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Estado de Minas PENSAR

Em 'Derrubar árvores', Thomas Bernhard retoma estilo amargo e inflexível

Austríaco volta a utilizar efeito hipnótico para promover ajuste de contas com qualquer pessoa que estiver no caminho


11/11/2022 04:00 - atualizado 10/11/2022 23:36

Ilustração do autor Thomas Bernhard
(foto: Quinho)


Paulo Paniago*

Especial para o EM

 

Sempre resta dúvida quando se começa a ler qualquer dos romances do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989): será preciso criar um tipo especial de disposição para que se possa usufruir da proposta que subjaz em toda obra ou essa disposição é criada justamente durante a leitura — se é o estilo, o ordenamento das palavras (e, no caso dele, das frases, no que isso tem de ritmo e melodias musicais) que são responsáveis por disparar o processo. Tome-se esse “Derrubar árvores”, que acaba de ser lançado, desta vez pela Todavia (grande número de livros dele foram publicados antes pela Companhia das Letras). Estão presentes mau humor, misantropia, a cascata infindável de palavras de conotação negativa numa lista praticamente inesgotável e, no entanto, também o efeito hipnótico que a leitura dele em geral provoca.

 

Não à toa, Bernhard não costuma usar parágrafos. O livro vai num longo e incessante texto contínuo do qual não se deveria descer, uma vez iniciada a leitura. Ele é dos escritores favorecidos pelo gênio do estilo — no caso, formalidade de dicção muito própria e que conjumina, no mesmo movimento, elegância formal de construção em fuga e contraponto e disposição dos narradores de esta- rem em posição extremamente desagradável em que se põem a afrontar de maneira insistente o mundo em volta, seja ele qual for. Bernhard não poupa ninguém. A começar pela epígrafe, entre jocosa e séria, de Voltaire, contida nesse livro: “Como não consegui tornar os homens mais razoáveis, preferi ser feliz longe deles”.

 

“Julguei ter cometido um erro grave ao aceitar seu convite”, diz o narrador logo no início do romance, em relação a amigos que o convidam para uma ceia em homenagem a determinado ator que encena uma peça de Ibsen no Burgtheater, ou, por assim dizer, o teatro municipal. O casal que faz o convite, os Auersberger, tem sua franca e longeva antipatia. Ele é compositor, “vendido” como sucessor de Webern na música. Ela é cantora, embora isso não tenha se traduzido em carreira. Jamais são apresentados ao leitor seus prenomes, o narrador também anônimo sempre os identifica apenas pelo sobrenome e varia o artigo para identificar a quem se refere, o Auersberger, a Auersberger. A mesma coisa ocorre com o ator homenageado, sempre rotulado apenas como o ator do Burgtheater, ou seja, o teatro em Viena no qual trabalha. Sem direito a nome próprio. Com as demais personagens, o processo é semelhante. Quem tem o primeiro nome, geralmente faz uso de algum pseudônimo para esconder o verdadeiro. Joana, a mulher que cometeu suicídio, se chamava na verdade Elfriede. Era uma amiga comum.

 

Ao receber o convite, que coincide de ser no mesmo dia do funeral de Joana e não foi desmarcado, o narrador demora a perceber que caiu numa armadilha. A ceia é anunciada como ‘jantar artístico’ e isso só provoca náuseas no narrador. “Não há nada mais repulsivo”, pondera. Teria feito melhor se tivesse ficado em casa a ler Pascal ou Montaigne, diz. Aos poucos, o leitor é informado de que o casal, 30 anos antes, abrigou o narrador entre os protegidos e ele depois se afastou, não só do mecenato, mas do casal e de toda a vida em torno da cultura vienense, mudando-se em seguida para Londres. Foi tratado, por isso, como traidor. De volta, ele agora desfia todo o veneno contra o provincianismo cultural não só dos Auersberger, mas de todos os demais envolvidos na ceia e na vida artística local. Os termos que emprega para definir a relação anterior com o casal: eles compeliram-no a um estado emocional “terrível”, de “desesperança suprema”; ele foi “aniquilado”, “destruído”, “esmagado”, “vendeu-se a eles da maneira mais abjeta”, foi “jogado no lixo”; eles são, portanto, “destruidores”, “assassinos”, “pessoas mais ou menos nojentas”. A lista é enorme e o tempo todo muito acerba.

 

Ânsia de vômito

 

O vocabulário não melhora, é com termos desse calibre que ele arrosta o imenso discurso de repulsa extrema. Não é incomum mencionar ânsias de vômito, nojo, ruínas, destruição, perversidade, monstruosidade, tudo regado a champanhe, pois afinal trata-se de jantar em sociedade e todo esforço para manter as aparências deve ser empreendido. Enquanto isso, esperam que o ator chegue, como convidado principal, depois de terminada a apresentação noturna, e o atraso afinal se estende além do razoável, o que o narrador atribui a um erro de cálculo dos anfitriões. Sentado em certa “poltrona de orelhas” (o que será isso, caro tradutor, você poderia explicar melhor, por favor?, e desculpe aqui a brutal ignorância), o narrador observa a movimentação dos demais convidados e reflete a respeito das próprias e equivocadas escolhas.

 

O teatro do qual o ator provém, diz o narrador, é “asilo de diletantismo teatral”, encena peças ruins, comédias idiotas inglesas e coisas semelhantes. Claramente, o narrador não se agrada de qualquer coisa que se pareça com arte ou cultura provindas do país. Todo mundo é medíocre, tudo é muito ruim e a bile dele é exposta numa investigação puramente interna das próprias concepções. É o mesmo modelo de Bernhard dos demais livros: ruins são os outros. De vez em quando, ao se mencionar, ele não se preserva nem condescende, mas é isso mesmo que afinal acontece, porque ele parece ser o único a observar a canalhice geral e só lastima ter aceitado voltar a frequentá-la. O que o deixa, necessariamente, em posição superior, mesmo que finja não se poupar.

 

 

Desprovido de simpatia

 

Em geral, este é o mote dos romances de Bernhard: há um incômodo com a situação em torno, manifesta num vocabulário amplo de emoções negativas e palavras duras, enquanto se espera que algo diferente por fim ocorra para desmanchar ou criar ainda mais intensidade em relação ao desconforto. Nesse caso, o leitor talvez fique com a expectativa de que o jantar não será apenas um pequeno teatro da hipocrisia, o que afinal se cumpre. Não pelo narrador, curiosamente, mas por conta da disposição do ator, que afinal se rebela contra outra dos convidados, uma mulher desagradável que o provoca durante a ceia, Jeannie, com quem o narrador aliás teve um caso num passado remoto e hoje, talvez nem seja necessário dizer, restou que se detestam mutuamente, embora de maneira um tanto civilizada. A ele lhe agrada, inclusive de maneira perversa, as respostas que o ator do Burg dá às provocações de Jeannie.

 

Contente por alguns segundos, o narrador em seguida retoma a sua disposição amarga, arrogante, inflexível. Tudo é ruim, todos são perversos, mas pelo menos ele admite que talvez seja o pior de todos, porque afinal é hipócrita incorrigível, que mente e elogia o jantar na hora de se despedir, que fala inclusive em cultivar o contato restabelecido com o casal (diz isso para a Auersberger, o marido está alcoolizado demais e apagou, depois de cenas de destempero entre o casal; aliás, que se estendem desde tempos anteriores, os leitores somos informados), algo que não tem a menor vontade de fazer realmente. Por fim e de maneira inclusive surpreendente, conclui que Viena, por pior que seja, “é para mim a melhor das cidades, essa Viena detestada”, e as pessoas que odeia são afinal as melhores, as mais comoventes. A vantagem da literatura, se é que pode ser considerada vantagem, é que levanta o véu dos comportamentos sociais aceitáveis, da representação que todo mundo faz o tempo todo, e mostra o que acontece nos bastidores, por mais amargo e detestável que seja. Uma anatomia da mente negativa que proporciona aos borbotões pensamentos nefastos de um qualquer sujeito, é essa a proposta literária de Bernhard. Difícil não aproximar narrador de autor, tentação complicada de evitar. Embora o escritor, ao que parece, tenha se comportado sempre de maneira mais ou menos gentil na vida pública.

 

Numa entrevista concedida a Asta Scheib em 1986, por exemplo, encontrável na internet, é possível se deparar com um Bernhard absolutamente razoável, social, gentil nas respostas, elucidativo... e claramente hipócrita (difícil, quase impossível não fazer a analogia), como acontece com os narradores dos romances que escreve. A vantagem de ter a cortina levantada, para o leitor, é perceber que as ideias e caraminholas que todo mundo tem podem ser transpostas para o papel e virar literatura. Mesmo o título provocante que a jornalista e escri- tora alemã confere à entrevista, “De uma catástrofe a outra”, não faz justiça à gentileza do homem de letras que navega as águas algo cristalinas da vida social e o narrador que mergulha naquelas turvas do mundo do pensamento interior.

 

O curioso em tudo isso, para mim como resenhista longevo que escrevi grande número de textos a respeito de livros de Thomas Bernhard, é que ele começa a certa altura a cansar. É como se houvesse data de validade (ou limite de idade) para se ler obra tão visceral e negativa, tão áspera e amarga, tão ressentida e provocadora, mas que no fundo apresenta apenas variações em torno do mesmo tema e o componente de redundância na vida (mesmo na arte) tem limite. A partir de certo ponto, você talvez queira dizer o seguinte: é um grande escritor, não resta a menor dúvida, mas para mim basta.

 

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília e autor de “Com meus dentes de cão” (no prelo)

 

 

Um guia de leitura para a obra de Bernhard

 

 

A “fórmula” de Thomas Bernhard — textos longos, às vezes em um único parágrafo; reiterações de ideias, embora com avanços, numa emulação de relato oral; o amargor generalizado contra tudo e todos; o recurso do narrador, que é sempre alguém forçado a voltar a determinada cidade ou país que o traumatizou de algum modo — pode ter rendido a percepção de o autor se tratar de detentor de um estilo muito próprio, mas os resultados diferenciam-se.

 

Uma alternativa é a leitura de “Origem”, reunião de vários relatos autobiográficos que no Brasil vieram de uma só vez no mesmo volume. Para muita gente, esse “Derrubar árvores” está na lista dos melhores que escreveu. Outra alternativa também divertida é o póstumo “Meus prêmios”, em que Bernhard analisa com especial despudor e provocação alguns dos muitos prêmios que acumulou na carreira, seguindo o modelo da “fórmula”. Confira algumas apostas do melhor de Bernhard nesta breve lista.

 

 

“O náufrago”

 

Três estudantes de piano são colegas, mas um deles é Glenn Gould, que se torna consagrado como um dos maiores gênios do piano no século 20, sobretudo por conta da interpretação da obra de Johann Sebastian Bach, em particular as “Variações Goldberg” e “Arte da fuga”. O narrador é um dos três, todos alunos de Horowitz (“Horowitz transformou todos os nossos professores em zeros à esquerda”, ele diz logo na abertura dos trabalhos). O outro colega, justamente aquele que está representado no título do livro, também terá a própria vida aniquilada pelo talento genial de Gould. Wertheimer, esse outro amigo de fracasso, opta pelo suicídio por enforcamento. O narrador comparece ao enterro, na Áustria, depois de 28 anos afastado e, entre lembranças dos acontecimentos, analisa as trajetórias de cada um dos envolvidos.

 

 

“Extinção”

 

A fórmula de Bernhard tem pouca variação entre os seus principais livros, mas onde alcança o mais alto impacto é neste romance, justamente o último que escreveu. Um herdeiro, Franz-Josef Murau, depois de ter se exilado em Roma, precisa voltar à Áustria, e decidir o que será feito da propriedade da família Wolfsegg, agora que os pais e o irmão morreram num acidente de automóvel. Ao passar em revista os acontecimentos que envolvem a própria família, que ele, como não é difícil supor, abomina, o personagem aproveita para também execrar as relações humanas no país, as mesmas que levaram a família a dar abrigo a ideias fascistas e nazistas. “Estou de fato retalhando e dissecando Wolfsegg e os meus”, ele anota, “aniquilando-os, extinguindo-os, e retalho e disseco dessa forma a mim mesmo, disseco-me, aniquilo-me, extingo-me.”

 

 

“O imitador de vozes”

 

Aqui existe uma variação curiosa no modelo do escritor. Em que pese o tom sempre sombrio permanecer, as narrativas são todas muito curtas, contos de uma página, página e pouco. Todos, evidentemente, com desfechos trágicos, mas narrados com certo distanciamento mordaz que parece dar entonação diferenciada a esta obra. É como se ele mesmo tivesse se cansado dos modelos e suas variações e decidisse — com sucesso, diga-se — lançar mão de alternativa. Uma das mais concisas, “Hotel Waldhaus”: “Não demos sorte com o clima e, à nossa mesa, sentaram-se convidados repugnantes em todos os aspectos. Até nosso gosto por Nietzsche conseguiram estragar. Mesmo depois do acidente automobilístico fatal, quando seus corpos jaziam nos caixões na igreja de Sils, nosso ódio por eles ainda persistia”. No relato que dá título ao livro, um sujeito imita as vozes de várias pessoas conhecidas, mas quando lhe pedem que imite a própria voz, diz que isso é algo que não consegue fazer.

 

 

“Mestres antigos: comédia”

 

Convidado por um velho mestre para um encontro num museu austríaco, o narrador primeiro observa um hábito arraigado nele, chamado Reger. O mestre senta-se diariamente diante de uma tela de Tintoretto, intitulada “Homem de barba branca”, há mais de 30 anos, e passa pelo menos quatro horas todas as manhãs diante do quadro. Nada escapa de suas observações ásperas. “Os historiadores da arte são os verdadeiros assassinos da arte”, dispara Reger. Ou: “Não existe nada que eu odeie mais do que museus”. Há nesse livro alguns pontos altos: uma técnica especial de leitura que Reger diz ter desenvolvido; comentários hilários a respeito do “consumo” de filósofos pelos comuns dos mortais; e certa teoria a respeito do melhor jeito para ser eficaz na escrita de alguns textos. 

 

 

“Derrubar árvores: uma irritação”

 

  • De Thomas Bernhard
  • Todavia
  • Tradução de Sergio Tellaroli
  • 192 páginas
  • R$ 74,90; e-book: R$ 59,90 

 


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