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Estado de Minas

Stênio Gardel: "É difícil contar uma história sem o afeto"

No romance de estreia, 'A palavra que resta', escritor cearense narra uma história sobre incompreensão, incomunicabilidade e exclusão social


06/08/2021 04:00

Rosualdo Rodrigues
ESPECIAL PARA O EM

O percurso natural de uma carta, uma vez escrita, é chegar ao seu destinatário e ser por ele lida. Mas não é o que acontece em “A palavra que resta”, livro de estreia do cearense Stênio Gardel. Analfabeto, Raimundo Gaudêncio, guarda por 51 anos uma carta que recebeu ainda na juventude. O envelope fechado segue com ele por todo esse tempo “dentro do saco plástico dentro da carteira dentro do bolso junto ao corpo (...) fora do saco plástico, dentro de uma caixa de sapato debaixo da cama, nas mãos de Raimundo dentro do ônibus...”

A impossibilidade do personagem de ler a carta, por mais que o deseje, funde-se a um emaranhado de outras tantas impossibilidades expostas ao longo da narrativa. Mas, por mais que aguce a curiosidade do leitor, o que diz a mensagem -- ou o destino que Cícero tomou -- importa menos ao autor do livro do que o vão deixado por essa comunicação que não se completa. É sobre esse vão que “A palavra que resta” se desenvolve, sobre o abismo deixado pelo não lido, mas também pelo não dito e pelo não compreendido nas relações familiares e afetivas de Raimundo.

O que Gardel quer contar é uma tragédia íntima que começa na zona rural de um interior qualquer do Brasil, onde o protagonista experimenta aos 19 anos intensa paixão por um colega de labuta no campo, Cícero, de mesma idade. Desejo correspondido. Divididos entre o apego um pelo outro e as muitas interrogações sobre o sentimento que nem eles mesmos são capazes de entender, os dois são flagrados em momento íntimo, na beira do rio, pelo pai de Raimundo, que o proíbe de voltar a encontrar o outro rapaz e lhe dá sucessivas surras, para tirar “aquela coisa” de dentro dele.

O desejo confesso do filho por outro homem abre uma chaga na família, remetendo a histórias passadas, mas também empurrando Raimundo em direção a um futuro que só será possível longe daquele lugar ao qual acreditava pertencer até então. Diante da impossibilidade de compreensão e de aceitação, ele foge do alcance da raiva e do cinturão do pai, pega carona em uma boleia de caminhão e some no mundo. Leva no bolso a carta de Cícero, que lhe foi entregue pela irmã pouco antes da partida e a qual ele não permitirá que ninguém leia. Somente ele mesmo, mesmo que seja 50 anos depois.

Oficina literária

Escrito durante uma oficina literária no qual o autor foi aluno, “A palavra que resta” chama a atenção pela estrutura narrativa que transcorre livre como um fluxo de pensamento carregado de memórias e reflexões. Da mesma forma que vagueia com naturalidade entre passado e futuro, o texto passa da voz de um para outro personagem, ou para a terceira pessoa (a voz do próprio narrador), com igual fluidez. O resultado é uma novela curta vigorosa, intensa, para ser lida de um fôlego.

Stênio Gardel viveu até os 17 anos em um interior como aquele onde começa a história de seu personagem, mais precisamente na comunidade Córrego de Areia, zona rural de Limoeiro do Norte (CE). Lá mesmo descobriu a literatura, ao ler “O cão dos Baskerville”, de Arthur Conan Doyle, e se apaixonou pela arte de contar histórias. Em 1997, foi morar em Fortaleza para fazer faculdade e se tornou servidor público concursado no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE). Os experimentos esporádicos com a escrita ganharam força com a publicação de contos em coletâneas das editoras Labrador e Chiado, mas o romance só sairia da imaginação para o papel durante a oficina literária Ateliê de Narrativas, ministrada em Fortaleza pela escritora Socorro Acioli (“Cabeça de santo”), em 2016.

A inspiração veio da vivência cotidiana como funcionário do TRE-CE, onde teve oportunidade de atender muitas pessoas de idade avançada que não sabiam ler nem sequer escrever o próprio nome. Nisso, Gardel enxerga a primeira ligação entre Raimundo e suas experiências pessoais. A segunda é o fato de ele ser homossexual como o personagem, e vêm daí as questões como a autoaceitação e o processo de se encontrar com a própria sexualidade, abordadas no romance de estreia.

No entanto, o autor consegue fazer com que “A palavra que resta” transcenda as questões homoafetivas. O romance de Stênio Gardel parte de uma história íntima para mostrar uma dinâmica social de exclusão, determinada por crenças limitantes e pelas dificuldades de comunicação que dela se originam. A trajetória de Raimundo como carregador de caminhões reprimido, que eventualmente satisfaz seu desejo em cinemas mal-cheirosos onde são exibidos filmes de sexo, coloca em sua rota uma galeria de personagens que vivem à margem como ele próprio. 

E, assim como é vítima dessas circunstâncias, ele se fará algoz quando, por exemplo, se deparar com a travesti Suzzanný. Incapaz de compreendê-la, usará contra ela a mesma violência que lhe aplicou o pai. Ironicamente, será por meio de Suzzaný que o protagonista vai encontrar para si um lugar de afeto. Mas “A palavra que resta” é uma narrativa atravessada por uma dor e uma melancolia profundas, que vem do fato de que mesmo que o destino de Raimundo o encaminhe para uma possível redenção, as palavras que restam, aquelas escritas por Cícero cinco décadas atrás, pouco importam diante do tempo que se perdeu em decorrência do que que não foi dito ou compreendido.

Entrevista/Stênio Gardel

“É muito difícil contar uma história sem o afeto”

Como nasceu “A palavra que resta”?

A ideia central - desse homem que carrega uma carta há muitos anos, nunca aberta - surgiu do encontro entre uma experiência no meu trabalho e uma imagem fictícia. No Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, trabalhei algum tempo com atendimento ao eleitor e encontrei muitos que não conseguiam assinar o nome na hora de receber o título, por exemplo. Acho que isso me marcou, porque essas pessoas, naquele rápido momento em que o mundo pedia delas o conhecimento da escrita, deviam lembrar a infância sem ter passado pela escola ou sem ter aprendido a ler e escrever. A isso, juntou-se a imagem de um homem, sentado a uma mesa, com algo importante para ler, mas sem conseguir. Eu tinha então a célula primeira da história: um homem analfabeto que não podia ler algo importante para sua vida. À medida que busquei respostas e características para perguntas e elementos que essa imagem trazia (quem é esse homem? o que ele precisa ler? por que precisa?), a trama começou a se desenvolver - esse homem é um homem da zona rural, que não aprendeu a ler quando era mais novo nem na vida adulta; o que ele carrega é uma carta; a carta é vestígio de um relacionamento interrompido, e assim por diante, uma resposta instaurando novas perguntas, até que eu tivesse um plano geral do enredo e dos personagens. Não foi um processo tão rápido, como essa descrição pode sugerir. 

“A palavra que resta” se concretizou numa oficina literária. Em que ponto estava a obra quando você chegou a esse laboratório e de que forma ele influenciou no resultado final do livro?

Quando iniciei o módulo básico do Ateliê de Narrativas da Socorro Acioli, em novembro/dezembro de 2016, eu tinha anotações esparsas, trechos de capítulos e um tanto mais da história fermentando na cabeça. Foi depois desse módulo que tomei a decisão de escrever, e essa decisão foi o resultado imediato, digamos, do ateliê na trajetória do livro e na minha trajetória como escritor também. Compromisso assumido, fui aluno dos módulos seguintes da oficina, quando tive a oportunidade de apresentar a história a Socorro e a colegas, e receber deles sugestões. Depois da primeira versão finalizada em agosto de 2017, tive o privilégio de ter a leitura completa da Socorro e o olhar inteligente dela já de cara me deu grandes contribuições. Exemplo é o capítulo Lamparina, que foi sugestão dela naquele momento, porque ela sentiu que a carta, uma personagem por ela mesma, precisava de um espaço sobre a própria vida, quase uma biografia.

O romance transita entre dois universos, o rural e o urbano. Em ambos, Raimundo se defronta de alguma forma com a opressão e a exclusão. Você acredita que a dinâmica social que resulta nisso se dá da mesma forma nesses dois ambientes?

As raízes da exclusão e da violência contra pessoas LGBTQIA+ estão muitas vezes dentro de casa, no círculo sanguíneo, seja uma família da cidade ou da zona rural. O que acontece é que os centros urbanos são rota de fuga, estrada da esperança por um abrigo e uma família outra, que acolha ao invés de repudiar, mas que também podem ser ambientes de preconceito e flagelo, como os vividos, na cidade, por Raimundo e Suzzanný.

Entre tantos temas, por que privilegiar o afeto em sua estreia?

Acredito que é muito difícil contar uma história sem o afeto, que está presente de alguma forma em todas as nossas relações, mesmo que seja como o contrário de afeto. Além disso, fabular sobre amor tem uma força, uma potência como material, tanto para se escrever boas histórias quanto para ter boas leituras, porque é um sentimento por si só imenso. A gente escuta quando se fala do coração.

Considera que as cartas são, por si só, uma forma de expressão literária? Você já foi – ou ainda é – um escrevedor de cartas?

Cartas podem ser textos literários, não apenas nos romances epistolares propriamente ditos, mas, mesmo expressões pessoais em cartas, ou diários também, podem ser lidas como literatura, dado o tratamento da linguagem. Sabe que não sou escrevedor de cartas? Porém, tenho uma lembrança muito bonita sobre elas. Minha avó, depois do descanso do almoço, ia à minha casa (morávamos em um sítio, nossas casas ficavam a 20 metros uma da outra), sentava-se à mesa de jantar, que servia também como minha mesa de estudo, e escrevia cartas para os filhos que moravam longe. Lembro do bloco de papel de carta, dos envelopes, da cabeça da minha avó encarando a folha, a delicadeza com que ela ia escrevendo, bem devagar, mas sempre de caneta, não tinha medo de errar. A escrevedora era ela.

Você nasceu em Limoeiro do Norte, no Ceará. Quais histórias de sua cidade, ou do seu estado, mais o impressionaram a ponto de moldar o seu imaginário?

No livro, há um exemplo claro de uma lembrança dessas histórias. Está no capítulo Casa, no relato do Seu Baraúna sobre um dito encontro com o diabo. A lembrança é de estar na casa de um vizinho de sítio durante uma farinhada, eu devia ter por volta de 11 anos, e ouvir entre as rodas de conversa alguém contando uma história de que existia esse ser e seu pacto, que fazia a pessoa se transformar em outra. Também, a história do choro de uma criança pagã que foi enterrada na frente da nossa casa, quando havia um curral, porque se dizia que crianças  não batizadas deviam ser enterradas debaixo da porteira de um. Essa ainda não usei em um texto, quem sabe no próximo.
 
“A palavra que resta”
Stênio Gardel
Companhia das Letras
160 páginas
R$ 54,90 


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