
Capítulos expositivos
Entrevista//Flávio Izhaki
"É um livro que olha para o futuro para discutir o presente"
Como surge “Movimento 78”? No que o novo romance difere de seus livros anteriores?
“Movimento 78” surge da minha curiosidade em pensar e entender como a inteligência artificial pode afetar o mundo em que viveremos. Essa é a diferença primordial deste livro para os meus anteriores – que tiveram sua fagulha inicial em uma cena, enquanto esse nasceu de um tema. Conforme eu estudava o assunto, percebi o quanto esse futuro já está acontecendo, vários setores da sociedade já estão tremendamente impactados e isso tende a aumentar de maneira exponencial nos próximos anos. O desafio foi não perder de vista que um assunto que parece filosófico ou tecnológico precisava ser exposto de uma maneira humana para funcionar como romance e por isso uma família é o centro da narrativa.
Poderia comentar como foi estruturada a narrativa?
Os meus romances anteriores, assim como esse, são quebra-cabeças polifônicos. Acredito que é uma estrutura que traz uma riqueza para um romance se espraiar com mais capilaridade, o que leva o leitor, caso a experiência de leitura seja bem-sucedida, para mais caminhos de entendimento. Para esse livro, achei que o tema pedia ainda mais uma estrutura não linear, e mais vozes, mas não somente diferentes pontos de vista narrativos, mas de estilo, então quis utilizar outros modelos narrativos para o romance (o ensaio, o conto também estão lá). Também pedia mais de um tempo narrativo, então o livro se passa “nos dias atuais” (2019-2023) para explorar o tema da família e num futuro de certa forma distante – “último terço do século 21” – em que o centro da discussão é a humanidade em geral.
O que foi possível programar no desenvolvimento da narrativa? Quais “acasos e decisões” o fizeram escrever?
A narrativa tem três vértices: o debate entre um candidato humano e uma inteligência artificial no último terço do século 21, a história de uma família “nos dias atuais” já de certa maneira atravessada por questões ligadas à inteligência artificial e os ensaios, contos e outros textos sobre como a inteligência artificial já está embrenhada no nosso cotidiano e de que maneira ela afetará ainda mais nossa vida. Cada uma das três partes conversam entre si e afetam umas às outras. Escrever cada uma delas foi como mexer em peças em que um movimento afetava os demais, criava novas percepções e desvios. Nada é acaso, nesse sentido.
Considera que “Movimento 78” é um livro distópico ou pode ser também premonitório?
É um livro que olha para o futuro para discutir o presente. Acho que essa poderia ser uma definição de uma boa distopia, um futuro possível que já está encaminhado a vir a acontecer com as decisões que tomamos no presente.
Você não acha que, dado o histórico da espécie humana e o que temos feito com o planeta e uns com os outros, não é uma ideia aprazível que as IAs assumam o controle e eventualmente se livrem de nós?
O ser humano individualmente não consegue encarar a ideia de morte, assim como o ser humano como coletivo também não consegue pensar em sua própria extinção sem um esgar de espanto. A ideia de uma guerra nuclear foi por décadas esse fantasma coletivo. A crise climática, e agora também as inteligências artificiais, nos forçarão a discutir o assunto. Só que isso ainda não acontece. Esses assuntos passam ao largo dos debates públicos. E em pouco tempo talvez seja tarde demais.
No caso das IAs, acho que elas podem agregar alguns tipos de soluções para a administração pública daqui a um tempo (não muito longe), mas sem algum tipo de regulamentação sobre o assunto, não poderemos ter certeza de qual objetivo estará por trás de algumas das decisões. E, sem controle, o destino da humanidade pode, sim, ser o que acontece no livro.
O conceito de historicidade (sobretudo ligado à memória) é muito importante no livro. Em relação a isso, e dadas as circunstâncias em que vivemos, não só de desrespeito à memória e à história, mas de reavivamento e intensificação de ideologias e práticas fascistas, você não acha que, independentemente das IAs, já não caminhamos para um espaço “a-histórico” ou “anti-historial”?
A pergunta me leva a pensar em fake news e como essa prática distorce um fato e o que pode vir a acontecer com o avanço das inteligências artificiais. Já existem softwares que conseguem escrever textos sobre qualquer tema digitando palavras-chave. Já existem softwares que conseguem emular vozes e imagens a partir de outras vozes e imagens. O conceito de autoria de um texto, a possibilidade de checar a veracidade de uma imagem ou discurso vai se esfarelar diante dos nossos olhos brevemente. Como lidaremos com isso ao tentar entender o que aconteceu – hoje, ontem? A verdade poderá ser moldada por ideologias perigosas com um poder de destruição e manipulação muito maior do que já temos hoje.
Acredita que “Movimento 78” pode ser lido também como uma elegia à memória?
No livro, o ser humano está encarando um momento em que o fim parece iminente. Quando não existe mais futuro, o que nos resta é o passado.