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Estado de Minas RACISMO COLONIAL

Cibele Henriques: 'A diáspora brasileira é embranquecida'

Pesquisadora carioca lança livro com estudo sobre o racismo colonial, que impacta no trabalho e formação profissional dos jovens negros brasileiros


20/08/2021 04:00 - atualizado 20/08/2021 08:06

Cibele Henriques, autora do livro 'Racismo colonial - Trabalho e formação profissional'(foto: Arquivo pessoal)
Cibele Henriques, autora do livro 'Racismo colonial - Trabalho e formação profissional' (foto: Arquivo pessoal)
A partir de uma escrita que envolve os “saberes filosóficos pretos”, a pesquisadora Cibele Henriques revela de que maneira o racismo opera no mercado de trabalho no Brasil. No livro “Racismo colonial – Trabalho e formação profissional” (Mórula Editorial), ela estabelece a relação entre o sistema escravista brasileiro e o mercado de trabalho contemporâneo. Lançada em julho, a obra deriva da tese “A máscara de Flandres: o racismo estrutural colonialista no processo de trabalho e formação profissional negro”, que ela defendeu no programa de pós-graduação em serviço social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Na pesquisa de doutoramento, ela realizou entrevistas com negros trabalhadores diaspóricos afro-brasileiros, homens e mulheres, que atuam como servidores públicos, temporários, estudantes em treinamento profissional, cotistas e não cotistas. “Cibele Henriques, assistente social, mulher negra, filha, esposa e mãe de duas meninas, fez uma pesquisa potente e de fôlego, seja no levantamento e estudo de produções teóricas com presença periódica na Biblioteca Nacional, seja na pesquisa de campo com toda a complexidade que a abordagem sobre a questão racial requer”, aponta Lilia Pougy, professora de serviço social da UFRJ, na apresentação do livro.

“O nosso intuito foi trazer à tona experiências coletivas de racismo que foram silenciadas, ocultadas e não publicizadas e que são estruturais e reproduzem práticas sociais que se constituem em cargas coloniais pesadas, pois operam opressões raciais de classe, gênero, sexualidade, idade, território e religiosidade, que denominamos de colonialidades”, diz Cibele.

Nesta entrevista, a pesquisadora analisa como o passado colonial do período escravista ainda reflete no mercado de trabalho brasileiro. Cibele propõe os conceitos “branquidade racista” e a “negritude embranquecida” para pensar a respeito da estruturação da sociedade brasileira. Defensora da Lei de Cotas, pondera que a formação acadêmica é fundamental para que os negros ocupem postos de trabalhos mais qualificados e mais bem remunerados. No entanto, ela faz a ressalva de que as universidades, nas quais esses profissionais são formados, ainda operam a partir de epistemologias do embranquecimento. 

Como se expressa o racismo colonial?
Racismo colonial é um termo cunhado pelo pensador martinicano, intelectual, psiquiatra, militante antirracista e anticolonial Franz Fanon, que viveu entre 1925 e 1961 e teceu seus estudos sobre a realidade dos negros na Argélia. Fanon foi um homem de Martinica, que passou pelo processo de colonização, mas que, durante a formação profissional, vai à Argélia e experimenta os aspectos psíquicos. Para poder entender o processo de formação da classe trabalhadora negra brasileira, eu parti dos estudos de Fanon, desse termo racismo colonial, entendendo que, ao me debruçar sobre uma pesquisa empírica de campo, sobre o funcionalismo público brasileiro, numa universidade pública federal, eu pude perceber que o processo de trabalho e formação profissional dos jovens negros e negras da classe trabalhadora brasileira é estruturado pelo racismo colonial.

O primeiro ponto a esclarecer: o racismo colonial é o racismo que também é estrutural. Por que é estrutural? O racismo justificou todo o processo de colonialismo, escravidão, pilhagem, saque, sequestro de africanos e africanas da África e seu processo de escravização. Para além disso, a gente está falando de racismo colonial que não é só antinegro, mas ele também está na pauta do que atinge populações originárias, que eram os donos da terra no Brasil, mas também o racismo colonial que vai atingir povos dominados e colonizados a partir de invasões territoriais militares, a gente está falando de árabes, judeus.

O termo racismo colonial não só engloba o racismo antinegro, vai englobar o racismo, que está na pauta do dia, para os povos colonizados que experimentam, na atualidade, a experiência de um capitalismo dependente. O racismo colonial é uma violência estrutural que se dá durante o processo de colonização, invasão territorial militar e processo de dominação dos corpos por meio da escravização dos povos originários, africanos sequestrados de seus territórios. Fanon vai dizer: ‘Não é só você sentir os efeitos do racismo colonial no seu corpo’. Ele traz na primeira frase do livro “Peles negras, máscaras brancas”: ‘Eu queria ser um negro, eu queria ser um homem, eu queria ser um homem em meio a tantos outros homens. Porém, eu não sou visto como homem, eu sou visto como negro”.

Você afirma na conclusão: “Até quando precisaremos nos desterrar de nossas raízes africanas para que possamos ser ‘negras/os letradas/os’?” Como essas raízes africanas podem modificar as relações no mercado de trabalho?
Essa pergunta é muito importante. A todo tempo, a gente tem uma construção, isso Fanon traz nos estudos dele, de um processo de latificação. Essa latificação dos povos colonizados e essa latificação, pensando no racismo antinegro, que é voltada para a população negra. Latificação é o processo de homogeneização a partir de uma epistemologia eurocêntrica. Quando falo latificação, falo do processo de se tornar embranquecido, tornar-se leite, para entender melhor. Esse processo de latificação, embranquecimento, tornar o outro embranquecido, latificado, como se faz com o leite, está na estrutura das sociedades colonizadas e diaspóricas e ele está colado na agenda do dia, estruturado pelo processo educacional.

A gente pode dizer – e não sou eu que estou dizendo, a própria Lélia Gonzalez diz nos estudos dela, que as crianças negras conhecem o racismo a partir de sua inserção no colégio. É naquele espaço que a gente conhece o racismo e ele é naturalizado. A gente não pode esquecer que o racismo científico foi gestado e desenvolvido por uma academia. Esse espaço educacional traz, em si, essa contradição de um campo de disputas no qual as disputas por uma linguagem não latificada, por uma outra epistemologia tem sido feita a duras penas.

A gente tem todo o embranquecimento da população que está no processo educacional, a gente pode ver isso pela nossa matriz estruturante e estrutural dos currículos educacionais no Brasil. Hoje, podemos recontar a nossa história. Mas, até pouco tempo, não era assim… Se a gente pegar disciplinas como moral e cívica e OSPB, a própria história do Brasil é contada a partir do processo de embranquecimento, da vida dos imigrantes europeus. Para onde foram as pessoas libertas após o período da escravidão? Nós não temos uma historiografia da população negra. Como disse Beatriz Nascimento, a nossa história foi contada por mãos brancas.

Então, quando eu digo até quando vamos precisar desterrar de nossas raízes africanas para poder ter negros e negras letradas, estou dizendo até quando a gente vai precisar apagar a nossa história. A gente não reivindica a nossa história para poder ter acesso a uma educação pública. As nossas crianças negras estão tendo acesso à educação pública que está sendo, cada vez mais, subfinanciada, no sentido de não permitir criar uma massa crítica.

A retomada dessas raízes africanas no mercado de trabalho seria uma maneira de reformar o capitalismo ou de erodi-lo? É possível pensar nessas práticas no mundo em que vivemos ou é uma utopia que devemos perseguir?
É uma questão central entre reforma ou revolução. Ela não é nova. Vários pensadores, Florestan Fernandes, Franz Fanon, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, pensaram sobre isso. Resgatar as raízes africanas – respondo a partir da leitura do Clóvis Moura – é resgatar a dialética radical do negro. E a dialética radical do negro não é uma dialética hegeliana, no sentido de você manter uma relação entre senhor e escravo numa reciprocidade, em que há negociação e pactuação.

Acredito que a dialética radical do negro tem perspectiva de erosão, assim como foram as rebeliões nas senzalas, assim como foram os quilombos do Quariterê ou do Piolho, que foram chefiados por Tereza de Benguela, reivindicava a libertação e a alforria dos africanos, mas também reivindicava outras relações comerciais. Ela negociava sementes. Se a gente for falar da dialética radical do negro, como Clóvis Moura faz, não estamos falando de reformas. Estamos falando de práticas de transformação social. Uma práxis negra na qual se instituiu uma erosão. Enquanto tivermos a produção de relações sociais que são racializadas, constituídas por diferenças raciais, dificilmente a gente vai conseguir mudar as relações no mercado de trabalho.

“Partimos do pressuposto de que a diáspora afro-brasileira ainda é embranquecida e a universidade pública também.” A respeito dessa afirmação, um questionamento: é a diáspora brasileira embranquecida ou a diáspora brasileira se caracteriza exatamente pela resistência a essas políticas de embranquecimento?.
A diáspora brasileira é embranquecida, porque ela precisa se ajustar aos critérios das políticas sociais que são construídas pelo Estado brasileiro. E as políticas sociais, no sentido de pensar a formação do trabalho, aí pensando o processo educacional que latifica, promovem o embranquecimento da classe trabalhadora brasileira.

Não é porque ela queira. A gente resiste muito. Quando você questiona se estou falando do embranquecimento da diáspora brasileira ou se estou falando da diáspora brasileira que resiste a esse processo de embranquecimento, é um processo dialético. Um exemplo: a nossa língua. Falar o português é a expressão máxima desse processo de latificação, embranquecimento. Se você for à África, eles têm mais de 450 dialetos, no Benim e na Nigéria. Nós, no Brasil, todos falamos o português. Essa é uma expressão do embranquecimento da diáspora brasileira. Todos nós somos embranquecidos, porque falamos o português. Não reivindicamos outras línguas.

Quando Lélia Gonzalez fala que deveríamos falar o “guetoguês”, no sentido de fazer uma transgressão a esse ensino regular do português, ela está falando isso. Falar o ‘pretoguês’ é promover uma descolonização da língua, uma práxis social revolucionária. No sentido de não ser um negro ou negra letratada por um sistema público de educação que não permite escolhas. Não temos possibilidades de romper no sentido de escolher. Para você ingressar no mercado de trabalho brasileiro tem que ser um negro ou negra latificado, embranquecido. Tem que falar o português e falar de forma culta.

Se não falar você vai conseguir acesso a postos de trabalho não qualificados, que vão reificar o negro ou negra como uma força de trabalho que não foi capaz de produzir intelectualidade. Eles remuneram mal, no sentido de colocar esses corpos como não humanos, como coisas, que na coisificação social, têm a humanidade negada. As pessoas que trabalham em profissões que são herdeiras de um Brasil colonial como contínuos, empregadas domésticas, babás, auxiliar de serviços gerais são pessoas que estão denunciando o racismo colonial, seus corpos são fixados a partir de uma racialização, de mentes e corpos escravizados.

O livro expõe dois conceitos: “branquidade racista” e “negritude embranquecida”. Pode nos dar alguns exemplos desse conceito no mercado de trabalho?
Quando falo branquidade racista é no sentido de falar de relações de poder. Estou falando de sujeitos que sustentam as relações sociais de produção do Brasil embranquecido. Temos uma construção. Quais são as 11 famílias mais ricas do Brasil? São representantes dessa branquidade racista. Elas dominam não só as relações econômicas, mas têm interferências nas relações políticas e jurídicas. Quem está no Parlamento? Olha a cor do Parlamento. São representantes dessa branquidade racista. Temos um Parlamento que trabalha em parceria com os interesses de uma burguesia.

Os representantes do agronegócio não estão só nas relações comerciais, eles estão no Parlamento. Temos uma branquidade, representantes no sistema econômico e político, que dá sustentabilidade e reforça esse estereótipo do universalismo europeu. A negritude embranquecida é justamente – entendo o embranquecimento como compulsório por meio da construção das políticas sociais ofertadas para a população negra no Brasil. Não é uma escolha por ser uma negritude embranquecida, pelo contrário, há muita resistência. Há movimentos negros lutando. Houve muita revolta nas senzalas, guerrilhas e insurreições. Então, tem uma negritude que resiste. Mas o embranquecimento é compulsório. Para fugir disso, a gente tem que fazer como diz Fanon: erodir com as estruturas coloniais.

 “A universidade é a escola do colonizador e que impõe máscaras brancas e de Flandres às/aos negras/os” é outra das sentenças do livro. O que seriam essas máscaras?
Essa é uma pergunta central. Esse livro tenta responder a isso, mas é uma aproximação. Ainda vou desenvolver outros estudos para responder de forma mais completa, tentando trazer a totalidade do que é isso. Quando eu falo que a universidade é a escola do colonizador é porque na universidade há a afirmação de uma epistemologia eurocêntrica de justificação da modernidade ocidental. A modernidade ocidental não foi construída para promover a democratização de direitos nem muito menos uma cidadania compulsória para povos dominados.

A gente tem uma construção de um episteme no qual a universidade revela a verdade e vai fazer processo de formação de trabalhadores especializados, que vão reproduzir esse mecanismo de um conhecimento universal. Tem a construção de uma filosofia na qual Sócrates apontava a divisão do mundo sensível e o mundo inteligível, onde os povos europeus estão no mundo sensível, da razão e do Iluminismo.

O livro aponta a importância da Lei de Cotas, mas diz que essas ações afirmativas não foram suficientes para descolonizar o ensino superior. O que precisa ainda ser feito?
Elas são importantes, necessárias, mas a gente precisa ampliar, ter mais espaço, renovar as leis de cotas no sentido de assegurar que, realmente, as pessoas declaradas pretas e pardas ingressem sem que haja processo de fraudes nesse acesso. Sou a favor da Lei de Cotas, luto para que sejam ampliadas. A gente precisa enegrecer as estruturas da universidade, a gente precisa desfixar negros e negras em postos de trabalhos menos qualificados e colocá-los em postos de trabalho mais qualificados, pensando no aumento da renda das famílias negras. Quando um jovem negro e negra entra nas universidades e tem acesso a melhores postos de trabalho, melhor remunerados e acesso à pós-graduação, faz o processo de aumentar a renda familiar de sua família e ele vai ser o esteio de outros familiares, o que vai permitir que outros familiares entrem nessas estruturas tão embranquecidas.
(foto: Mórula Editorial/Reprodução)
(foto: Mórula Editorial/Reprodução)

Racismo Colonial – trabalho e formação profissional
• Cibele Henriques
• Mórula Editorial
• 268 páginas
• R$ 44


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