de Andrade, contribuindo para a releitura da história do modernismo em suas contradições. “É, desde o título, uma afirmação da heterogeneidade literária e da interação entre várias manifestações discursivas, que vão da poesia ao romance, da fotografia ao cinema, da canção popular à teoria cultural. Neles se mostra uma intelectual consciente de seu papel social, que tem na teoria um ponto de observação privilegiado”, sustenta Wander Melo Miranda, no texto “À mestra, com carinho”, que integra “Uma crítica cult”. 

 

Em frentes múltiplas de trabalho e com o foco na valorização da produção intelectual de Minas Eneida Maria de Souza – que também foi presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) – foi uma das fundadoras na UFMG, em 1989, do “Acervo de Escritores Mineiros”. Sediado na Biblioteca Universitária, reúne cerca de 25 mil volumes e abriga teses e materiais para a pesquisa, como fotografias, manuscritos e correspondências de escritores como Henriqueta Lisboa, Cyro dos Anjos e Murilo Rubião. Em seus últimos anos de vida, Eneida envolveu-se intensamente com o Projeto Minas Mundo, rede de pesquisadores que propõe uma revisão dos sentidos do modernismo e dos seus legados na cultura brasileira. 

 

 

Quem está no livro

 

Ana Chiara, professora de Literatura da UERJ

Ana Lúcia Almeida Gazzola, professora Emérita da UFMG

André Botelho, professor de Sociologia da UFRJ

Eliane Marta, professora Emérita da UFMG

Eneida Leal Cunha, professora de Literatura da UFRJ

Marcelino Rodrigues da Silva, professor de Literatura da UFMG

Márcia Marques de Morais, professora de Literatura da PUC-Minas

Marcos Antonio de Moraes, professor de Literatura do IEB-USP

Marília Rothier Cardoso, professora de Literatura da PUC-RJ

Myriam Ávila, professora de Literatura da UFMG

Nádia Battella Gotlib, professora de Literatura da USP

Rachel Esteves Lima, professora de Literatura da UFBA

Rafael Lovisi Prado, Doutor em Estudos Comparados (UFMG)

Raul Antelo, professor de Literatura da UFSC

Reinaldo Marques, professor de Literatura da UFMG

Roberto Said, professor de Literatura da UFMG

Roniere Menezes, professor de Literatura do CEFET-MG

Sandra Regina Goulart Almeida, reitora da UFMG

Silviano Santiago, professor Emérito da UFF, escritor

Telê Ancona Lopez, professora de Literatura Brasileira do IEB-USP

Vera Casa Nova, professora de Literatura da UFMG

Wander Melo Miranda, professor Emérito da UFMG

 

“Uma crítica cult - Em memória de Eneida Maria de Souza”

 

  • De Roberto Said e Wander Melo Miranda (organizadores)
  • Editora Autêntica
  • 304 páginas
  • R$ 67,90 (livro); R$ 47,90 (e-book)
  • Lançamento hoje, na Livraria Quixote, às 19h

 

 

Trechos dos depoimentos

 

“Guerreira intrépida e visionária, mestra brilhante e inspiradora, ensinou-me com seu exemplo a coragem dos caminhos “menos trilhados” e mais ousados (...) Dela carrego comigo a inspiração persistente para pensar o campo da literatura ampliado pelos estudos culturais, indo além da literatura para abordar questões do cinema, da música, das artes plásticas, e a curiosidade, a sensibilidade e a criatividade indispensáveis para o trabalho acadêmico criterioso, reflexivo e transformador da prática crítica (...) Como muitas mulheres de fibra que ousaram ocupar espaços públicos e ter voz, Eneida “cumpriu a sina, inaugurou linhagens, fundou reinos”. Uma mulher, de fato, “desdobrável”, como aquela do renomado poema de Adélia Prado, “Com licença poética”.  

 

Sandra Regina Goulart Almeida (reitora da UFMG)

 

 

“Participante ativa de uma geração de críticos com formação acadêmica efetuada na passagem do estruturalismo para o pós-estruturalismo, incluindo imersão não menos decisiva na psicanálise, ela transitou entre saberes e disciplinas, tendo sido umas das protagonistas entre nós da polêmica virada que abre o campo de pesquisa dos objetos literários para os culturais. Da leitura estrutural à intertextualidade, do prazer do texto ao biografismo e aos arquivos literários, da análise sociológica à desconstrução, de Mário de Andrade ao audiovisual contemporâneo, as sobreposições e os deslocamentos teóricos realizados em seu percurso cifram inquietudes e querelas constitutivas do meio literário nas últimas cinco décadas no Brasil. Revelam um investimento analítico concentrado em uma temporalidade disjuntiva que, incerta em seus marcos e cambiante espacialmente, condensa os complexos processos de esgotamento dos parâmetros modernos, até então ordenadores dos campos políticos e culturais no Ocidente.” 

 

Roberto Said, professor de Literatura da UFMG, e Wander Melo Miranda, professor emérito da UFMG 

 

 

“Ao longo de quatro décadas, Eneida Souza apreciou a cultura brasileira como num caleidoscópio que movia lentamente nas mãos, para apresentar ao leitor desenhos imprevistos, montados pela aproximação de textos e imagens díspares, reunidos na cena crítica sem obediência a qualquer hierarquia ou classificação discursiva. Interpretou o país com olhar astuto e exato, sensibilidade diferencial e a convicção – tematizada muitas vezes nos ensaios – de que estava lidando com algo inapreensível como totalidade e fixidez: o imaginário brasileiro.” 

 

 Eneida Leal Cunha, professora de Literatura da UFRJ

 

 

“Ao escapar desse lugar fixo, a literatura está mais livre para dialogar com outras artes e saberes, para circular social e culturalmente. Torna-se capaz de realizar outras mediações e invenções de mundos ao ser apropriada por e dar voz a diferentes subjetividades, especialmente aquelas subalternizadas e tradicionalmente dela excluídas. Contrariamente a muitos olhares críticos, longe de ver tal deslocamento como algo apocalíptico, como o fim da literatura, para Eneida ele só aumenta a potência da literatura, torna-a mais viva e rica, especialmente ao conversar e mesmo se mesclar com outras linguagens, artes, saberes, abrindo o mundo para uma diversidade de epistemologias. Mas, para tanto, há que relativizar a ideia moderna da autonomia e autossuficiência do literário, em direção a uma perspectiva de pós-autonomia, que movimenta o pensamento teórico-crítico da Eneida em direção à crítica (auto)biográfica e aos arquivos. Disso resulta, acredito eu, o seu olhar atilado para destacar e analisar os diálogos da literatura com o popular, a música, a fotografia, o cinema, a arquitetura etc., como evidenciam vários de seus ensaios.” 

 

Reinaldo Marques, professor de Literatura da UFMG

 

 

“(...) Eneida usa a palavra “ponte” ao falar de relações não hierarquizantes entre o saber nacional e o estrangeiro. Essa palavra torna-se mais tarde um componente importante de sua teorização sobre a crítica biográfica, na expressão/conceito “pontes metafóricas”. A entrada da biografia nos estudos de Souza não se dá em data precisa ou texto preciso (...) Se todas as grafias nascem, em última análise, do desejo, a bio-grafia, como escrita da vida, deve atentar para a economia pulsional, mais do que à linha do tempo que liga nascimento e morte. Em ensaio de 1991, entra em consideração no trabalho de Eneida a palavra “biografema”, feliz criação de Barthes que pressupõe a independência da vida com relação ao calendário.”

 

Myrian Ávila, professora de Literatura da UFMG

 

 

“O amplo conhecimento da história da literatura e da teoria literária, facilmente comprovável com a leitura de seus vários textos de cunho metacrítico, normalmente se faz acompanhar por um interesse pedagógico, o que a leva a utilizar uma linguagem simultaneamente requintada e de fácil legibilidade. Esse aspecto é muito provavelmente o responsável pelo sucesso de seus livros entre os jovens estudantes de todo o Brasil. Afinal, quem deseja seguir a história da crítica brasileira produzida a partir da década de 1970 e compreender, sem maiores dificuldades, os pressupostos teóricos que conformam seus movimentos encontra farto material em sua obra, especialmente em “Traço crítico” (1993), “Tempo de pós-crítica” (1994; 2007), “Crítica cult” (2002), “Janelas indiscretas” (2011) e “Narrativas impuras” (2021).” 

 

Rachel Esteves Lima, professora de Literatura da UFBA 


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