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Estado de Minas PENSAR

Poemas de César Vallejo trazem tensão entre o cotidiano e o existencial

Em entrevista ao Pensar, tradutores do escritor peruano ressaltam a qualidade singular da obra do escritor, morto em 1938


27/05/2022 04:00 - atualizado 26/05/2022 22:04

César Vallejo
(foto: Reprodução/Wikipedia)


"Poemas humanos"
De César Vallejo

13.

Hoje eu gosto da vida muito menos,

mas assim mesmo gosto de viver: como já disse. 
Quase toquei a parte do meu todo e me contive 
com um tiro na língua por trás da minha palavra. 

Hoje apalpo meu queixo em retirada

e nestas momentâneas calças vou pensando: 
Tanta vida e jamais!

Tantos anos e sempre minhas semanas!... 
Meus pais já enterrados com sua pedra

e seu triste estirão inacabado;

irmãos de corpo inteiro, meus irmãos,

e, enfim, meu ser, em pé e de colete. 

Eu gosto da vida imensamente,

mas, está claro,

com minha amada morte e meu café

e vendo as castanheiras frondosas de Paris

e dizendo:

É um olho este, aquele; uma testa esta, aquela... E repetindo: 
Tanta vida e não falha jamais minha toada!

Tantos anos e sempre, sempre, sempre! 

Disse colete, disse

todo, parte, ânsia, disse quase, para não chorar. 
Que de fato sofri nesse hospital que fica aqui ao lado 
e foi bom e ruim eu ter olhado

de baixo para cima este organismo. 

Vou gostar de viver sempre, mesmo que seja à toa, 
porque, como eu dizia, e hoje repito,

tanta vida e jamais! E tantos anos,

e sempre, muito sempre, sempre sempre! 

61.

Duas crianças que anseiam 

Não. Não têm tamanho os seus tornozelos; não é a sua espora 
suavíssima, que bate nas duas faces.

É a vida e nada mais, de bata e canga. 

Não. Não tem plural a sua gargalhada,

nem por ter emergido de um molusco perpétuo, aglutinante, 
nem por ter penetrado o mar descalça,

é a que pensa e caminha, e que é finita.

É a vida e nada mais; somente a vida. 

Posso intuí-lo cartesiano, autômato, 
moribundo, cordial, enfim, esplêndido. 
Não há nada acima

da cruel sobrancelha do esqueleto; 
nada, entre o que tomou e deu com luva 
a pombinha, e com luva, 
a eminente minhoca aristotélica; 
nada na frente nem atrás da canga; 
nada de mar no oceano

e nada 
dentro do orgulho grave de uma célula. 
Somente a vida; assim: coisa bravíssima.
 
Plenitude inextensa,

alcance abstrato, sortudo, de fato, 
glacial e arrebatado, desta chama;

freio do fundo, rabo desta forma.

Mas aquilo

para o qual eu nasci me ventilando

e cresci com afeto e drama próprios, 
meu trabalho recusa,

meu sentimento e minha arma abarcam. 
É a vida e nada mais, fundada, cênica. 

E por este rumo,

minha alma extingue sua série de órgãos 
e por este indizível, endiabrado céu, 
minha máquina dá gemidos técnicos,

na manhã triste passo a minha tarde

e me esforço, palpito, sinto frio. 

66.

Violão e palmas 

Agora, entre nós dois, aqui,

venha comigo, traga seu corpo pela mão

e jantemos juntos e passemos um instante a vida

a duas vidas, dando uma parte a nossa morte.

Venha contigo, faça-me o favor

de queixar-se em meu nome e sob a luz da noite tenebrosa 
em que você traz pela mão sua alma e,

pé ante pé, fugimos de nós mesmos. 

Venha a mim, sim, e a você, sim,

com passo par, para andarmos os dois com passo ímpar, 
marcando o compasso da despedida.

Até a nossa volta! Até voltarmos!

Até podermos ler, feito ignorantes!

Até a nossa volta, adeus adeus! 

Que me importam os fuzis,

ouça o que eu digo;

ouça o que eu digo, que me importam,

se a bala já circula bem na minha assinatura? 

Que te importam as balas,

se o fuzil já fumega no seu cheiro?

Hoje nós pesaremos

nos braços de algum cego nossa estrela

e, depois do seu canto, choraremos.

Hoje, formosa, com seu passo par

e a crença a que chegou o meu alarme, 
sairemos de nós mesmos, dois a dois.

Até ficarmos cegos!

Até

chorarmos de tanto voltar! 

Agora,

entre nós dois, traga

seu doce personagem pela mão

e jantemos juntos e passemos um instante a vida 
a duas vidas, dando uma parte a nossa morte.

Venha contigo, faça-me o favor

de cantar algo

e tocar em sua alma, e bater palmas.

Até a nossa volta! Até esse dia!

Até a nossa partida, adeus adeus! 

Escritos durante a década de 1930, os versos acima fazem parte de “Poemas humanos”, do peruano César Vallejo (1892-1938), traduzidos por Fabrício Corsaletti (poeta, autor de livros como o recente “Engenheiro fantasma”) e Gustavo Pacheco (também autor da apresentação e das notas) para a recente edição bilíngue da Coleção Fábula, da Editora 34. A seguir, uma entrevista com os tradutores ao Pensar.
 
Na apresentação de “Poemas humanos”, diz-se que a poesia de César Vallejo tem “uma qualidade singular”. O que caracteriza essa singularidade?

Fabrício Corsaletti: 
Vallejo é singular por uma série de fatores. Ele é marxista, mas não facilita sua poesia para ser “compreensível para as massas”; ele é vanguardista, mas ao mesmo tempo fala de um ponto de vista muito pessoal, nada dogmático; ele é difícil, mas não é hermético. A gente entende o que ele está dizendo, só não consegue explicar o que ele diz. No caso de Vallejo, a crise existencial parece gerar a crise da linguagem. Sua poesia não é um simples jogo. É uma aposta radical, rimbaudiana, de quem pede tudo à poesia, e em contrapartida entrega tudo a ela. Vallejo é um trágico, mas um trágico livre, que ama a própria liberdade e que não a troca por nada neste mundo.

Como a poesia de Vallejo estabelece diálogos, ou rupturas, com a produção poética do século 20?

Gustavo Pacheco: 
O primeiro livro de Vallejo, “Los heraldos negros” (1918), é muito marcado pelo simbolismo francês e pelo modernismo hispano-americano, em especial pela obra de Ruben Darío, que influenciou não só Vallejo, mas praticamente toda a poesia em espanhol daquela época. O segundo livro, “Trilce” (1922), é radicalmente diferente e original: ele abandona todas as convenções e cria uma nova poesia praticamente do zero, bagunçando métrica, sintaxe, ortografia etc. e antecipando alguns procedimentos que seriam usados mais tarde pelos surrealistas. Estava à frente do seu tempo, foi incompreendido e ignorado, mas hoje é considerado um marco da poesia de vanguarda em espanhol. Já nos “Poemas humanos” (1939), o último livro de poemas de Vallejo, há uma espécie de movimento pendular e sua poesia se torna menos vanguardista na forma, mas talvez mais insólita e mais audaciosa no conteúdo. Nessa última fase de sua vida, Vallejo conhecia e dialogava com as vanguardas europeias e com grandes poetas contemporâneos como García Lorca e Neruda (que foram seus amigos), mas sua poesia não paga tributo a nada disso; ele abre um caminho novo e muito pessoal, praticamente toda uma escola poética, que nasce com ele e termina com ele.

Poderia explicar o que representa a sintaxe “antipoética” na linguagem de Vallejo? É possível traçar paralelos com algum poeta brasileiro que obteve efeito semelhante em suas obras?

Corsaletti: 
A sintaxe dos “Poemas humanos” é bastante convencional; não há grandes rupturas lógicas (ao contrário do que Vallejo fez em “Trilce”, por exemplo). A estranheza está no que o poema diz, não na maneira como ele diz. Além disso, há um uso constante de termos técnicos associados a outros universos (médico, científico, jurídico etc.), e também de expressões como “não obstante”, “desse modo”, “considerando que” etc., que contribuem para o clima antipoético da linguagem. É difícil traçar paralelos entre Vallejo e qualquer outro poeta, brasileiro ou não, mas se tivesse que escolher um eu citaria Augusto dos Anjos, que é anterior e muito mais convencional do que Vallejo, mas tinha em comum com ele o uso de termos e expressões técnicos e científicos, o que provoca um efeito de originalidade e estranhamento.

Quais as maiores dificuldades para traduzir um poeta que afirmava: “uma tradução é um novo poema, que só vagamente se parece com o original”?

Corsaletti: 
Uma das maiores dificuldades de traduzir Vallejo foi manter, como mantivemos em mais de 90% dos casos, os acentos originais dos versos. Existe um uso sistemático do hexassílabo (verso de seis sílabas) e do decassílabo (verso de 10 sílabas). Esses dois metros aparecem o tempo todo nos poemas, mesmo naqueles aparentemente escritos em verso livre. Há vários hexassílabos e decassílabos escondidos ou sobrepostos, que podem passar despercebidos numa primeira leitura. Tivemos que fazer uma verdadeira ginástica verbal para fazer com que os acentos do português e do espanhol coincidissem. 

Como os acontecimentos históricos da primeira metade do século 20 se refletiram na poesia do peruano?

Pacheco: 
Como todo grande poeta, Vallejo é marcado pela sua época, mas, ao mesmo tempo, sua poesia tem um alcance muito maior do que as circunstâncias imediatas em que foi produzida. Vallejo foi testemunha ocular das sequelas da Primeira Guerra Mundial, da Grande Depressão, da ascensão do fascismo e do totalitarismo, da Guerra Civil espanhola. Vários de seus poemas fazem alusões mais ou menos explícitas a esses acontecimentos, que talvez tenham reforçado sua visão trágica da vida; mas, com exceção de “España, aparta de mí este cáliz” (livro que escreveu para defender a causa da República espanhola), é difícil enxergar uma causalidade direta entre esses acontecimentos e os poemas. Mesmo quando se inspira em eventos historicamente identificáveis (por exemplo, no poema “Parado numa pedra”, que faz referência às multidões de desempregados causados pela crise de 1929), Vallejo nunca está falando apenas desses eventos; pelo contrário, nele há sempre uma tensão entre o cotidiano e o existencial, entre o mundano e o cósmico.

Capa do livro 'Poemas humanos'

“Poemas humanos”
César Vallejo
Tradução de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco
Coleção Fábula, Editora 34 
328 páginas
R$ 72


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