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Estado de Minas HISTÓRIA E POLÍTICA

Uma vida em três livros de Ricardo Piglia

Diários de Emilio Renzi, alter-ego do escritor argentino, não desafiam apenas os enigmas da literatura, mas também trazem lições de história e política


01/10/2021 04:00 - atualizado 01/10/2021 10:30

Escritor argentino Ricardo Piglia, de carne e osso
Escritor argentino Ricardo Piglia, de carne e osso (foto: Jorge Silva/Reprodução)

PIGLIA

Muitos anos e um dia

Os três volumes dos diários de Emilio Renzi somam mais de mil páginas. Anos de formação, períodos felizes e muitos dias na vida de Ricardo Emilio Piglia Renzi (1940-2017). O nome composto se quebra, os sobrenomes se alternam. E os jogos entre verdadeiro e falso são disparados em todas as direções. Onde começa o quê? 

Não se trata do propósito de confundir gratuitamente. O escritor argentino Ricardo Piglia, de carne e osso, e o escritor argentino Emilio Renzi, de tinta e papel, são duas faces da mesma autoridade. Nos diários conferidos a Renzi em cadernos e assinados por Piglia em livro, um autor-narrador se imiscui. Onde começa quem? 

É própria ao autor dos relatos de “Nome falso” (1975) e do romance “Respiração artificial” (1980) essa investigação literária que começa suspeitando da própria literatura. Falsa? Artificial? Os diários de Renzi-Piglia são a obra máxima de uma poética calcada entre a experiência vivida e a experiência narrada, entremeadas por linguagem suspensa e suspeita. 

Emilio Renzi é o personagem que aparece pela primeira vez, ainda sem prenome, no conto “A invasão”, do livro homônimo, estreia de Ricardo Piglia em 1967. Dali em diante, seria chamado pela crítica de alter ego e reapareceria diversas vezes em outros textos curtos e no romance “O caminho de Ida” (2013), por exemplo.

Renzi é o personagem-escritor paranoico sempre em busca de desembaraçar enigmas, para colocar em uma frase temas caríssimos a Piglia e habituais a quem se debruça sobre sua ficção. No registro cotidiano da vida cronológica, Renzi se complica ainda mais: pode existir em primeira ou terceira pessoa. Pode ser Piglia ou ele mesmo. Ou vice-versa, tudo misturado.  

Dito assim, as tramas da obra de Ricardo Piglia poderiam parecer complexas demais, impenetráveis. Não são. E esse é apenas um de seus méritos, isto é, narrar e teorizar sem causar aquele espanto de ojeriza intelectual, quando o leitor não se sente convidado para a festa, a não ser que ele também seja escritor.

Laboratório da ficção

O laboratório da ficção de Piglia, transportado por completo para os diários, reserva aos mortais comuns um microscópio cativante, adornado por muita inteligência. Uma de suas importantes matrizes é o romance policial, o que nos aponta essa chave de compreensão comunicativa, um afeto sincero pelo leitor.

Os diários estão repletos de percursos. Urbanos, amorosos e literários. Em mais de uma ocasião, Piglia disse que havia se transformado em escritor para que seu registro da vida, iniciado ainda na adolescência, ganhasse uma justificativa. Os diários antes, a literatura depois. Entretanto, quando decide organizá-los e publicá-los, sabia que estava cometendo o crime perfeito.

Em “Anos de formação”, o título explicita qual é a entrega. Como se faz um escritor na Argentina do final dos anos 1950, primeira metade da década de 1960, que livros e autores ele acessa e incorpora a partir do dia em que a família parte da pequena Adrogué rumo a Mar del Plata, em refúgio político do pai peronista. Na sequência, a receita básica: Jorge Luis Borges e Buenos Aires. 

O “romance de formação” da teoria da literatura é o registro da palavra no dia a dia do “artista quando jovem”. As aspas sobre o lugar-comum prestam aqui alguma homenagem ao escritor muito consciente dos limites e das possibilidades do uso da linguagem, um homem todo tomado por narrativas ficcionais. 

“Os anos felizes” começam em 1968 e vão até 1975. No maior dos três volumes, Piglia-Renzi nos aproxima de uma capital argentina fervilhante, com a cidade sempre impregnada desta atmosfera cultural que tanto atrai o turista, mesmo o mais desavisado. Compreende-se a paixão do autor também pelo cinema, que aparecerá como refúgio em tempos mais tenebrosos, anos depois.

Os diários trazem lições. Sobre a história e a política argentinas, bastante. Sobre o fazer literário, sobretudo. Não à toa muitos resenhistas destacaram essa característica de “manual” ou de “guia”. Muitas entradas podem ser lidas como verbetes de um dicionário de expressões e termos literários ou como glossário de dicas para o aspirante a escritor. 

Os textos se fazem de reflexões e citações diretas que indicam percursos do escritor, que é também crítico e que a vida toda se referiu à construção biográfica como a listagem das obras lidas e comentadas. “Uma autobiografia teórica. A história dos pensamentos de um homem, das suas leituras comentadas. Uma vida exemplar.”

Os diários são também íntimos. Dizem dos períodos de inação, de depressão, da necessidade de aditivos químicos para levar tudo adiante. Contam das amizades e das desavenças com figuras proeminentes à época, algumas ainda em atividade na cena cultural argentina contemporânea, o que proporciona ao leitor quase o prazer da fofoca. 

O terceiro volume, “Um dia na vida”, é sobre a última ditadura militar (1976-1983) e, na parte inicial, sobre o processo de escritura do romance que marcou para sempre a carreira de Piglia, “Respiração artificial”. Angústias em torno dos modos de sobrevivência, soluções para cenas e mergulhos psicológicos das personagens. Os artifícios manejados para segurar a tensão social e a atenção artística.

Os diários são também um mapa de Buenos Aires esparramado no espaço da frase – e só isso já valeria a leitura. Os cafés são nomeados, as ruas em detalhes, os edifícios destacados da paisagem externa e por dentro. O personagem entra e sai, deambula, perambula, sempre na chave de examinar os acontecimentos do dia, as interações com o passado, os desdobramentos no porvir. 

Está todo Ricardo Emilio Piglia Renzi nestas páginas, corpo em movimento e pensamento ensaístico, nos textos mais longos (muitos apresentados em "dias sem data") e nos flashes do dia a dia, como convém. Não poderia estar de fora a noção proustiana do tempo perdido a ser rememorado e do fracasso como propulsor da arte, à moda Witold Gombrowicz. Está, sem dúvida, parte expressiva de três décadas da literatura argentina. E que delícia não é se deparar com Manuel Puig ou Juan José Saer nestes apontamentos de amizade.

Nota pessoal

Por fim, nessa toada, uma nota pessoal. Em 2006, um dia banal na vida de Ricardo Piglia se transformou em jornada inesquecível para este resenhista. Na condição de repórter e pesquisador, com portas abertas pela generosidade da professora e crítica Adriana Pérsico Rodriguez, encontrei Piglia em sua casa, no Bairro de Palermo, na parte que se classifica hoje de Palermo Viejo.   

Simpático, me deixa muito à vontade. De relance, a certa altura chega a apontar os cadernos intermináveis de onde saiu este mundo do qual o leitor agora é testemunha. Sua generosidade, de cabeça levemente inclinada à esquerda, lança o convite para prolongar o encontro profissional em jantar naquela mesma noite, ali perto, no restaurante Lo de Jesus. 

À mesa, entre outros, o psicanalista e escritor Germán García e a tradutora da obra para o grego, Efi Yanopulu. A fala de Ricardo Piglia tem a mesma tonalidade que domina os diários. Seu conhecimento não se traduz em qualquer possibilidade de pedantismo. Sua sabedoria está na abertura para o diálogo. 

Quando a mão do escritor se apoia sobre a do leitor nada imparcial, em momento de argumentação e como recurso expressivo, o gesto tem elegância muito própria e digna, semelhante à que descubro agora ao fechar as páginas dos diários. A ficção foi a morada de Piglia, em constante deslocamento, dúvida e sempre a mesma, como as residências reais do escritor enumeradas ao longo de dias, meses e anos.

Na ação da escrita diária, o “último leitor” nos deixou a presença requerida do nome verdadeiro, a respirar com naturalidade o ar de um dia qualquer na vida de um escritor, vivo, muito vivo entre histórias contaminadas pela própria razão de existir. 

Sérgio de Sá é doutor em Estudos Literários pela UFMG e professor da Faculdade de Comunicação da UnB

“Anos de formação - os diários de Emilio Renzi”
• Ricardo Piglia
•  Todavia Editora
• 384 páginas
• R$ 82,90

“Os anos felizes- os diários de Emilio Renzi” 
• Ricardo Piglia
• Todavia Editora
• 464 páginas
• R$ 89,90

“Um dia na vida - os diários de Emilio Renzi”
• Ricardo Piglia
• Todavia Editora
• 336 páginas
• R$ 89,90


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