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Estado de Minas PENSAR

Islandês Jón Kalman Stefánsson une crises existenciais e paisagens geladas

Inspirado por poesia e filosofia, autor lança 'A tristeza dos anjos', segunda parte de trilogia e explica como país se tornou celeiro de escritores


16/06/2023 04:00 - atualizado 16/06/2023 00:39
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Jón Kalman Stefánsson
Jón Kalman Stefánsson, autor de "A tristeza dos anjos", segunda parte da trilogia iniciada com "Paraíso e inferno" (foto: https://twitter.com/IceLitCenter)

 

Matheus Lopes Quirino * 

Especial para o EM

 

A Islândia é o país onde se tem mais poetas por metro quadrado no mundo. A frase pode soar explosiva, mas contrasta com o espírito do lugar, cercado por montanhas e neve; características naturais que estão intrinsecamente ligadas à produção literária de nomes consagrados, como Halldór Laxness e Gunnar Gunnarsson, aos seus autores em ascensão, como Jón Kalman Stefánsson, que acaba de lançar no Brasil “A tristeza dos anjos”.  O romance, com tintas de um poeta que evocam a literatura de John Milton e a filosofia de Kierkegaard, narra a peregrinação de um carteiro pelas charnecas e montes nevados cercados pelo Vatnajökull, maior calota polar da Europa, situado no país. 

 

Autor de 15 romances, Stefánsson é dono de uma sabedoria antiga, pois sabe que “o tempo consegue ser um maldito covarde, trazendo-nos tudo para tirar tudo”, escreve logo na abertura de seu novo livro, aqui traduzido por João Reis direto do islandês, idioma que corre o risco de desaparecer, não fosse o esforço dos poetas e preservar a língua natal – uma política nascida do próprio governo, que anualmente concede bolsas a dezenas de aspirantes à literatura. “Por causa dessa afeição [à literatura], temos um número incomum de escritores em tempo integral, comparando com o quão poucos somos”, diz o autor em entrevista. 

 

Com um protagonista imaginativo e leitor de Shakespeare, uma mulher em prantos com o destino e uma dívida com o passado e um velho capitão que amarga seus dias em um condado nevado, Stefánsson faz de “A tristeza dos anjos” muito mais do que uma sequência de “Paraíso e inferno”. Ele confere ao romance emancipação da trilogia ao colocar seus personagens em seus limites, onde estado de espírito, estado físico e paisagem se fundem em um texto que trafega pela filosofia com ecos sutis nas superstições e mitologia nórdica, reflexo da influência das “Sagas Islandesas”, o suprassumo do cânone do país. 

 

Essencialmente poeta (publicou seus três primeiros livros em verso), o escritor islandês tem referências diversas que incluem autores como o Prêmio Nobel de Literatura Knut Hamsun e o cientista showman Carl Sagan, muito popular pela série “Cosmos”. Stefánsson sonhava em ser astrônomo, mas logo percebeu “que aqueles mundos que queria tanto encontrar não estavam no espaço, mas nas palavras”. E revela: “Fecho os olhos e está tudo dentro de mim, o frio, a neve, o clima rigoroso e as pessoas lutando contra isso”.

Confira a entrevista, abaixo. 

 

Chega ao Brasil “A tristeza dos anjos”, que pode ser lido independentemente do primeiro volume da trilogia “Paraíso e inferno”. Como escritor, como o senhor consegue escrever uma obra que, mesmo sendo a continuação de uma primeira história, tem sua independência e originalidade? 

Nunca foi meu propósito escrevê-lo de forma que pudesse ser lido com independência. Quando comecei a trabalhar no primeiro, “Paraíso e inferno”, não pensei em escrever uma trilogia. Achei que seria apenas um livro. Mas quando eu estava no meio disso, percebi que um livro não poderia cobrir todas as coisas que eu tinha [na cabeça] ou suspeitava que estavam por vir. ‘Então, serão dois livros’, pensei… E foi esse o meu pensamento quando comecei em “A tristeza dos anjos”; mas no meio desse processo vi que precisava de mais um livro, que estava escrevendo uma trilogia. Quando estava trabalhando no último, “The heart of man”, fiquei com medo de que o trabalho se desdobrasse por quatro livros… Mas tentei evitar isso. Acho que todos podem ser lidos de forma independente, talvez porque quando escrevo um livro, estou totalmente imerso nele, seu mundo, seus personagens, seu fluxo e atmosfera, que se torna um mundo em si próprio.

 

As personagens do seu romance sofrem as mais difíceis provas climáticas, conforme peregrinam pela paisagem desoladora de montanhas e charnecas, como é transcrever em palavras o poder do frio? 

Eu poderia responder: “Apenas fecho os olhos e estou lá, no frio, na dureza, no fundo da neve, na paisagem de inverno”. Ou “Fecho os olhos e está tudo dentro de mim, o frio, a neve, o clima rigoroso e as pessoas lutando contra isso”. Às vezes tenho a sensação de que enquanto escrevo, também estou compondo música; com minhas palavras, meu estilo e também a estrutura do meu romance – todos esses três, as palavras, o estilo, a estrutura, tornam-se um só corpo, com um mesmo respirar. Ao escrever o primeiro rascunho, escrevo muito mais com meus sentimentos, meus sentidos do que com meus pensamentos; e, portanto, sempre há algo totalmente inesperado surgindo enquanto estou escrevendo; personagens que eu não conhecia, episódios que eu não esperava. Escrever, para mim, é uma aventura, é uma viagem onde estou sempre me perdendo, o que é tão importante quando se escreve um romance; quem nunca se perde, nunca encontrará o caminho.

 

O jornal The New York Times afirmou que, na Islândia, há mais autores publicados do que em qualquer outro país. É verdade isso? A que se deve esse fenômeno? 

É tentador dizer; sim – embora eu não tenha investigado. Há uma tradição literária muito forte aqui na Islândia que remonta ao tempo em que a Islândia foi colonizada, cerca de 1200 anos atrás. O auge foi no século 13, quando as grandes sagas islandesas foram escritas, algumas delas, como a saga de Njáls (“A história de Njáll”) são um dos picos absolutos da literatura mundial. Não temos grandes edifícios da idade média na Islândia, como a maioria dos outros países europeus, com catedrais e castelos, mas as “Sagas” são a nossa catedral. A poesia sempre foi importante aqui na Islândia, e os nomes dos poetas clássicos do passado são mais ou menos conhecidos por quase todos. Devido a esta rica tradição e à importância da nossa língua – sem o islandês não haveria literatura – sempre houve um interesse comum pela literatura aqui na Islândia. Isso se mostra de várias maneiras; temos, por exemplo, um fundo estadual bastante bom (desde cerca de 1990) onde os escritores podem se candidatar, e todos os anos cerca de 15 a 20 escritores recebem salário anual completo e podem, portanto, se concentrar apenas na escrita. Outros 30 a 40 escritores recebem um salário de 6 a 9 meses. Por causa dessa afeição, temos um número incomum de escritores em tempo integral, comparando com o quão poucos somos, ou apenas cerca de 360 ??mil.

 

Sei que há muitos autores preferidos na Islândia, como Halldór Laxness e Gunnar Gunnarsson, mas sempre falaram muito sobre as Sagas Islandesas, escritas nos séculos 13 e 14, o senhor poderia contar ao leitor brasileiro, resumidamente, o porquê dessas sagas serem tão lembradas? 

Simplesmente porque elas são excelentes! Algumas delas, mais do que um punhado, são apenas obras-primas. A maioria deles ocorre 200-300 antes de serem escritas e antigamente as pessoas acreditavam que se podia lê-las, as histórias nelas contidas, como fatos históricos, mas agora as lemos como romances soberbos, escritos por autores desconhecidos que foram claramente muito bem lidos em sua literatura contemporânea. Uma das particularidades dessas “Sagas’ são seus estilos – o estilo Saga, que influenciou autores ao longo dos séculos: é simples, conciso, direto ao ponto, às vezes irônico no diálogo, e pode ser muito moderno. Simples, sim, mas também muito profundo; pode-se ler 50 vezes e sempre descobrir algo novo.

 

Então o senhor tem as Sagas como referência em sua literatura? 

Para mim, as Sagas são como montanhas que conhecemos, admiramos, mas é difícil dizer sobre o impacto direto. Coisas assim, como impacto e influência, são muito difíceis de medir ou apontar; mas sei que as Sagas influenciam autores como o grande norueguês Knut Hamsun, que me marcou muito quando comecei a escrever.

 

Em seu primeiro livro, “Paraíso e inferno”, o senhor narra a peregrinação de um homem que tem de devolver o livro “Paraíso”, de John Milton, para um velho capitão. O leitor se depara com as provações do homem atravessando as paisagens geladas pelo inverno, como é contar o sofrimento humano na literatura? 

Acredito que o romance pode discutir e capturar tudo; pode abranger tudo. Nada é muito pequeno ou muito grande; e a maravilha é que às vezes o pequeno se torna grande e vice-versa. Na verdade, para mim é mais ou menos o mesmo escrever sobre uma xícara de café e a morte, um verme e o sentido da vida. Sim, quero capturar tudo em meus romances, quero mergulhar no oceano mais profundo do ser humano, mas ao mesmo tempo escrever sobre tomar uma cerveja gelada ao sol, ouvir o canto dos pássaros. Escrever sobre as coisas mais tristes e engraçadas quase na mesma frase, e deixar que o absurdo e o pragmatismo também caminhem lado a lado – assim como na vida.

 

Antes de se dedicar à escrita, o senhor trabalhou em diversos ofícios, como pescador, inclusive. Como foi se estabelecer na literatura? 

Sim, demorei para me encontrar, para perceber o que queria fazer; quando eu tinha 15 ou 16 anos eu sentia que não pertencia a lugar nenhum, não tinha propósito algum, que eu era uma espécie de erro. Então, em vez de ir para a escola, trabalhei em vários empregos; em peixarias, alvenaria etc. Mas aos 19 eu vi um programa na tv estatal (naquela época, só tínhamos uma estação de tv na Islândia, transmitida 6 dias por semana, sem tv na quinta, e sem tv em julho; dias de glórias!) sobre o universo com o maravilhoso Carl Sagan, o astrônomo americano. E aquele programa e Carl Sagan, simplesmente mudaram tudo. Depois do programa, tive certeza de que queria ser astrônomo. Sonhava em descobrir novos mundos no espaço, e com isso ampliar o nosso próprio mundo – então comecei de novo na escola, em física, apesar de sempre ter sido um fracasso total em matemática. Mas lentamente, nos dois, três anos subsequentes, percebi que aqueles mundos que eu queria tanto encontrar, descobrir, não estavam no espaço, mas nas palavras; e desde então venho criando novos universos em meus romances – ou tentando ampliar nossas vidas, nosso mundo, com minha ficção – tentando expandir nossa existência. Mas sempre esteve dentro de mim, quer dizer, essa forte necessidade de criar. No início, eu simplesmente não sabia como fazer isso. Mas depois que me encontrei, depois que descobri meu rastro, não havia como voltar atrás. Publiquei os primeiros três livros de poesia antes de me voltar para o romance.

 

Quais são seus projetos futuros? 

Desde que terminei a trilogia, publiquei cinco romances e um livro de poesia. E agora estou trabalhando em um novo romance, que será meu décimo quinto, mas publiquei o primeiro em 1996. Este é um romance histórico, ambientado principalmente na Islândia no início do século XVII. Sinceramente não consigo pensar em mim, na minha vida, senão nessa escrita; é como respirar para mim, uma necessidade contínua, um desejo, um impulso. Sempre no meio cheio de dúvidas e agonia, mas também simplesmente uma alegria, diversão; uma batalha difícil, significativa e maravilhosa.

 

Você já teve contato com algum autor da literatura brasileira? 

Infelizmente não, ainda não, e sou vergonhosamente ignorante sobre a literatura brasileira contemporânea. Eu devo fazer algo sobre isso! Li alguns romances de Jorge Amado há muitos anos e fiquei muito impressionado com eles; o mesmo ocorre com os grandes poetas Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar.  

 

Matheus Lopes Quirino é jornalista e escreve sobre literatura e artes virtuais

 

Trecho
(De “A tristeza dos anjos”, de Jón Kalman Stefánsson, com tradução de João Reis)

 

A noite é escura e muito silenciosa no inverno. Ouvimos os peixes suspirar no fundo do mar, e aqueles que sobem montanhas ou atravessam charnecas altas conseguem escutar a música das estrelas. Os velhotes, que detinham a sabedoria da experiência, disseram que lá não havia nada exceto terreno aberto e perigo de morte. Morremos se não prestamos atenção à experiência, mas apodrecemos se atentamos demais a ela. Dizem que essa música desperta nas pessoas desespero ou divindade. Partir para as montanhas em noites silenciosas e escuras como o inferno, em busca de loucura ou alegria, talvez seja o mesmo que viver para algum m. Mas não são muitos que empreendem tais viagens: desgasta sapatos valiosos e a vigília noturna deixa a pessoa incapaz de desempenhar as tarefas do dia, e quem deverá fazer o trabalho se ela não conseguir? A luta pela vida e pelos sonhos não pode ser conciliada. A poesia e o peixe salgado são inconciliáveis, e ninguém come seus próprios sonhos. É assim que vivemos. 


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