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Estado de Minas PENSAR

Antropólogo Luiz Eduardo Soares leva experiência em segurança para a ficção

Com ritmo cinematográfico, história de "Enquanto anoitece" percorre cinco décadas na vida de homem que tenta esquecer passado na vida do crime


07/07/2023 04:00 - atualizado 07/07/2023 00:32
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Luiz Eduardo Soares
"A literatura de certa forma nos liberta da sociologia porque prescinde de respostas, se alimenta do assombro e da perplexidade, do reconhecimento de nossa ignorância e de nossa finitude. Encantamento, beleza e enigma andam lado a lado" (foto: ARQUIVO PESSOAL)

 

“'Bom dia, Raimundo, se bem que o dia não tá bom pra ti. O bicho tá pegando em Rio das Pedras. Guerra entre milícias.'

 

Raimundo caminha com uma única preocupação em mente, sequer ver o mar e o horizonte que o ilumina. Mochila às costas, liga o celular.

 

'Luiz, alô, Luiz, tá dormindo? É teu pai. Tu tá bem? Ligue pra mim.'

 

Segue rumo ao ponto da van que o levará a Rio das Pedras, favela carioca da Zona Oeste. Atravessa uma rua perpendicular à avenida Delfim Moreira. No ponto, ouve o que as outras pessoas falam entre si, agitadas.

 

A van para e o cobrador abre a porta lateral: 'Não vamo entrar em Rio das Pedras. Todo mundo vai ter de saltar perto ali da venda do Costa. A barra tá pesada.’

 

Raimundo, já na van, telefona.

 

'Luiz, atende, Luiz. É teu pai, ligue pra mim.’

 

Na entrada principal da favela, estão viaturas, caveirão e policiais militares armados até os dentes. Impedidos de seguir adiante, os moradores que voltam do trabalho noturno vão se aglomerando, exautos. É dia da vendinha da Costa faturar.

 

Um policial tenta ser gentil:

 

'Não tá seguro pra entrar. Tem que esperar, as outras entradas também tão bloqueadas.’

 

Um rapaz chega no mesmo momento que Raimundo e lhe pergunta:

 

‘Outra milícia invadiu ou é luta interna do pessoal daqui mesmo?’

 

Raimundo ergue as sobrancelhas e avança o lábio inferior, não sabe. Empunha o celular.” 

 

 

O domínio das milícias na favela Rio das Pedras comandando e ao mesmo tempo atormentando a vida dos protagonistas – Raimundo e Luiz – e demais moradores é uma das fortes referências de “Enquanto anoitece”, novo livro do cientista político, antropólogo e escritor fluminense Luiz Eduardo Soares, um dos maiores e mais respeitados especialistas em segurança pública no Brasil. É autor e coautor de duas dezenas de livros com análises profundas sobre o tema, que incluem o contundente e bem-sucedido “Elite da tropa”, em parceria com André Batista, Rodrigo Pimentel e Claudio Ferraz, que chegou ao cinema como “Tropa de elite”, estrelado por Wagner Moura como o polêmico capitão Nascimento. Luiz Eduardo Soares ocupou também importantes cargos públicos ao longo das últimas décadas, inclusive a Secretaria Nacional de Segurança Pública no primeiro governo Lula. Com a vasta experiência, ele faz um mergulho na ficção com o romance que será lançado hoje no Rio de Janeiro (às 19h, na Blooks Livraria, Praia de Botafogo, 316, Espaço Itaú de Cinema), pela editora Todavia. 

 

O livro conta a trajetória de cinco décadas de Raimundo Nonato, a partir da década 1950 no Nordeste. Aos vinte anos, ele é trabalhador rural, cai nas garras do patrão depois de matar o homem que abusou de sua irmã e acaba integrado ao um bando de jagunços. Já na década de 1970, ainda como jagunço, cai em outra enrascada, desta vez entre militares, em plena ditadura, ao proteger sua madrinha beata e com isso facilitar a fuga de um comunista procurado. Banido, se torna matador de aluguel e entrelaça sua vida a inúmeras pessoas, principalmente, à prostituta Linda, que se torna sua mulher.  Tempos depois, em 2005, Raimundo largou a vida do crime, é porteiro no Leblon, no Rio de Janeiro. Está preocupado em garantir um futuro digno para Luiz, seu filho adotivo. Esse objetivo e essa alegria se consumam quando o filho é aprovado em medicina na universidade federal. Mas uma grande mancha no passado de Raimundo envolvendo morte por encomenda e uma tatuagem assombra e confronta as vidas de pai e filho.

 

O argumento e a narrativa de “Enquanto anoitece” são bons e envolventes, embora pareçam roteiro cinematográfico e possam criar impressão de “quero mais” ao leitor que conhece as notáveis e detalhadas obras não ficcionais de Luiz Eduardo Soares sobre o mundo sombrio e violento da segurança pública no país. E também diante de alguns personagens que, mesmo fortes, parecem pouco desenvolvidos ao longo da trama, que tem saltos temporais repentinos que ampliam essa impressão. São cinco décadas sintetizadas em  apenas 160 páginas. À primeira vista, o objetivo final do romance também parece ser o contraponto entre a vida passada de crimes de Raimundo e a vida de trabalhador na favela, em meio às dúvidas de Luiz sobre o passado do pai.

 

Essa impressão de personagens sintetizados e trama acelerada, entretanto, é contestada com argumentos coerentes por Luiz Eduardo Soares. Em entrevista ao Pensar, ele afirma: “Se o romance tem aspectos cinematográficos é porque investi no diálogo entre formas de arte. O risco de confundir registros é compensado pela expansão de horizontes. Acredito que os personagens, suas relações e as respectivas inscrições no espaços e no tempo operam uma espécie de contaminação recíproca e se constróem mutuamente. Nesse sentido, a descrição visual de paisagens e o relato empírico de situações atuam também como flagrantes subjetivos. Por vezes, um traço, um gesto, uma palavra apreendem muito mais do que a economia da forma sugeriria. Menos páginas e menos referências diretas a um personagem ou a uma fonte de conflito podem corresponder a ecos mais fortes e pregnantes, que ressoam na sensibilidade, não necessariamente na consciência. O tempo são muitas formas distintas de compactação, se distende e comprime, conforme filtros da memória se acumulam, sem aviso, compondo diversas camadas de leitura, incitando imaginação e afeto a jogarem seus jogos. De minha perspectiva, o passado não é preparação do presente e a narrativa não corre para chegar à culminância do segmento final. O desfecho, a meu ver, não é o mais importante, até porque talvez seja apenas outra volta do mesmo parafuso, que segue girando em falso sobre o abismo dos acasos. O que há de constante é a violência estrutural de nosso país”, avalia.  “A literatura de certa forma nos liberta da sociologia porque prescinde de respostas, se alimenta do assombro e da perplexidade, do reconhecimento de nossa ignorância e de nossa finitude. Encantamento, beleza e enigma andam lado a lado. Nosso país talvez precise mais da humildade ante o desconhecido do que de explicações”, afirma também Luiz Eduardo Soares.

 

Indagado se as milícias tendem a manter o domínio no Rio, Soares diz acreditar que sim, mas, de novo, cita a literatura: “Na literatura a gente conquista a liberdade de imaginar que talvez não seja necessariamente assim. Um romance se tece com os lapsos, as falhas do real, as incongruências sociológicas, o milagre das metamorfoses. 'Enquanto anoitece' narra a persistência de contradições e as possibilidades de redenção. Por isso, literatura é esse paradoxo: veneno-remédio.”

 

ENTREVISTA / LUIZ EDUARDO SOARES Cientista político, antropólogo e escritor

 

“A literatura é esse paradoxo: veneno-remédio”

 

O livro abrange um período de 50 anos, entre 1955 e 2005. Entretanto, são menos de 200 páginas para abordar um período histórico complexo. A impressão que se tem, inicialmente, é a de um roteiro cinematográfico, com narrativas e personagens muito sintetizados (a beata, Linda, Gregório, por exemplo) ou de uma “pressa” para contar o passado de Raimundo, o protagonista, até chegar ao ponto que realmente interessa: a vida dele na favela e o desfecho de sua vida conturbada com o filho. Houve uma mudança de rumo ao longo do processo de escrita do livro?

Lamento que você tenha tido essa impressão. De meu ponto de vista, curiosamente inverso ao seu, conhecemos mais Linda, Gregório e a Beata do que Raimundo. Se o romance tem aspectos cinematográficos, é porque investi no diálogo entre formas de arte. O risco de confundir os registros é compensado pela expansão de horizontes. Acredito que os personagens, suas relações e as respectivas inscrições no espaços e no tempo operam uma espécie de contaminação recíproca, e se constróem mutuamente. Nesse sentido, a descrição visual de paisagens e o relato empírico de situações atuam também como flagrantes subjetivos. Por vezes, um traço, um gesto, uma palavra apreendem muito mais do que a economia da forma sugeriria. Menos páginas e menos referências diretas a um personagem ou a uma fonte de conflito podem corresponder a ecos mais fortes e pregnantes, que ressoam na sensibilidade, não necessariamente na consciência. O tempo são muitas formas distintas de compactação, se distende e comprime, conforme filtros da memória se acumulam, sem aviso, compondo diversas camadas de leitura, incitando imaginação e afeto a jogarem seus jogos. De minha perspectiva, o passado não é preparação do presente e a narrativa não corre para chegar à culminância do segmento final. O desfecho, a meu ver, não é o mais importante, até porque ele talvez seja apenas outra volta do mesmo parafuso, que segue girando em falso sobre o abismo dos acasos. O que há de constante é a violência estrutural de nosso país.

 

 

O passado de Raimundo como criminoso e a sua a velhice como trabalhador, no caso porteiro, parece pouco comum na vida real, porque, normalmente, quem entra para o mundo do crime dificilmente consegue escapar dele ou precisa mudar de vida. O que impede ou dificulta a remição de pessoas que cometem crimes, mesmo as que cumprem penas? A culpa, a intolerância da sociedade...?

A literatura de certa forma nos liberta da sociologia porque prescinde de respostas, se alimenta do assombro e da perplexidade, do reconhecimento de nossa ignorância e de nossa finitude. Encantamento, beleza e enigma andam lado a lado. Nosso país talvez precise mais da humildade ante o desconhecido do que de explicações.

 

 

No livro e na vida real, as milícias são um “Estado paralelo” mais poderoso nas comunidades do que os próprios traficantes e o Estado legalista. É um assunto muito complexo para definir em poucas linhas, mas as milícias tendem a continuar um problema sem solução nas próximas décadas na realidade das grandes cidades?

Acho que sim, mas na literatura a gente conquista a liberdade de imaginar que talvez não seja necessariamente assim. Um romance se tece com os lapsos, as falhas do real, as incongruências sociológicas, o milagre das metamorfoses. “Enquanto anoitece” narra a persistência de contradições e as possibilidades de redenção. Por isso, literatura é esse paradoxo: veneno-remédio.

 

ENQUANTO ANOITECE

 

  • Luiz Eduardo Soares
  • 160 páginas
  • Editora Todavia
  • R$ 64,90 (impresso)
  • R$ 42,90 (digital) 

 


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