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Com quantos dilemas se faz uma rede?

Uma análise do documentário da Netflix sobre o perigo das redes sociais que, depois de receber muitas críticas, foi resgatado pelo seu maior alvo: o Facebook


06/11/2020 04:00 - atualizado 06/11/2020 01:06


Há um fenômeno social bem comum que encontra explicação na neurociência e consiste basicamente em desgostar de algo que tenha se tornado popular. A variação natural desse cenário prega ainda a existência de um sentimento inverso, um certo apreço, anterior, posterior ou, em muitos casos, amarrado às duas pontas.

O neurocientista britânico Dean Burnett, autor de livros populares como The idiot brain e The happy brain, além de colunista do jornal The Guardian, tenta elencar, de forma muito prática, possíveis razões para esse exercício. O que leva uma pessoa a detestar, e, às vezes, até atacar, algo que a maioria adora? “Nos tempos atuais, (o motivo) seria tráfego na internet. Opiniões controversas ganham mais atenção. Ou pode ser um exemplo de polarização de grupos. Indivíduos que fazem parte de um grupo expressam posições mais extremistas do que o fariam individualmente”, Burnett escreveu, num famoso artigo sobre o Natal, nas festas de 2013, quando a Inglaterra nem cogitava deixar a União Europeia e o auge de Donald Trump no ano era a batalha dos bilionários num ringue de luta livre.

 Há outras respostas possíveis, Burnett acrescenta, tais como rebeldia, criação de identidade, necessidade de atenção ou um impulso na autoestima. “É um processo complexo”, ele conclui no mesmo texto.

O dilema das redes (2020), documentário dirigido por Jeff Orlowski e disponível na Netflix, viveu um carrossel assim. As pessoas assistiram ao filme embaladas por uma certa sensação de familiaridade — em parte por causa de outro documentário, Privacidade hackeada (2019), em parte porque é o dia a dia delas que está ali sendo retratado — e saíram razoavelmente satisfeitas com o que viram. Em um par de semanas, porém, a crítica (especializada ou não) começou a serpentear todas as falhas encravadas no filme. Muitas falhas, muitas críticas. As mais inclementes vindas dos jornalistas Casey Newton e Adi Robertson, do site The Verge, e Mark Beaumont, do New Musical Express, que, entre outros gracejos, classificou o documentário como "tão manipulador quanto o próprio Facebook". 

 De uma hora para outra, como costuma ocorrer nesses casos, O dilema das redes passou de amado a odiado. E o tribunal digital das redes — ironia quase óbvia — foi lá e condenou o documentário. Não com o "cancelamento", que é pena muito pesada, dizem, mas com aquele menosprezo clássico do descarte rápido.

O paquiderme na sala de estar, nesse caso, é que o documentário tem mesmo um punhado de problemas graves. O filme acena em desespero, com as duas mãos, para escancarar mazelas concretas da vida digital, mas peca em pontos cruciais. É um elefante de pelúcia, vá lá, mas não deixa de ser enorme.

Para quem não viu nem pretende, O dilema das redes se divide em três núcleos, um "documental" e dois dramáticos. Naquele que traz personagens reais, há duas dezenas de ex-funcionários de Google, Instagram, Pinterest etc., além de alguns “experts” e investidores, contando como funciona a engrenagem que torna as plataformas ainda mais viciantes. Os outros dois eixos do filme são de encenações que tentam dar vida ao que os nerds de carne e osso estão denunciando, e é bem aí que o filme começa a desandar: a novelinha chinfrim com a família de classe média, que deveria exercer um ponto de angústia e alerta, é quase cômica, e a parte em que o rapaz de Mad men (Vincent Kartheiser) personifica uma inteligência artificial convence menos ainda.

O DILEMA DO DILEMA

  Acontece que não é apenas a ficção que desencapa o fio da meada. E o “dilema do dilema” também não está no fato de a Netflix se basear igualmente em algoritmos e sistemas de recomendação, o que caracterizaria hipocrisia. Fosse esse o grande problema do filme, nós nem estaríamos aqui conversando.

  “Essa imagem de vilão de desenho animado (proposta pelo documentário) parece aquelas teorias da conspiração da direita que dizem que há uma sociedade política secreta manipulando todos os eventos mundiais”, criticou o jornalista Casey Newton. “O filme menciona muito brevemente o WhatsApp, mas não diz que ele é um serviço de mensagens criptografadas altamente privado, sem interferência de algoritmos, e ainda assim um terreno fértil para falsas narrativas”, comparou a também jornalista Adi Robertson. 

Do mesmo espectro de onde partiram críticas como essas, há um caminhão do tamanho de uma Scania. Todas têm o mesmo tom e, mais importante, são todas pertinentes.

  Foi na mesma época em que os canivetes começaram a cair que o personagem principal de O dilema das redes, o ex-designer do Google Tristan Harris, iniciou uma cruzada para tentar salvar o filme. Ou, na mais realista das hipóteses, explicar as partes polêmicas.

 Na melhor das entrevistas que concedeu nesse período, ao podcast Big Technology, Harris se saiu tão bem que fica difícil entender por que ele não usou os mesmos exemplos no documentário. Disse que, se as redes sociais acreditam estar segurando um espelho que reflete a sociedade estragada que temos hoje, elas estão mentindo: “Podem até estar segurando um espelho, mas é um daqueles espelhos dos parques de diversões que distorcem as imagens”. Explicou também, de maneira bem mais didática do que o ator de Mad men, como o sistema de recomendações é uma desgraça social: “64% dos grupos extremistas que as pessoas participam no Facebook são em função do sistema de recomendação do próprio Facebook”. “E no caso do YouTube, 70% do tempo que se passa no site vem das recomendações. Eles recomendam vídeos de Terra plana centenas de milhões de vezes, recomendam vídeos com teorias da conspiração 15 bilhões de vezes.” É uma boa entrevista: quem quiser ouvi-la inteira pode acessar redcircle.com/shows/big-technology-podcast.

AJUDA IMPROVÁVEL

Se Tristan Harris, sozinho, seria capaz de reerguer O dilema das redes, jamais saberemos. Isso porque na mesma semana da entrevista ao podcast, ele recebeu a mais improvável das ajudas nessa tarefa. Sabe-se lá o porquê, Mark Zuckerberg encasquetou com o documentário e resolveu lançar uma nota oficial para rebatê-lo, algo sem precedentes na história da empresa. Não há explicação lógica: como filme, há mais pesados, caso de Privacidade hackeada; como pancada jornalística, há mais fortes, caso de todas as que se seguiram ao escândalo da Cambridge Analytica, em 2018.

 Independentemente do motivo, lá estava ela, a nota oficial do Facebook, singelamente batizada de: Em que O dilema das redes se engana. E, claro, foi o suficiente para reverter o jogo a favor do filme. Assim, o tal fenômeno do desapreço por algo popular fechou seu ciclo lindamente: quem deixou de gostar do filme voltou a achá-lo interessante, já que Zuckerberg decidiu ressuscitá-lo. E mesmo os veículos que haviam esquecido da existência do documentário reabriram a caixinha de ferramentas para dissecar, ponto a ponto, os argumentos do Facebook.

  São sete tópicos na nota da empresa: 1) Vício, 2) Você não é o produto, 3) Algoritmos, 4) Dados, 5) Polarização, 6) Eleições e 7) Desinformação. Pode soar como piada, mas foram os próprios funcionários de comunicação do Facebook que escolheram destacar palavras como “vício”, "polarização", "desinformação" etc. É quase como se o manual mais rudimentar de gerenciamento de crise tivesse sido rasgado em ângulos nunca vistos ainda. A geração LinkedIn lida com as agruras como ninguém.

 O texto é curto e, como é possível imaginar, contém mais omissões do que explicações plausíveis. A beleza desta dança é que na maioria dos pontos em que a nota de “repúdio” do Facebook erra, O dilema das redes erra junto, em poética harmonia.

  O Facebook, por exemplo, alega que as “equipes que cuidam do feed de notícias não são incentivadas a construir recursos que aumentem o tempo empreendido nos produtos”. Para início de conversa, há pouca evidência de que isso seja verdade, e a empresa não fornece nenhuma. E, além disso, mesmo os incautos terão certa dificuldade em acreditar nessa teoria, até porque o Instagram lançou, há cerca de um mês, um novo ajuste no feed que busca justamente o consumo de novos perfis, novos conteúdos e, obviamente, mais tempo no app. O dilema das redes, por sua vez, explora tudo isso muito mal. Repete que há um design construído para estimular o vício, mas, por medo ou inépcia, não o destrincha na prática. O sistema de notificações da vida real, como o Instagram avisando que seus amigos “favoritos” acabaram de publicar no Stories, por exemplo, é bem mais sinistro do que o representado no filme.

 Em outro ponto, a nota do Facebook tenta convencer o usuário de que ele “não é o produto”. Uma tolice suprema, evidentemente. “O Facebook é uma plataforma baseada em anúncios, o que significa que vender anúncios nos possibilita oferecer a todos o poder de se conectar gratuitamente.” A frase é comum dentro da empresa, o que não a torna menos cafajeste. Os usuários já são responsáveis por providenciar 99% do conteúdo da plataforma de graça; se tivessem de pagar para usá-la, teríamos a materialização da insanidade.

  Mas o problema maior nem está aí. Tentar dizer que o consumidor “não é o produto” é negar o óbvio. Ele não apenas é como sempre foi “o produto” no rádio, na televisão, em qualquer empresa de mídia. O que o Facebook nunca dirá, e o filme, mais uma vez, falha em mostrar, é “como” o usuário é o produto (essa, sim, uma aplicação grave). Em que nível de precisão, de invasão, de coleta de dados, o usuário acaba alvejado pelas empresas que compram anúncio na plataforma. E isso, claro, vale não apenas para o Facebook, mas para quase todas as outras empresas baseadas no mesmo modelo de negócio.

Por fim, naquela que talvez seja a mais grave das omissões, tanto da nota de Zuckerberg quanto do filme, a questão da desinformação vem à tona embalada por uma — eis a segunda grande ironia do dia — afirmação falsa: “A ideia de que nós permitimos a desinformação se intensificar na nossa plataforma, ou que, de algum modo, nós nos beneficiamos desse conteúdo, é errada”.

WHATSAPP

 Não. Não é errada. Primeiro, como bem salientou a jornalista Adi Robertson, há o WhatsApp, e ele faz parte da “rede Facebook de comunicação” (inclusive, o ícone do WhatsApp está no cabeçalho da nota). O WhatsApp, hoje, é uma das maiores, se não a maior, arma de desinformação em massa que existe no planeta. As provas nesse sentido, de disparo automatizado de mensagens e de ampla disseminação de conteúdos falsos, especialmente em período eleitoral, são muito superiores a qualquer evidência de que o Facebook esteja tentando combater desinformação no aplicativo. E essa é uma das mais gritantes falhas do filme: ignorar a existência de uma ferramenta como o WhatsApp depois de se vender como o arauto do combate a falsas narrativas e discursos de ódio. 

DESINFORMAÇÃO

Mas ainda que o programa de mensagens fosse docilmente deixado de lado, apenas a título de exercício criativo, a frase do Facebook na nota também seria falaciosa. O Facebook não só permite a desinformação se intensificar na plataforma — ao contrário do que alega — como permite conscientemente. Em um dos incontáveis exemplos, em maio do ano passado, um vídeo claramente adulterado com a congressista norte-americana Nancy Pelosi ficou na rede social por semanas, sendo divulgado por canais de extrema-direita. Não era apenas um vídeo falso, era um vídeo que o próprio Facebook reconhecia como falso, mas optou por não retirá-lo. Apenas em junho a empresa o removeu, depois que ele já havia sido visualizado mais de 2 milhões de vezes, contando apenas um dos grupos no qual foi veiculado.

 Em um caso mais recente, apenas em 12 de outubro deste ano (isso mesmo, de 2020), o Facebook definiu que iria mudar a sua política interna para começar a banir informações que, acredite se quiser, negassem a existência do Holocausto. Parece outra sandice que não deveria encontrar paralelo num universo decente, mas até dia desses, esse tipo de (des)informação, como tantas outras, passeava alegremente pela plataforma, sob a égide da liberdade de expressão. “Lutei com a apreensão entre defender a liberdade de expressão e os danos causados por minimizar ou negar o horror do Holocausto”, Zuckerberg escreveu, ao anunciar a decisão. Ele ainda disse ter mudado de ideia (já havia refutado essa possibilidade em 2018) porque viu dados que mostram aumento da violência antissemita no mundo real. O mesmo argumento foi usado no início do mês para banir o movimento conspiracionista de extrema-direita QAnon, tanto do Facebook quanto do Instagram: “potencial de violência”.

  E essa é mais uma das coincidências que conecta Tristan Harris, o ex-designer protagonista de O dilema das redes, e Mark Zuckerberg, o CEO do Facebook. Lá pelo fim do filme, desafiado a resumir qual seria a ameaça maior das redes, Harris responde: "A tecnologia não é uma ameaça à existência. (O problema) é a tecnologia sendo capaz de trazer à tona o pior da sociedade, e o pior da sociedade ser uma ameaça à existência".

E talvez esteja aí a mensagem mais significativa do filme. Uma que nem o diretor Jeff Orlowski foi capaz de estragar.

 Muito cá entre nós, eu também já estava preparado para entregar O dilema das redes à obscuridade zumbi sem qualquer remorso. Além das razões já citadas, há outras tantas, que não cabem na paciência de ninguém. O documentário empilha frases de efeito que tentam costurar questões desconexas, como filtros de SnapChat e fake news, trata desinformação como se fosse uma entidade com vida própria, convoca Sean Parker para o seu único truque, que é a autopromoção, e ainda encerra com uma cena ridícula, quando a inteligência artificial, recém-saída do rehab, ao que parece, encontra o garoto da novelinha e diz “olá”.

 Mas se até o Facebook fez questão de resgatar o filme, talvez seja aconselhável não descartar O dilema das redes tão rapidamente. Seja por ato falho ou por falha de “sistema”, Zuckerberg reacendeu, ao menos, a importância da discussão. Nesse caso, que a vida “longa” do documentário se estique um bocado mais. Até porque, o fato de ser um filme ruim não reduz em nada a gravidade daquilo que ele está buscando denunciar.

Alexandre Botão é jornalista e pesquisador de mídias digitais


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