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Estado de Minas LITERATURA

Primeira leitura: 'Potlatch', de Guilherme Gontijo Flores

Leia os poemas do poeta, professor e tradutor radicado em Curitiba


25/02/2022 04:00

O poeta e escritor Guilherme Gontijo Flores
(foto: Rafael Dabul/Divulgacao)

A que nos coube

Não é só uma a terra dos pais
e a terra que nos coube, nem é uma
a sanha que nos move, a sina
dura de quem não é jamais capaz
de revirar torrões em paz,
de quem nas mesmas guerras ensina
as artes de explodir a carne, a fina
forma de repassar um giz
no mesmo chão como quem pôs
ali mais um tratado do destino,
(o solo em posse que o confina
a pasto, a pedra, a pós
de nós).

Não é só uma a terra
que não nos cabe dentro ou fora,
não é mais uno o ciclo que a conforma
em nós, não é mais certa
a senda escalavrada, o ferro
estripado da terra, a tora
nas ferrovias onde o céu
demora em desabar, o inferno
desta partilha interminável de desterro
em terra; e o que se consuma agora
não é a perda do conjunto, a porta
pra sempre entreaberta
na fresta muito estreita.

É o pranto
do tempo terminado, o tempo
que nos convoca agora, fora e dentro
da terra, neste instante
ou no seguinte,
o mistério que turvo feito unguento
nos cobre as chagas, o lento
comércio dos dias, o adiante
adiado e cumprido antecipadamente,
os círculos que damos, os momentos
de mãos trocadas, o momento em que se inventa
o tempo, a terra, outros portentos
que serão nossos, como somos
um sal da terra, bruto,
um começo de sol irresoluto,

enquanto não cansamos,
enquanto não sumimos,
enquanto um rastro arcaico oculta
algo que explode, e alguém ainda escuta
os pomos que clamamos
os dons que construímos
nas ruínas, nesta parca brita
que somos, nesta labuta
de sonhos que sorrimos.

Não é só uma a terra dos pais,
a que nos coube, a única
a que pertenço em despertença cínica,
esta que só começará depois

Inverta-se o olhar na árvore

Inverta-se o olhar na árvore,
destronque-se do cerne a ser na ponta:
ela está certa se esperta-se, oferta-se ávida,
avessa e árida a quem a atravessa.

Meça-se a folha por quem olha
demorado do lado de fora,
o ar é sua área, sua arena
fotossintética, sua ética

é que devore o ar inverso
o arreverso no carbono,
o ar áfono, o diáfano
correndo seiva adentro.

É um armarinho de modos,
nesse caminho todas se moldam
rumo ao galho, ao ramalho
que fazem como face da árvore.

Uma rama a outra ama
a cada encontro, do feixe
faz-se tronco, e no estanque
aparente encontram a terra

e se aterram na espreita de água inversa,
céu acima, seiva ao cimo,
deixa que o olho se molhe a correr à farta,
seja pupilo da pupila, a água correlata.

Lázaro

Levanta agora:
a cúrcuma constela
a terra, mas desponta
a folha que recende
um parco rastro da raiz.

Levanta e vem:
um Lázaro contempla
a vastação inútil
à sua volta, estala
as juntas e caminha
gruta afora, sem
ter pedido nada disso.

Levanta: não precisa,
e como não precisa
é tudo que te resta
um ovo racha, um ventre
vai contraído, a cama
é quente, tudo é tão
somente o pedido
vão que te carrega.

Levanta e anda.
Aonde não importa.
Levanta a toda hora,
pois é depois da última


Tudo termina

Tudo termina, é certo, já sabemos
desde o começo, tudo se esvanece
feito névoa na chuva, tudo nesse
mundo deriva igual àqueles remos
que sem querer soltaram no descanso
do barco desatentos e desandam
na correnteza lente leve mansa
que ainda assim carrega e tudo manda
perder-se além da vista igual vapor
que sai do asfalto e turva os olhos ou
o boneco de neve que me encara
depois que uma garoa reverdece
o campo e ele deformado tece
um rastro que persiste e nele traz a minha cara.

Tudo é sagrado pois se perde: é rara
a vida, bem sabemos, mas transborda
feito aquele relógio de dar corda
do teu avô ou bisavô que para
a cada instante ou que parava e vai
seguir parado na gaveta, mas
ainda assim convoca muito mais,
porque seu rastro é justo o que se esvai;
e o boneco de neve que me enfrenta
e que fiz pra vocês como um rebento
torto, tornado um elo que mantemos
contra a distância, ele agora me acusa
seu fim e ainda assim também recusa
em terminar: nada termina, é certo, já sabemos
da terra, neste instante
ou no seguinte,
o mistério que turvo feito unguento
nos cobre as chagas, o lento
comércio dos dias, o adiante
adiado e cumprido antecipadamente,
os círculos que damos, os momentos
de mãos trocadas, o momento em que se inventa
o tempo, a terra, outros portentos
que serão nossos, como somos
um sal da terra, bruto,
um começo de sol irresoluto,
enquanto não cansamos,
enquanto não sumimos,
enquanto um rastro arcaico oculta
algo que explode, e alguém ainda escuta
os pomos que clamamos
os dons que construímos
nas ruínas, nesta parca brita
que somos, nesta labuta
de sonhos que sorrimos.
Não é só uma a terra dos pais,
a que nos coube, a única
a que pertenço em despertença cínica,
esta que só começará depois.


Sobre o autor 

Poeta, professor e tradutor, Guilherme Gontijo Flores nasceu em Brasília, em 1984, e mora em Curitiba. Escreveu, entre outros livros, "Brasa enganosa"(2013), "carvão::capim"(2018) e "História de Joia"(2019). Sua tradução de "A anatomia da melancolia", de Robert Burton, recebeu os prêmios APCA e Jabuti. Também organizou e traduziu as obras de François Rabelais para a Editora 34. Organizou, com Ricardo Domeneck, o livro "Batendo pasto" (Relicário), da mineira Maria Lúcia Alvim, vencedor do Jabuti de poesia de 2021. Os poemas desta página são do livro "Potlatch". O título é uma palavra do chinook, uma família de línguas indígenas da América do Norte, e define a cerimônia em que membros do grupo investiam numa troca violenta de oferendas e presentes.

Capa do livro Potlatch
(foto: Todavia/Divulgação)
“POTLATCH”
Guilherme Gontijo Flores
Todavia
126 páginas
R$ 59,90


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