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Estado de Minas

Livro sobre João Cabral de Melo Neto revela um poeta sem plumas

Assinada pelo professor Ivan Marques, biografia consegue reproduzir, com elegância, o tom amargo e cético que norteou a vida do escritor


21/01/2022 04:00

João Pombo Barile *

Especial para o EM

 

“Sina de poeta”: esse é o nome da crônica de Otto Lara Resende, publicada em 1992, quando João Cabral de Melo Neto venceu o prêmio Neustadt. Feliz com a vitória do amigo pernambucano, Otto escreve: “São 40 mil dólares. Nada mau. O Neustadt já contemplou Octavio Paz, Ungaretti, Francis Ponge e Elizabeth Bishop. Dizem que esse prêmio é o aperitivo do Nobel”. 

 

Satisfeito com o prêmio, consagração definitiva de sua obra, João Cabral, no entanto, não reagiu com o mesmo entusiasmo. “A poesia no Brasil não vive do público, porque ninguém lê”, confessou Cabral ao amigo mineiro. O poeta gostava de brincar com Otto, dizendo que a editora de seus poemas tinha mais funcionários do que ele tinha de leitores.

 

Lembrei-me dessa crônica do Otto, algumas vezes, quando estava lendo “João Cabral de Melo Neto: uma biografia”, de Ivan Marques. O livro, escrito pelo professor da Universidade de São Paulo e publicado pela Todavia, consegue reproduzir o tom amargo, cético, duro e áspero que parece ter cercado João Cabral durante toda a sua vida. O poeta da dor de cabeça.

 

Um catatau com mais de 500 páginas, e que vai da infância à beira do rio Capibaribe, em Pernambuco, até a morte em um luxuoso apartamento no Rio de Janeiro, a biografia refaz a trajetória de Cabral por meio de seus livros, dos países onde morou, da trajetória no Itamaraty e das cartas que trocou com escritores e amigos. Com um texto elegante, claro e sem firulas ou divagações teóricas que estragam tantas biografias, Ivan escreveu um livro importante. Com toneladas de informação. E que já se tornou fundamental para quem se interessa pela obra de Cabral.

 

A seguir, uma entrevista do autor da biografia ao Pensar:

 

Você lançou, em 2011, “Cenas de um modernismo de província”.  Nele, analisou a obra de quatro autores da literatura modernista produzida em Minas nos anos de 1920/30: Drummond, Cyro dos Anjos, Emílio Moura e João Alphonsus. Agora, escreveu sobre João Cabral. Como chegou ao poeta? 

“Cenas de um modernismo de província” foi o resultado da minha pesquisa de doutorado sobre o modernismo mineiro, defendida em 2005, na Universidade de São Paulo. Ao estudar os quatro autores mencionados, procurei discutir as singularidades do grupo de Belo Horizonte e suas contribuições para o debate modernista que, sob a liderança de Mário de Andrade e outros intelectuais, repensou as letras e as artes no Brasil dos anos 1920. Em 2008, ingressei como professor de literatura brasileira na USP, o que me permitiu aprofundar a pesquisa sobre o modernismo e seus desdobramentos em nossa cultura. Em diversas ocasiões, tive a oportunidade de ensinar a poesia de João Cabral de Melo Neto, que sempre me pareceu muito instigante para debates em sala de aula, já que ele punha em discussão não apenas a concepção tradicional de poesia, mas a própria formação, as diretrizes, o sentido da tradição poética nacional. Em 2018, a dois anos do centenário de nascimento de João Cabral, os editores da Todavia, Flávio Moura e Leandro Sarmatz, perguntaram se eu teria interesse em escrever a biografia do poeta. Hesitei, pois não tinha experiência no ramo. E estava consciente de que seria uma empreitada de fôlego, difícil e arriscada. Mas o livro me pareceu de imediato uma coisa necessária, dada a inexistência de uma biografia cabralina mais alentada. Como leitor e crítico de literatura, nunca tive prevenção contra dados biográficos e históricos, que sempre foram aproveitados em meus livros e artigos. E, se jamais havia escrito uma biografia, a carreira anterior como jornalista da área cultural me permitiu acumular experiência na produção de documentários e perfis de escritores. Em suma, considerando todas essas razões, o convite da editora, além de sedutor, se mostrou irrecusável.

 

Você trata, em vários capítulos, da relação de Cabral com Drummond. Começa o livro, aliás, com o primeiro encontro dos dois, no carnaval de 1940. E acompanha toda a trajetória, até o esfriamento completo da amizade. Por que eles acabaram tão distantes?

Acredito que, para além dos desentendimentos pessoais (incidentes que, com o tempo, parecem tão insignificantes), o que mais pesou para que Cabral e Drummond se afastassem e praticamente rompessem a amizade foi a competição entre os dois poetas. No princípio, o que existia era uma grande admiração do pernambucano pelo seu mestre mineiro, de quem admirava especialmente as obras iniciais, “Alguma poesia” e “Brejo das almas”, livros da fase modernista, escritos em Belo Horizonte. A poesia irônica de Drummond foi uma das principais fontes da dicção poética de Cabral, que demorou a se libertar dessa sombra drummondiana. Depois, contudo, a rivalidade se impôs e se exacerbou. É certo que a radicalização de seu projeto construtivo e antilírico e sua originalíssima incursão no campo da poesia social a partir de “O cão sem plumas” (1950), na mesma etapa em que Drummond, abdicando da experiência que culminara em “A rosa do povo” (1945), investia pesado em poesia lírica, verborrágica e “metafísica”, também explicam o distanciamento. Mas João Cabral era amigo de outros poetas com linguagem e preocupações diferentes das suas (Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Lêdo Ivo, entre outros), e o dissenso estético nunca o levou a romper essas amizades. Penso que a dificuldade com Drummond foi bem maior não apenas por conta do temperamento seco e reservado do poeta mineiro, mas sobretudo devido à competição que mencionei. Quem era o maior poeta brasileiro? Essa pergunta pesou muito na trajetória de Cabral. Embora os concretistas e outros jovens poetas preferissem a oficina poética cabralina, a maior abrangência, o alcance maior da obra de Drummond pode ter sido responsável por boa parte das inseguranças de João Cabral no meio literário brasileiro, do qual ele se mantinha distante também por causa de sua vida diplomática em outros países.

 

Você afirma que Cabral foi um grande artífice: um exímio poeta no sentido de lidar com as palavras, imagens e ritmos. Mas esse trabalho com a palavra não impediu que sua poesia também tivesse emoção. Em um dos trechos do livro você cita a expressão “máquina de comover”, presente na epígrafe de “O engenheiro” como uma imagem para o próprio fazer poético. A emoção está presente na obra, mas ela é produzida racionalmente. Isto faz pensar nos concretistas. Como vê a relação de Cabral com os poetas concretos?

O concretismo, embora tenha nascido como um movimento internacional, incluiu em seu paideuma dois antecessores nacionais, que figuram com destaque, ao lado de Mallarmé, Joyce, e.e. cummings e Apollinaire, no Plano Piloto da Poesia concreta: Oswald de Andrade, com seus “minutos de poesia”, e o “engenheiro” João Cabral de Melo Neto, por sua “linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso”. Décio Pignatari e Haroldo de Campos travaram contatos com João Cabral na Europa e Augusto de Campos chegou a se corresponder com ele. Cabral os tinha em alta conta, julgava-os mais informados e atualizados do que os modernistas, e se orgulhava do fato de ser apontado como precursor dos concretos. Mas não concordava, em absoluto, com alguns preceitos do concretismo, que decretou o “encerramento do ciclo histórico do verso”, isto é, a eliminação do verso e do discurso em favor de um método analógico e ideogrâmico. Não por acaso, a poesia “suja” produzida por Cabral a partir de “O rio” e, sobretudo, “Morte e vida severina”, foi bastante criticada pelos concretos, que desprezavam essa “segunda água” da obra cabralina, inferior, segundo eles, a livros como “O engenheiro” e “Psicologia da composição”. Por brincadeira, João Cabral chegou a dizer que, em relação aos concretos, ele se via como o trampolim de uma piscina, impedido de dar o salto por estar preso ao chão. Mas a verdade é que, diferentemente de outros poetas que aderiram ao concretismo, ou ao menos fizeram experiências nesse sentido (Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira), Cabral jamais abriu mão do verso e da linguagem discursiva em seus poemas.

 

Você deve ter sido quem primeiro explicitou a importância de Willy Lewin, o “descobridor” de Cabral. Poderia falar da importância de Willy na formação do poeta?

Desde o princípio, me pareceu necessário investigar o perfil desse “descobridor” e também o de Vicente do Rego Monteiro, que foram as principais influências de João Cabral em sua juventude no Recife, o primeiro na poesia, o segundo nas artes plásticas. Willy Lewin era um intelectual de destaque em Pernambuco, uma espécie de dândi que depois se converteu ao catolicismo. Era amante de cinema e do surrealismo, que foram muito importantes na fase inicial de Cabral. Tanto Willy Lewin como Rego Monteiro eram intelectuais conservadores, simpatizantes do integralismo e até da monarquia. Não por acaso, quando Cabral se mudou para o Rio, Graciliano Ramos, a quem dedicaria dois poemas, se recusou a recebê-lo, por julgar que ele também era um católico reacionário. Depois da mudança, porém, já sob a influência do convívio íntimo com Drummond, João Cabral começou a simpatizar com o pensamento marxista, direção que se aprofundou em sua primeira temporada em Barcelona, quando escreveu “O cão sem plumas”. Em Londres, ele seria vítima da delação que determinou seu afastamento do Itamaraty, acusado de subversão.

 

O jornalista Mario Sérgio Conti afirmou, na resenha que escreveu sobre o seu livro, que Cabral jamais deixou de “ser um grão-senhor”: fazia questão de carros caros e de viver em mansões, cercado por criados. Humilhava-se para obter um cargo ou galardão. Você concorda que Cabral era mesmo um filho da elite da cana-de-açúcar?

Mário Sérgio Conti selecionou e interpretou dados e episódios apresentados no livro e deu ênfase a certos aspectos da biografia de Cabral, sem considerar outros elementos que ajudariam a compor um retrato mais complexo do poeta. É evidente o contraste entre a potência da obra cabralina, tão racional, equilibrada, simétrica, e seu temperamento arrevesado ou sua vida cheia de incidentes, impasses, fragilidades, dificuldades. Nenhum grande artista tem em si mesmo a grandeza de sua obra. A revelação dos pontos frágeis e controversos da trajetória de um poeta monumental como João Cabral tem o efeito de torná-lo mais humano e mais próximo de todos nós. Quanto ao seu enraizamento na aristocracia canavieira, cuja decadência ele também retratou, procurei mostrar esse aspecto com distanciamento. O principal objetivo em todo o livro foi esse, o de dar ver as coisas sem emitir julgamentos, mas deixando o texto aberto para que o leitor, ao unir os dados, produzisse as suas próprias interpretações.

 

A trajetória de “Morte e vida severina” foi muito conturbada. A peça foi escrita para Maria Clara Machado, que não quis encená-la. Poderia falar um pouco da obra? Cabral não gostava mesmo da peça? 

João Cabral se incomodava com o fato de ter ficado conhecido por uma obra que, a seu ver, era inferior a outras de sua lavra, como “Uma faca só lâmina”. Costumava dizer que havia feito o texto às pressas, pensando menos na poesia e mais na comunicação exigida por uma peça de teatro. Revoltava-se com o fato de amigos seus, como Vinicius de Moraes, admirarem o auto de Natal. Outros poetas, como Ferreira Gullar, Affonso Ávila e Sophia de Mello Breyner Andresen, também tinham predileção por “Morte e vida severina”. Mas João Cabral gostava, sim, do texto. Do contrário, o teria refeito e burilado, após a recusa de Maria Clara Machado, ou não o teria jamais publicado. Dez anos depois, a repercussão internacional da montagem do Tuca, com direção de Silnei Siqueira e música de Chico Buarque, foi um acontecimento decisivo não só para a sua consagração como poeta, mas também para a história do teatro brasileiro e da arte engajada, de resistência, feita no país. “Morte e vida severina” não foi um acidente no percurso de João Cabral. Ao contrário, trata-se de um passo lógico e consciente, um aprofundamento dos caminhos abertos pelas obras anteriores, “O cão sem plumas” e “O rio”, e um aproveitamento refletido das lições aprendidas no contato com a poesia espanhola.

 

No livro, você escreve sobre a amizade de João com Vinicius de Moraes. Vinicius sempre foi um poeta invejado entre os poetas de sua geração: um poeta que tinha vida de poeta. Quando ele morreu, o próprio Drummond escreveu que ele “queria ter sido Drummond”. Como você vê a amizade de Cabral e Vinicius?

Eram ambos poetas e diplomatas e foram grandes amigos, a despeito de suas diferenças. Vinicius conheceu Cabral ainda jovem, no Recife, quando lá esteve, no início dos anos 1940. No Rio, por serem colegas do Itamaraty e companheiros de vida boêmia, tornaram-se próximos. Mas Cabral, como é sabido, dizia não gostar de música e lamentava que o amigo, em vez de escrever versos, houvesse se transformado em compositor popular. Segundo Caetano Veloso, João Cabral disse certa vez que, se fosse possível unir o seu rigor ao talento de Vinicius, o Brasil passaria então a ter um grande poeta.

 

Como você acha que teria sido a trajetória de Cabral se Antonio Candido não tivesse escrito o artigo “Poesia ao Norte”?

A importância desse famoso artigo publicado na Folha da Manhã, em 1942, por Antonio Candido, então jovem crítico de rodapé, egresso da USP e do grupo Clima, foi reconhecida diversas vezes por João Cabral. Foi o primeiro texto crítico a respeito de sua poesia divulgado na região sudeste, mas sua repercussão na poesia cabralina foi além desse fato. Quando publicou “Pedra do sono”, João Cabral pertencia ao grupo surrealista liderado por Willy Lewin. Entretanto, na avaliação de Antonio Candido, os poemas desse livro de estreia oscilavam entre o surrealismo e o construtivismo, duas matrizes estéticas distintas e contraditórias, o que levou o crítico a apontar a necessidade de que o jovem poeta definisse melhor seu caminho. Nessa resenha, Cabral encontrou estímulo para aprofundar a sua poética racional e construtiva, já então sob a influência de Le Corbusier. É interessante notar que Candido também o aconselhou a abandonar a poesia pura, hermética, intransitiva, e a se dedicar mais à pesquisa de problemas humanos e coletivos, o que faria dele, ao ver do crítico, um poeta maior — e essa direção também seria seguida posteriormente pelo pernambucano.

 

 

* João Pombo Barile é jornalista e redator do Suplemento Literário do Minas Gerais

 

 

Trecho da biografia

A posse na ABL e a ameaça concretista

 

“Uma preocupação que vinha perturbando a mente de Cabral, a ponto de fazê-lo pensar em desistir da viagem para ir tomar posse na ABL, era a reação dos poetas concretos, que ameaçavam fazer um protesto no dia da posse. Otto Lara Resende se ofereceu para investigar o caso e obteve de Rubem Braga uma notícia tranquilizadora, que remeteu a João: 'Quanto ao novo acadêmico, não vejo qualquer inconveniente em vir ele tomar posse; não há ameaças nenhumas, o que se terá dito são lereias'. Otto era da mesma opinião e tratou de estimular a partida: ‘Não há razão para você adiar, ou não ir. Céu azul, de brigadeiro, teto máximo: pode decolar e boa viagem’. Entretanto, o Correio da Manhã divulgou no fim de abril uma nota assustadora: ‘Os amigos de João Cabral de Melo Neto avisaram que vão esperá-lo no boteco em frente a Academia, no dia de sua posse, bebericando umas e outras, por falta de fatiota necessária para a festa. Enquanto isso, os concretistas Haroldo de Campos e Décio Pignatari ameaçam vir de São Paulo para comparecer à posse de João com posses de velas acesas para velar a morte da poesia... com João Cabral na Academia.”

 

(Trecho de “João Cabral de Melo Neto: Uma biografia”)

 

 

“João Cabral de Melo Neto – uma biografia”

Ivan Marques

Todavia

560 páginas

R$ 109,90

 

 

“Descoberta 
da literatura”

  

Para Ivan Marques, o poema “Descoberta da literatura”, do livro “A escola das facas”, é muito significativo: seja por revelar as origens aristocráticas de João Cabral, seja por mostrar a importância do contato que ele teve ainda na infância com a literatura de cordel e a classe dos traba- lhadores, que seria decisivo em sua obra poética.

 

No dia a dia do engenho, 

toda a semana, durante, 

cochichavam-me em segredo: 

saiu um novo romance. 

E da feira do domingo 

me traziam conspirantes 

para que o lesse e explicasse 

um romance de barbante. 

Sentados na roda morta 

de um carro de boi, sem jante, 

ouviam o folheto guenzo, 

a seu leitor semelhante, 

com as peripécias de espanto 

preditas pelos feirantes. 

Embora as coisas contadas 

e todo o mirabolante 

em nada ou pouco variassem 

nos crimes, no amor, nos lances, 

e soassem como sabidas 

de outros folhetos migrantes,

a tensão era tão densa,

subia tão alarmante,

que o leitor que lia aquilo

como puro alto-falante,

e, sem querer, imantara

todos ali, circunstantes,

receava que confundissem

o de perto com o distante,

o ali com o espaço mágico,

seu franzino com o gigante,

e que o acabassem tomando

pelo autor imaginante

ou tivesse que afrontar

as brabezas do brigante.

(E acabariam, não fossem

contar tudo à casa-grande:

na moita morta do engenho,

um filho-engenho, perante

cassacos do eito e de tudo,

se estava dando ao desplante

de ler letra analfabeta

de curumba, no caçanje

próprio dos cegos de feira,

muitas vezes meliantes.) 


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