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Estado de Minas LITERATURA

Inacabado, 'O rei pálido' traz a epifania final de David Foster Wallace

Terceiro e último romance do autor norte-americano morto em 2008 é o testamento - ainda que incompleto - de um dos mais inovadores escritores da última década


25/03/2022 04:00 - atualizado 24/03/2022 23:26

David Foster Wallace
Romancista, contista e ensaísta, David Foster Wallace se movimentava com desenvoltura em todos esses gênero (foto: siltalapublishing/reproducao)

Alguns funcionários do fisco, lotados em um escritório na cidade de Peoria, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, em meados da década de 1980: eis os habitantes da “terra muito velha” pela qual circula David Foster Wallace (também conhecido apenas pelas iniciais DFW) em “O rei pálido”, seu terceiro e derradeiro romance. Lançado postumamente em 2011 e finalista do Pulitzer no ano seguinte, trata-se de um livro inacabado.

Após o suicídio do autor, em 2008, o editor Michael Pietsch se viu soterrado por arquivos, pastas, disquetes, resmas manuscritas e anotações em cadernos. Assim, o que temos em mãos é também fruto de um enorme esforço editorial, pois, em meio à papelada deixada por DFW, não havia um esquema que norteasse o trabalho de organização do material. Assim, à medida que alguns personagens e linhas narrativas se sobressaem, e há várias e várias passagens de enorme beleza literária, o que o leitor tem a fazer é se deixar levar por esses fragmentos, regozijando-se com o que foi feito e intuindo o que o autor talvez pretendesse fazer.
 
Dada a sua incompletude, romances inacabados por motivos de força maior — e não existe força maior do que a morte (nem mesmo os impostos) — tendem a deixar os leitores com um nó na garganta. Impossível não lamentar a inconclusão. Em se tratando de “O rei pálido”, esse nó é ainda mais apertado: “2666”, de Roberto Bolaño, e “O grande”, de Juan Jose Saer, para citar duas obras-primas lançadas neste século, são livros mais “acabados” do que o romance de DFW. Mas, ainda assim, ele é muito bem-sucedido na concretização de seu universo ficcional. 

Teia de personagens e situações

O que “falta” são maiores desdobramentos ulteriores e paralelos, o momento (como em “Graça infinita”) em que essa teia de personagens e situações converge de alguma ou de várias maneiras. Temos mais do que um vislumbre disso em alguns momentos, como nos capítulos 14 (cuja estrutura lembra a dos contos-título de “Breves entrevistas com homens hediondos”), 19 (o bate-papo no elevador oferecendo pérolas como: “A extraordinária apatia política que se seguiu a Watergate e ao Vietnã e a institucionalização da rebelião comunitária entre as minorias só vão se aprofundar. Política depende de consenso, e o legado publicitário dos anos sessenta diz que consenso é repressão.”), 29 (você jamais esquecerá a história envolvendo Marcus Gordão, o Agiota e Diablo, o Surrealista Canhoto — “Ninguém na sua universidade tinha uns nomes tipo Joe ou Bill?”)  e 46 (um longo diálogo em que, ao final, dadas as coisas ditas e não ditas entre dois indivíduos, quem está levitando é o leitor).

Não obstante a reiterada incompletude da obra, é incrível como vários dos personagens já aparecem inteiros. Nenhum dos fragmentos coligidos pelo editor é dispensável, longe disso, e o ideal (até para se familiarizar com a ambientação, as intrigas e, sim, os fantasmas do lugar) é seguir a ordem estabelecida na edição, mas há capítulos que se sustentam quase — repito: quase — como narrativas autônomas. Em geral, são passagens que se debruçam sobre a vida pregressa e/ou interior de um punhado de personagens, como o “médium de fatos” Claude Sylvanshine (2, 7, 15, e o que é aquela ligação em 30?), Leonard Stecyk (5, 12), Lane A. Dean Jr. (6, 33), Toni Ware (8, 45), David Cusk (13) e Chris Fogle (22).

ilustração sobre o livro 'O rei pálido: um romance inacabado'
(foto: Quinho)
O próprio DFW se coloca como personagem, e o “prefácio” (9) brinca com a “verdade” da narrativa supostamente memorialística (“A verdade é que há, nesse relato não ficcional, certas leves alterações e reorganizações estratégicas”; “Você meio que tem que deixar algumas coisas passarem, nisso de escrever não ficção”) e com a própria aparência do autor e das coisas — vide o local onde todos trabalham, prédio elusivo desde a sua arquitetura, “com sua imensa fachada autocontemplativa”. Há, também, uma espécie de Doppelgänger burocrático de DFW, na verdade outro personagem com o mesmo nome, o que provoca uma “redundância fantasma” (38) e diversos mal-entendidos, um deles particularmente constrangedor (24) no primeiro dia dele como funcionário do fisco.

Das passagens citadas até aqui, o longo depoimento de Fogle, a narrativa acerca do passado traumático de Ware e a dupla “confissão” de Meredith Rand (46) talvez sejam os melhores exemplos da capacidade que DFW tem de expor certas fraturas e dar estofo e humanidade aos personagens que cria. Embora ele tenha anotado que a “trama é uma série de preparações para coisas que vão acontecer, sem que nada aconteça de fato” — o que é reiterado pela ideia de uma peça teatral ventilada por um personagem, peça em que nada acontece, ou em que a ação só acontece depois que a plateia desiste e vai embora —, somos envolvidos por uma série de acontecimentos às vezes terríveis (o analista morto há dias sem que os colegas percebam; os abusos sofridos por Ware; o destino do pai de Fogle), às vezes pedestres (o atentado que não é atentado; a conversa fiada dos funcionários no intervalo; a irmã de Nugent imitando a moça d’“O exorcista”), mas desvelados em um tom não raro compassivo e, no caso de Ware (8), com uma levada que ecoa Cormac McCarthy: “O sol lá no alto como um olho mágico que se mostrava o coração do inferno consumindo-se sozinho”.

É graças ao talento de DFW e à generosidade dele para com os personagens que “O rei pálido”, em vez de se deixar abraçar pelo “véu de tédio”, pelo “tédio além do tédio”, abraça o leitor. A qualidade narrativa do romance está ancorada nessa proximidade que ele cria entre nós e os personagens. Aquele esforço compassivo é muito bem-sucedido; mesmo a ironia funciona como um vetor de aproximação, não de distanciamento. E é graças a tudo isso que, volta e meia, somos pegos no contrapé: seja em uma aula de marcenaria do ensino médio, seja em um bar no qual os funcionários do fisco se reúnem após o expediente, as epifanias se materializam uma após a outra.

Trecho
“As habilidades relacionais da mãe eram insignificantes e não incluíam a fala confiável ou consistente. A filha foi aprendendo a confiar em ações e detalhadamente ler sinais dos quais o grosso das crianças se mantém inocente. O surrado atlas rodoviário tinha então aparecido e estendido jazia sobre a fresta mediana do balcão aberto no estado natal da mãe sobre cuja representação de seu ponto de origem restava um esporo de muco seco rajado de rubro fio de sangue. O atlas ficou aberto daquele jeito por quase uma semana inconsulto; elas comiam em volta dele. Acumulava cinzas que o vento trazia pela tela rasgada. Formigas assolavam todos os trailers do parque, havendo algo na cinza do fogo de que elas precisavam. (...)”

Guia de leitura da obra de DFW
Romancista, contista e ensaísta, David Foster Wallace se movimentava com desenvoltura em todos esses gêneros. Os livros citados abaixo saíram no Brasil pela Companhia das Letras. Uma coletânea de entrevistas, “Um antídoto contra a solidão”, foi publicada em 2021 pela editora mineira Âyiné.

Na prosa de não ficção, a coletânea “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo” (trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari) vai à Feira Estadual de Illinois, a um cruzeiro pelo Caribe e ao Festival da Lagosta do Maine. O volume também inclui “Isto é água”, discurso que viralizou após a morte de DFW e no qual é sublinhada aquela “liberdade de ver os outros”.

Essa liberdade comparece inteira em “Graça infinita” (trad.: Caetano Galindo). Drogas, tênis, depressão, cinema, caos político (aliás, em tempos de guerra da Ucrânia, sugiro a passagem com o jogo Eskhaton, a partir da pág. 331) e virtuosismo: tudo comparece ali. Não custa lembrar que o primeiro romance do autor, o divertidíssimo e wittgensteiniano “The broom of the system”, permanece inédito por aqui. Não quero engolir o universo como Bombardini, mas há ausências inexplicáveis em nossas prateleiras (como William Gaddis, uma das inspirações literárias de DFW e um dos maiores autores do século 20).

Por fim, “Breves entrevistas com homens hediondos” (trad.: José Rubens Siqueira) traz alguns dos melhores contos do autor, como “A pessoa deprimida” e “Sem querer dizer nada”. Seria ótimo o leitor não fluente em inglês ter à disposição a melhor coletânea de DFW, “Oblivion” — é nela que está “The suffering channel”, sobre um jornalista que, às vésperas dos atentados de 11/9, tenta escrever sobre um artista que defeca suas obras.

André de Leones é escritor, autor de "Eufrates”’ (José Olympio), entre outros romances
capa do livro 'O rei pálido:um romance inacabado'

“O rei pálido: um romance inacabado”
David Foster Wallace
Tradução de Caetano W. Gallindo 
Companhia das Letras
608 páginas
R$ 114,90


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