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Estado de Minas POESIA

O poeta e suas circunstâncias em Arremate, de Armando Freitas Filho

Ao completar 80 anos, o escritor poetiza em termos íntimos e sociais de finitude e permanência


15/01/2021 04:00 - atualizado 15/01/2021 08:21

80 anos
O rigor das flores da primavera
O calor abrupto e rústico do verão
O outono ton sur ton retornando
O rígido frio do inverno
(foto: Companhia das Letras/divulgação)
(foto: Companhia das Letras/divulgação)

Apesar da dedicatória provocativa (“para mim”), Arremate é um presente que Armando Freitas Filho entrega aos leitores brasileiros em meio à pandemia da COVID-19 que contribuiu para a intensificação da degradação social, esta marca indelével do país há pelo menos meia década. Alimentado pelo “oxigênio da época”, o conjunto de poemas deste carioca nascido em 1940 é um verdadeiro acervo poético de um momento histórico (2013-2019) cuja noção de fim quer impor-se como único paradigma, o qual, de certo modo, está indicado já no título do alentado volume, com mais de 300 páginas de poesia de qualidade impressionante.

No dicionário, um “arremate” é o “ato ou efeito de arrematar, término, desfecho, remate, último detalhe para finalizar ou concluir algo”. “Fim, finitude, encerramento” são, portanto, núcleos de assunto do livro e são, também, o que ele propõe em forma de problema na própria estrutura poética dos textos. Os poemas de Armando Freitas Filho aderem, pois, estruturalmente ao presente, sendo essencial, para a sua eficácia estética, a forma como eles se situam em relação ao “nosso tempo”, para lembrar Drummond tão presente nas veias dos versos de Arremate.

Nesse caso, o vetor mais sutil e intenso a costurar as várias seções do livro é o da crítica (às vezes irônica, como no seu próprio título), que põe, afinal, o leitor diante da seguinte equação: “Trata-se um livro sobre desfechos, mas que é uma resistência ao fim”.

Essa dialética está na base do interesse despertado pelos poemas, que se sucedem sob o signo do “arremate”. Para começar do começo, digamos, parafraseando o pensamento de Wittgenstein que serve de epígrafe à obra, que o poeta já anuncia que a constatação do fim tem a utilidade primacial de criar as oportunidades para nos lançarmos além dele. Eis o que Armando Freitas Filho, ao completar 80 anos, recolhe do filósofo para sedimentar cuidadosamente sua poesia de corte especulativo, meditativo, investigativo, crítico, indicando que, quando tem algo em mente, alguém “arremessa-se a si mesmo e não se pode, por isso, observar também o arremesso”.

Como bem registra Mariana Quadros no Prefácio, “chama a atenção o exercício dedicado à reflexão crítica – lírica ensaística”. Embora a prefaciadora refira-se aqui especificamente à primeira seção do livro, não parece ser inapropriado dizer que a “lírica ensaística” está em todos os momentos altos de Arremate, que não são poucos. Nesses momentos, somos conduzidos pelo autor ao seu mondo mentale, onde a reflexão, a busca da elaboração lúcida e crítica da realidade em forma de linguagem e as inquietudes daí derivadas são componentes da atmosfera que permite à poesia viver para além do tal paradigma do fim. É essa consciência que, quiçá com travos irônicos, faz o poeta afirmar: “o poema é mais subliminar/ do que sublime”.

Seções e temas

São seis as seções que compõem Arremate, cada qual com seu tema e trejeito formal próprios, mas todas elas gozando de forte vínculo com a dialética essencial já aqui referida entre a consciência da finitude (como dado pessoal e social) e a ânsia do sujeito (feito forma poética) em arremessar-se para além do fim. Além disso, há um outro fio que enlaça as seções do livro: o caráter de circunstância, que ora é mais explícito, ora mais incidental. O leitor atento notará que o conjunto revela uma disposição do poeta para a “poesia de circunstâncias” no sentido que lhe dava Goethe e que depois é recuperado por Paul Eluard, como citado em artigo na revista Princípios.

Dizia Goethe que “meus poemas são todos poemas de circunstâncias. Inspiram-se na realidade, sobre ela se fundam e repousam. Nada tenho que fazer com poemas que não se baseiam em nada”. Anima a poética de Arremate, portanto, também o apego do verso à realidade, seja ela convocada pelos fatos do jornal, pelas leituras literárias, pelas artes plásticas, pelo próprio corpo do poeta que envelhece ou pela intimidade da casa ou da família.

A primeira seção, “Pincel lápis tesoura goiva lente martelo”, conduz o leitor pelos corredores de uma galeria de arte. Nesse processo, enxergaremos Rodin, Van Gogh, Pacetti e tantos outros a partir de olhos críticos que irão ponderar o registro plástico conforme ele tenha ou não capacidade de dar a ver o “entrecho” aludido pelo instante gravado. E, para isso, o tema do trabalho artístico é determinante para uma “conversa de oficina” provocada por alguém que conhece os métodos de composição e faz a metalinguagem convergir para a materialidade dos instrumentos e das ferramentas, denegando quase sempre o plano abstracionista e etéreo da composição.

A seção seguinte é intitulada “Canetas múltiplas” e dedica-se a iluminar o acervo de leituras do autor e o contato com os materiais da escrita, neste último caso ligando-se também a muitas formas e temas revelados já na primeira seção. Para além das referências e influências, revela-se a pesquisa do “como fazer” literatura ou, mais especificamente, poesia. A substância do trabalho do poeta aqui é tentar definir para si o que são os outros poetas e perseguir a consciência lúcida da materialidade do trabalho, sem a qual a forma viaja para longe do real, dissolvendo-se em idealismo e vaidade. 

“Casa corpo adentro” é o título da terceira seção, a maior de todas. Ela registra, em uma longa série de delicadíssimos poemas, a experiência do corpo que envelhece no contexto doméstico e familiar. O corpo e a casa passam a ser, portanto, elementos mediadores da passagem do tempo e, também, repositórios de signos do perecer e da vitória do tempo sobre a vida transitória, que, entretanto, volta como forma de resistência, através da poesia. Os versos iniciais do poema Passagem funcionam, sob esse prisma, como uma espécie de ponto arquimédico desta seção: “Escrevendo contra a morte./ Para adiá-la o máximo que puder.” 

A quarta seção recebe o título de “Em papel jornal” e debruça-se sobre os acontecimentos terríveis do cotidiano brasileiro dos últimos tempos. Estão ali o golpe de 2016, o assassinato de Marielle Franco, as inúmeras balas perdidas do cotidiano carioca etc. São textos que extraem a poesia de Dias dolorosos os que integram esta seção, bastante menor que a anterior, mas que a esta se une pelo tratamento crítico dos signos do fim, do temor da morte e do desaparecimento de pessoas e de sonhos. A esse respeito, veja-se o poema Diário, um excelente retrato da degradação da sociedade brasileira apresentado através de uma bandeira gravada no muro esboroado por tiros.

A quinta seção é “Rosa, rosa, rosam, rosae, rosae, rosa” e reúne um conjunto delicado de poemas em que a capacidade para a versificação típica de Armando Freitas Filho alcança um patamar efetivamente superior. Ritmo, som e imagem são aqui postos numa articulação a serviço da pulsão erótica (e, portanto, de vida e poesia) que sensibiliza pela beleza poética rara que os textos alcançam. A última seção, “Numeral”, continua a série de poemas que encerra os livros do poeta desde o lançamento de sua obra, reunida e revista em 2003.

Em contraste com a seção precedente, esta evidencia um caráter de esboço, rascunho ou inacabamento, que, por sua vez, não deixa de abrir caminho para versos intensos acerca da passagem do tempo e da reflexão sobre o fazer poético. “Numeral” tem, assim, certa ligação com o primeiro bloco do livro, “Bastidor de 1 poema e 6 em andamento”, pois revela também um quê de bastidores e de esboço crítico ainda não completamente resolvido, mas muito vivo, talvez até pelo próprio “ar de inacabado”. Assim, unindo as duas pontas da obra, voltamos ao seu início ao mesmo tempo em que somos provocados pelo perigo do fim abrupto da sequência numérica a que a seção alude. De qualquer modo, ponderada sob esse prisma, a relação dos últimos poemas com a abertura do livro alude à roda-vida da poesia, o que é uma forma de reconvocar a abertura ao futuro, que, de resto, se contrapõe ao fatalismo do “arremate”.

Em poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade e Antonio Candido, Armando Freitas Filho indica algo que também a sua poesia é capaz de propiciar. Para o poeta, ambos “seguravam a todos e nos erguiam/ à altura onde estavam”. Ler o seu Arremate, especialmente em dias de cão, é viver a experiência de erguer-se acima da barbárie que propagandeia o fim como destino fatal, e, assim, apropriar-se da intensidade de uma poesia que resgata o humano e o lança como força estética e civilizadora para o futuro. Desse modo, se, de acordo com o poeta, é “impossível transferir-se de um dia/ para o outro sem nenhum arranhão”, ao menos nos apropriamos da sua poesia semovente e de sua lucidez alerta. Ao fim e ao cabo, podemos dizer junto com ele: “Seu poema sendo só seu/ inimitável – é de todos nós/ dias adiante”.

*Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da UnB, crítico literário e poeta; autor, entre outros, de Autofonia e A nação drummondiana.


Dois poemas

Palavra

As páginas brancas
as quais deram volume
ao livro primeiro
para a encadernação
ter uma lombada
mesmo mínima
já foram descritas
em outra folha.

Os livros seguintes 
também têm páginas
brancas
infinitas, invisíveis:
nem tudo consegue
ser dito ou permitido.
O que é calado não
é nem melhor nem pior:
não soube apenas.
                   ***

No silêncio

Quando eu não estiver aqui
quem vai passar as chaves na porta
dando duas voltas e mais o ferrolho
e a tranca para barrar os fantasmas de toda cepa?
Quem vai ver se o gás está fechado
muitas vezes e as luzes estratégicas acesas, atentas?
Quem conseguirá com menos tocs nas paredes
compactas do escuro anular a dúvida, o medo
E dormir seguro com a lâmpada da cabeceira só e
apagada?

Arremate
Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
312 páginas
R$ 89, 90.
E-book: R$ 39,90


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