(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Em 'Movimento 78', Flávio Izhaki aborda relações entre humanos e tecnologia

Ficção especulativa do escritor carioca oscila entre o presente e o futuro, o premonitório e a distopia


09/09/2022 04:00 - atualizado 08/09/2022 22:04

O escritor Flávio Izhaki
(foto: Ana Alexandrino)
O sul-coreano Lee Sedol é um ex-jogador profissional de Go e um dos maiores detentores de títulos em torneios internacionais desse jogo de tabuleiro. Ele anunciou sua aposentadoria em 2019, aos 36 anos, após 24 de carreira. Pouco antes, em 2016, Sedol foi derrotado quatro vezes, em uma série de cinco partidas, por uma inteligência artificial, a AlphaGo. Um dos melhores capítulos de “Movimento 78” (Companhia das Letras), ficção especulativa de Flávio Izhaki, dedica-se à única partida vencida por Sedol na série, e resume bem o teor da discussão colocada em suas páginas a partir da história, de 1939 ao “último terço do século 21”, de uma família comum: a “questão da técnica” (ou da tecnologia) e suas implicações biopolíticas.

“Movimento 78” oscila sobretudo entre o presente (ou quase) e um futuro — e é imprescindível abordar esse tipo de narrativa assim pluralmente, pensando em termos de “futuros”, possibilidades exploradas pelo autor a partir de um dado estado de coisas que nos é familiar agora, em nosso presente hiperconectado e conflagrado. Claro que, em alguns dos melhores exemplos do gênero, passados e presentes alternativos também servem como mote, como é o caso em “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick, “Associação judaica de polícia”, de Michael Chabon, “Farthing”, de Jo Walton, ou mesmo “The instructions”, de Adam Levin, com suas mil e poucas páginas de puro deleite verbal e imaginativo.

No quarto romance, Izhaki trabalha em um registro menos estridente, atento aos temas familiares que já explorou nos ótimos “Amanhã não tem ninguém” (2013) e “Tentativas de capturar o ar” (2016), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. No lançamento paulistano de “Movimento 78”, ele chegou a afirmar que não tem um conhecimento profundo dos gêneros de ficção científica e especulativa (referiu-se a eles como “literatura de nicho”), e rejeitou caracterizar o novo romance sob tais “rótulos”. Aqui, a afirmação de desconhecimento serve para desqualificar e anular a rejeição (in)consequente. Coisa similar foi dita por Ian McEwan ao lançar “Máquinas como eu”, o que é curioso, pois os britânicos tendem a lidar melhor com essas aberturas — vide J. G. Ballard e Doris Lessing, esta agraciada com o Nobel de Literatura. Indo direto ao ponto: “Movimento 78” é, sim, uma boa obra de ficção científica e especulativa (a rigor, “especulativa” abrange “ficção científica”), e a ignorância quanto ao gênero e os preconceitos do autor não prejudicaram em nada a execução do projeto.

Capítulos expositivos


O romance se ocupa da história de Kubo, que se submete a um tratamento experimental, e sua família (preste atenção aos belos capítulos narrados pela esposa), e de um debate futuro entre Seiji, filho de Kubo, e uma inteligência artificial, Thomas Beethoven, em uma corrida eleitoral. Seja no presente, seja no futuro, as relações entre os seres humanos e a tecnologia pontuam o livro, e isso é ressaltado em capítulos expositivos que abordam momentos cruciais, fictícios ou não, em tais relações — como no já citado embate entre Lee Sedol e AlphaGo.

Há, também, o pungente relato sobre um soldado judeu durante a invasão da Polônia por nazistas e soviéticos, no começo da Segunda Guerra Mundial. Os Kubo descendem desse personagem, para quem o “silêncio é melhor que o berro, mas ainda assim não se sente seguro”. A sensação de insegurança de Kubo em 2019 nasce de outra espécie de perturbação: ele é coagido pela empresa na qual trabalha a se submeter a um tratamento “experimental, conduzido por computadores, que manipulariam seu corpo (...) para consertá-lo. Consertá-lo, sim, ele pensou, a palavra exata para eles é essa. Não curá-lo, mas consertá-lo de um problema”. O tratamento deve “consertá-lo” de uma doença que ainda não tem, mas que, segundo apontam os exames, “potencialmente” terá.

Assim, o corpo biológico do indivíduo não mais pertence a ele. Pressionado pelos superiores para ser “consertado”, Kubo sente na carne o “paradoxo da biopolítica” de que nos fala Giorgio Agamben no primeiro volume do “Homo sacer”, e seu corpo se torna a “terra de ninguém” em que, “no horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade”, movem-se o médico e o cientista — no caso, nem sequer é outra pessoa quem se movimenta por ali, mas uma inteligência artificial. Kubo é manipulado por uma máquina e, assim desumanizado, torna-se o suprassumo das “Versuchspersonen”, das cobaias humanas.

Seiji, por sua vez, precisa vencer outra inteligência artificial no referido debate, a fim de instituir, em um futuro esvaziado, a possibilidade de alguma reumanização. São bata- lhas perdidas, ao que parece, mas ainda abordáveis por meio da arte. Pois, conforme Heidegger afirmou em uma célebre conferência, “quanto mais pensarmos a questão da essência da técnica, tanto mais misteriosa se torna a essência da arte”. Felizmente.


Entrevista//Flávio Izhaki
"É um livro que olha para o futuro para discutir o presente"



Como surge “Movimento 78”? No que o novo romance difere de seus livros anteriores?

“Movimento 78” surge da minha curiosidade em pensar e entender como a inteligência artificial pode afetar o mundo em que viveremos. Essa é a diferença primordial deste livro para os meus anteriores – que tiveram sua fagulha inicial em uma cena, enquanto esse nasceu de um tema. Conforme eu estudava o assunto, percebi o quanto esse futuro já está acontecendo, vários setores da sociedade já estão tremendamente impactados e isso tende a aumentar de maneira exponencial nos próximos anos. O desafio foi não perder de vista que um assunto que parece filosófico ou tecnológico precisava ser exposto de uma maneira humana para funcionar como romance e por isso uma família é o centro da narrativa.

 

Poderia comentar como foi estruturada a narrativa?

Os meus romances anteriores, assim como esse, são quebra-cabeças polifônicos. Acredito que é uma estrutura que traz uma riqueza para um romance se espraiar com mais capilaridade, o que leva o leitor, caso a experiência de leitura seja bem-sucedida, para mais caminhos de entendimento. Para esse livro, achei que o tema pedia ainda mais uma estrutura não linear, e mais vozes, mas não somente diferentes pontos de vista narrativos, mas de estilo, então quis utilizar outros modelos narrativos para o romance (o ensaio, o conto também estão lá). Também pedia mais de um tempo narrativo, então o livro se passa “nos dias atuais” (2019-2023) para explorar o tema da família e num futuro de certa forma distante – “último terço do século 21” – em que o centro da discussão é a humanidade em geral.

 

O que foi possível programar no desenvolvimento da narrativa? Quais “acasos e decisões” o fizeram escrever?

A narrativa tem três vértices: o debate entre um candidato humano e uma inteligência artificial no último terço do século 21, a história de uma família “nos dias atuais” já de certa maneira atravessada por questões ligadas à inteligência artificial e os ensaios, contos e outros textos sobre como a inteligência artificial já está embrenhada no nosso cotidiano e de que maneira ela afetará ainda mais nossa vida. Cada uma das três partes conversam entre si e afetam umas às outras. Escrever cada uma delas foi como mexer em peças em que um movimento afetava os demais, criava novas percepções e desvios. Nada é acaso, nesse sentido.

 

Considera que “Movimento 78” é um livro distópico ou pode ser também premonitório?

É um livro que olha para o futuro para discutir o presente. Acho que essa poderia ser uma definição de uma boa distopia, um futuro possível que já está encaminhado a vir a acontecer com as decisões que tomamos no presente.

 

Você não acha que, dado o histórico da espécie humana e o que temos feito com o planeta e uns com os outros, não é uma ideia aprazível que as IAs assumam o controle e eventualmente se livrem de nós?

O ser humano individualmente não consegue encarar a ideia de morte, assim como o ser humano como coletivo também não consegue pensar em sua própria extinção sem um esgar de espanto. A ideia de uma guerra nuclear foi por décadas esse fantasma coletivo. A crise climática, e agora também as inteligências artificiais, nos forçarão a discutir o assunto. Só que isso ainda não acontece. Esses assuntos passam ao largo dos debates públicos. E em pouco tempo talvez seja tarde demais.

 

No caso das IAs, acho que elas podem agregar alguns tipos de soluções para a administração pública daqui a um tempo (não muito longe), mas sem algum tipo de regulamentação sobre o assunto, não poderemos ter certeza de qual objetivo estará por trás de algumas das decisões. E, sem controle, o destino da humanidade pode, sim, ser o que acontece no livro.

 

O conceito de historicidade (sobretudo ligado à memória) é muito importante no livro. Em relação a isso, e dadas as circunstâncias em que vivemos, não só de desrespeito à memória e à história, mas de reavivamento e intensificação de ideologias e práticas fascistas, você não acha que, independentemente das IAs, já não caminhamos para um espaço “a-histórico” ou “anti-historial”? 

A pergunta me leva a pensar em fake news e como essa prática distorce um fato e o que pode vir a acontecer com o avanço das inteligências artificiais. Já existem softwares que conseguem escrever textos sobre qualquer tema digitando palavras-chave. Já existem softwares que conseguem emular vozes e imagens a partir de outras vozes e imagens. O conceito de autoria de um texto, a possibilidade de checar a veracidade de uma imagem ou discurso vai se esfarelar diante dos nossos olhos brevemente. Como lidaremos com isso ao tentar entender o que aconteceu – hoje, ontem? A verdade poderá ser moldada por ideologias perigosas com um poder de destruição e manipulação muito maior do que já temos hoje. 

 

Acredita que “Movimento 78” pode ser lido também como uma elegia à memória?

No livro, o ser humano está encarando um momento em que o fim parece iminente. Quando não existe mais futuro, o que nos resta é o passado. 



*André de Leones é autor do romance “Eufrates” (José Olympio), entre outros 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)