“Não sei se é um pasto de animais selvagens ou minha casa, minha terra natal!” A indignação é de um poeta anônimo, da cidade muçulmana de Maarate, no ano de 1098, após a invasão dos cruzados, chamados pelos turcos e sarracenos da fé islâmica de “franj” ou “francos”, independentemente da região europeia de origem. Aquela próspera localidade sob o califado xiita Fatímida - atualmente território sírio -, onde nascera Abu al-Ala al-Maaari (973 - 1057), expoente da literatura árabe, fora um dia protegida por muralhas e guarnecida por vinhedos, campos de oliveira e figueiras.
Os francos, que a caminho de Jerusalém já haviam aniquilado Niceia e Antioquia, por três dias ininterruptos passaram a população de Maarate sob o fio da espada. Em atos de canibalismo, cozinharam muçulmanos em caldeirões, empalando-os em seguida, antes de abocanhá-los. Quem relata é também o cronista franco Raul de Caen: “Em Maarate, os nossos ferviam os pagãos adultos em marmitas, enfiavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”.
Buscando justificar a barbárie, os cruzados escreveriam ao papa no ano seguinte: “Uma terrível fome assolou o exército em Maarate e o colocou na cruel necessidade de se alimentar dos cadáveres dos sarracenos”. Mas de fato, houve comportamentos de grupos de francos fanáticos, denominados tafurs, que nem a fome pode explicar: os testemunhos dão conta de que estes se espalhavam pelos campos clamando pelo desejo de comer a carne dos sarracenos.
O cronista franco Alberto de Aquisgrão, que participou da Batalha de Maarate, afirma: “Os nossos não se repugnavam de comer não apenas os turnos e os sarracenos mortos como também os cães!”. A imagem do canibalismo praticado pelos cruzados europeus, que se propaga entre as populações árabes de uma nação de califados convertidos ao islã, foi descrita também pelo emir e cronista Osama Ibn Munqidh: “Todos os que se informaram sobre os franj viram neles animais que têm a superioridade da coragem e do ardor no combate, mas nenhuma outra, assim como os animais têm a superioridade da força e da agressão”.
"As cruzadas representam um acontecimento fundador no conflito entre o Ocidente e o mundo árabe"
Amin Maalouf
Diferentemente da perspectiva histórica ocidental, o olhar árabe, expresso em testemunhos registrados por quem viveu aquela guerra iniciada há quase um milênio, revela o choque de civilizações e de versões sobre o curso das cruzadas. Enquanto para os europeus elas significam um renascimento cultural e econômico, e o fortalecimento da fé cristã em detrimento de “infiéis”; para os árabes, marcam longos períodos de devastação de estrangeiros “bárbaros” de suas terras, atos de vandalismo e canibalismo contra as populações, além do isolamento político e econômico.
Essa contraposição de perspectivas emerge na obra “As cruzadas vistas pelos árabes”, do franco-libanês Amin Maalouf, autor consagrado e membro da Academia Francesa, na cadeira que pertenceu a Claude Lévi-Strauss. Escrito no começo da década de 1980, o relato histórico é hoje um clássico reproduzido em mais de 30 países e alcança mais de 90 edições. A mais recente delas acaba de ser reeditada no Brasil, pela Editora Vestígio, do grupo Autêntica, com posfácio atualizado pelo autor.
O estranhamento de uma sociedade árabe mais urbanizada e educada em relação à ignorância e o “atraso” científico dos iletrados cruzados, originários de uma sociedade agrária feudal, é recuperado na obra de Maalouf. Nas comunicações, os orientais mantêm um sofisticado sistema de pombos-correios, adestrados de tal modo que sempre retornam ao ninho de origem, técnica completamente desconhecida dos cruzados, que mais tarde a implementariam na Europa. E se o sistema de justiça ocidental, com diversas formas de suplício aleatórios, é considerado absurdo e cruel, na crônica muçulmana da época, sobretudo na medicina, os orientais se percebem, muito avançados em relação aos cristãos. Em 1138, o emir Osama Ibn Munqidh, registra em tom crítico, os métodos de um médico franco, que se apresentou para cuidar de uma mulher que definhava em consequência da febre. Contou ele que, depois de mandar raspar os cabelos da paciente, vaticinando que o “diabo havia entrado em sua cabeça”, pegou uma navalha, fez uma incisão em forma de cruz até aparecer o osso craniano. Então, esfregou-o com sal. A mulher morreu durante o procedimento.
Sob a influência da Igreja Católica e do Império Bizantino, as cruzadas marcam o nascimento do movimento expansionista europeu, em que contingentes militares de diversas regiões daquele continente feudal, rumam às terras localizadas no mundo oriental. Partem da convocação, em 1095, do papa Urbano II, durante o Concílio de Clermont – cidade francesa onde ocorreu a reunião das principais lideranças da Igreja: os cristãos de toda a Europa deveriam se organizar em um grande exército para arrancar Jerusalém do domínio dos “infiéis”. Em duplo movimento, o papa também atendia ao apelo do imperador bizantino Aleixo Comnemo (1048-1118), governante de Constantinopla (hoje Istambul), interessado em retomar as cidades de Antioquia e Niceia, capturadas pelos turcos seljúcidas, estes, inclusive adversários do Califado Fatímida, que dominava Jerusalém.
As cruzadas, que assim se chamam em referência à cruz que os cavaleiros usavam em suas roupas quando em marcha da Europa até o Oriente, revestem-se da narrativa de uma “guerra santa”, pois o combate se daria contra aqueles que professavam uma fé diferente do cristianismo. Mas tinham, igualmente, objetivos comerciais, pois buscavam aproximar o Oriente do Ocidente e, assim, ampliar as atividades comerciais, principalmente as de Gênova e Veneza, na Península Itálica.
“As cruzadas representam um acontecimento fundador no conflito entre o Ocidente e o mundo árabe”, assinala em novo prefácio da obra Amin Maalouf, para quem, o enfrentamento entre o islã e a cristandade segue vivo na mentalidade do mundo árabe e do Ocidente, suscitando rancores, novos conflitos e tensões que se arrastam ao longo da história. Embora possam ser descritas em nove incursões religiosas, militares e comerciais, iniciadas no século 11 com a narrativa de “resgate” de Jerusalém à época sob domínio islâmico; mesmo encerradas com a expulsão definitiva dos cruzados da “Terra Santa” por muçulmanos em 1291; prosseguiu sob outra denominação entre os séculos 15 e 20, quando as nações cristãs europeias continuaram a expansão colonial rumo à África e Ásia. Amin Maalouf ressalta que a Inglaterra, França, Rússia e Países Baixos, e, em menor escala Itália, Portugal e Espanha ocuparam quase todas as nações de populações muçulmanas. “Do Senegal a Java, passando pelo Magrebe, pelo Egito, pelo Cáucaso e pelas Índias. Seguiram-se guerras coloniais traumatizantes, como as da Argélia, da Líbia, do Afeganistão e da Tchetchênia, que deixaram sequelas amargas”, afirma o autor, que assinala: a criação, em 1948, do Estado de Israel, na mesma terra em que fora fundado o reino cruzado de Jerusalém, pareceu aos árabes um novo episódio das cruzadas.
“Na Europa, continuou-se por séculos a falar de ‘cruzadas’, no sentido literal de uma mobilização da cristandade contra os muçulmanos, especialmente contra o Império Otomano” observa Maalouf, lembrando que a grande batalha naval de Lepanto, em outubro de 1571, em que a frota turca foi derrotada pelas nações católicas, foi interpretada como um episódio tardio das cruzadas. Quase cinco séculos mais tarde, quando em 1917 o general inglês Edmund Allenby conquistou a Palestina, ele teria explicitado, segundo menciona Maalouf: “Somente hoje as cruzadas chegam ao fim!”. Mas de fato, não chegaram. O atentado ao papa João Paulo II, em 1981, pelo turco Mehmet Ali Agca; o trágico 11 de setembro, de 2001; a invasão do Iraque e do Afeganistão por forças ocidentais, são novos episódios do conflito, que está longe de chegar a termo. “Eu seria o primeiro a me alegrar se as cruzadas e as contra-cruzadas pudessem ser relegadas de uma vez por todas à lata de lixo da História, para que a harmonia enfim reine em todo o perímetro mediterrâneo e no restante do planeta. Infelizmente, isso não parece em vias de acontecer”, afirma Maalouf. Em busca da compreensão dos dramas ainda tão atuais, o escritor retoma as guerras do passado. E o faz sob a perspectiva árabe, clareando ao Ocidente uma versão raramente relatada na Europa da história.
Fogo da guerra
“A pior arma do homem é derramar lágrimas quando as espadas atiçam o fogo da guerra”, exultava o venerável cádi (magistrado) Abu-Sadd al-Harawi, ao adentrar, em agosto de 1099 na ampla sala do conselho do califa al-Mustazhir-billah, em Bagdá. Após três semanas em lombos de camelos sob o insuportável sol do deserto sírio, al-Harawi, que saíra de Damasco, alcançara o seu destino. Invocava contra os francos e pedia a união dos líderes muçulmanos - desde o início do século 10 divididos entre a dinastia xiita fatímida, com capital no Cairo, e a sunita abássida, com sede em Bagdá. A caminho de Jerusalém, que conquistaram em 15 de julho de 1099, os cruzados haviam deixado um rastro de horrores e matança, inclusive queimando fiéis vivos que tentaram se proteger nas sinagogas, além de vários atos de pilhagem. “Vocês ousam dormitar à sombra de uma feliz segurança, numa vida frívola como a da flor do jardim, enquanto seus irmãos sírios têm por única morada o dorso dos camelos e as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado!”, prossegue al-Harawi, que estava acompanhado de centenas de refugiados da Palestina e da Síria do Norte.
Em princípio, o chamado de al-Harawi à jihad não despertou reação do califado abássida. “O saque de Jerusalém, ponto de partida de uma hostilidade milenar entre Islã e o Ocidente, não provoca, na hora, nenhuma reação. É preciso esperar quase meio século para que o Oriente árabe se mobilize diante do invasor e para que o chamado ao jihad lançado pelo cádi de Damasco na sala do conselho do califa seja celebrado como o primeiro ato de resistência”, registra Amin Maloouf nesse instigante prólogo da obra.
Durante quase um século os fatímidas e os abássidas se mantiveram nas capitais de seus impérios sem reação enfática na defesa das cidades árabes que tombavam sob os cruzados. Pagaram o preço pela inação, e a contraofensiva islâmica, que mudou o curso das cruzadas, partiu de líderes muçulmanos estrangeiros como Zengui (1085-1146), governador de Alepo e de Mossul, que estrutura um disciplinado exército e é celebrado como o primeiro grande combatente do jihad contra os franj; o turco Noradine (1118-1174), segundo soberano da dinastia zênguida, que governa a Síria e o Iraque entre1146 e 1174; e, na sequência Saladino (11174-1193), curdo sunita que unificou muçulmanos para expulsar os invasores, conseguindo reconquistar Jerusalém em 1187. Novas cruzadas e contraofensivas contra muçulmanos aconteceram, com ataques simultâneos dos francos, a oeste e dos mongóis – tártaros – a leste. É o historiador curdo e sultão Abul-Fida (1273-1331) quem relata a expulsão dos cruzados em 1291, com a reconquista do território muçulmano, agora sob o comando mameluco: “Todas as terras do litoral voltaram integralmente aos muçulmanos, resultado inesperado. Os franj, que tinham estado a ponto de conquistar Damasco, o Egito e várias outras regiões, foram expulsos de toda a Síria e das zonas costeiras. Queira Deus que nunca voltem a pisar aqui!”.
A ironia da história, quem aponta, é o autor Amin Maalouf. “Na época das cruzadas, o mundo árabe, da Espanha ao Iraque, ainda é intelectual e materialmente o depositário da civilização mais avançada do planeta. Depois, o centro do mundo se desloca decididamente para o oeste”, afirma ele. “Em medicina, astronomia, química, geografia, matemática, arquitetura, os franj obtiveram seus conhecimentos dos livros árabes que eles assimilaram, imitaram e depois superaram”, considera, lembrando que na indústria os europeus tomaram dos árabes a fabricação de papel, o trabalho do couro e dos tecidos, a destilação do álcool e do açúcar, estas, palavras de uma longa lista de saberes que guardam a origem árabe.
Se para a Europa ocidental, a época das cruzadas foi o início de uma revolução econômica, cultural; para o Oriente, as guerras santas o arrastariam a séculos de decadência e obscurantismo, apesar da quase totalidade das vitórias militares alcançadas sobre os cristãos. Em todos os âmbitos, os francos, que aprenderam a língua árabe e absorveram o legado da civilização grega, transmitido à Europa pelos árabes, se prepararam para a sua futura expansão. Para o Islã, a história foi outra. Se o que o Ocidente pretendia era conter o Islã, foi fragorosamente derrotado. É a religião que mais cresce no mundo. Mas, ao mesmo tempo, sitiado por todos os lados, o mundo muçulmano também se encolhe sobre si mesmo. “O progresso, agora, vem do outro. O modernismo vem do outro. Melhor afirmar sua identidade cultural e religiosa, rejeitando o modernismo simbolizado pelo Ocidente? Melhor, ao contrário, se engajar decididamente no caminho da modernização, correndo o risco de perder sua identidade? Nem o Irã, nem a Turquia, nem o mundo árabe conseguiram resolver esse dilema”, diz Maalouf.
“As cruzadas vistas pelos árabes”
- Amin Maalouf
- Tradução de Júlia de Rosa Simões
- Editora Vestígio
- 304 páginas
- R$ 78,90
- E-book: R$ 55,90