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Sentimento religioso e razão poética

Professor Eduardo Veras analisa o poema Setenário das Dores de Nossa Senhora, de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), em artigo que aponta a religiosidade e a modernidade do poeta mineiro


postado em 04/01/2019 05:03

 

Escrito entre 1892 e 1894, mas publicado somente em 1899, dividindo volume com Câmara ardente, Setenário das Dores de Nossa Senhora, de Alphonsus de Guimaraens, é o ponto de partida de uma trajetória poética marcada pela tensão entre o sentimento religioso e a criticidade da razão poética moderna. Sabemos que, na história da arte cristã, a racionalidade poética esteve sempre a serviço da verdade religiosa. Na Divina comédia, de Dante, nas grandes catedrais europeias, nos oratórios de Bach, a inteligência artística e o esmero da forma alcançam níveis poucas vezes igualados de excelência, sempre com o intuito de espelhar a grandeza e perfeição do Criador. E é justamente essa perfeição formal o que primeiro chama nossa atenção no conjunto do Setenário.

Concebido como uma arquitetura significativa, o livro é composto por sete capítulos, contendo cada um sete sonetos, que, organizados em torno dos sete episódios bíblicos que retratam as sete dores de Maria, diretamente evocados por epígrafes retiradas da Vulgata, compõem um tecido narrativo ao mesmo tempo em que se apresentam como meditações de cunho ora lírico, ora metalinguístico sobre as cenas narradas.
Seguindo o esquema de celebração das Dores de Maria, estabelecido no século 14, a narrativa recomposta por Alphonsus de Guimaraens respeita a seguinte sequência: 1ª Dor: profecia de Simeão; 2ª Dor: matança dos inocentes e a fuga para o Egito; 3ª Dor: perda de Jesus em Jerusalém; 4ª Dor: prisão e julgamento de Jesus; 5ª Dor: crucificação e morte de Jesus; 6ª Dor: descida da cruz; e 7ª Dor: sepultamento. Explicitamente fundada sobre o número sete da perfeição (sete Dores, sete capítulos, sete sonetos), a arquitetura do Setenário das Dores de Nossa Senhora representa uma concepção orgânica e significativa de livro, que se opõe ao mero conjunto de poemas esparsos ou à ideia de coletânea.

A tensão a que me refiro está na base do debate que se estabeleceu no âmbito da fortuna crítica de Alphonsus de Guimaraens a respeito do livro. Entre o sentimento religioso e o artesanato verbal, houve quem fizesse questão de enfatizar a lealdade do poeta ao universo cristão. A escritora Henriqueta Lisboa, por exemplo, em conferência proferida no Rio de Janeiro, em 1937, a convite do então ministro da Educação Gustavo Capanema, define o Setenário das Dores de Nossa Senhora como “um livro de orações”, “mais que um livro de versos”. Na visão da grande poeta, os fragmentos consagrados às Dores de Maria se unem como um “rosário maravilhoso que se desgrana como contas”, “pelo mesmo fervor angelical e pela mesma graça lírica”. Por fim, Lisboa propõe uma chave de leitura biográfica para o interesse do poeta pelo destino da mãe de Jesus, que remete à tendência biografista que marca a primeira recepção da obra de Alphonsus: “Desenganado da vida bem cedo (se é que algum dia a ilusão chegou a deslumbrar-lhe a natureza de asceta), recolhe-se ao silêncio e à meditação, porque também ele, com a Virgem da Soledade, deveria sentir a mágoa de ‘ser do céu e viver longe de Deus’”.

A fim de ilustrar o outro lado do debate acerca da relação entre religiosidade e literatura na obra de Alphonsus de Guimaraens, tomemos como exemplo o artigo de Murilo Mendes publicado em 3 de julho de 1937 no jornal Folha de Minas, no qual defende que “a simpatia de Alphonsus pela liturgia tem sua origem na leitura de seus autores prediletos”, entre os quais cita Villiers de L’Isle Adam, além de Huysmans, Verlaine e Mallarmé. Mendes procura demonstrar, em seu texto, que a motivação estética prevalece sobre a confissão religiosa na poética de Alphonsus de Guimaraens, a exemplo do que se verifica nos grandes nomes do Simbolismo francês e, consequentemente, da modernidade poética.

Com efeito, ao ressaltar a supremacia do estético ou, em outras palavras, a autonomia do poético sobre o extraliterário, Murilo Mendes, falando não apenas como leitor de Alphonsus, mas também como um dos principais representantes de nossa modernidade poética, reivindica para o autor do Setenário das Dores de Nossa Senhora o status de poeta moderno. Nesse caso, o ponto central que define o pertencimento à tradição da lírica moderna é o processo de “despersonalização” do discurso poético, que se explica pela quebra da “unidade de poesia e pessoa empírica” de matriz romântica.

Essa afinidade entre a poética de Alphonsus e a modernidade lírica seria cada vez mais ressaltada pela crítica especializada. Em virtude de sua complexidade estrutural, Setenário das Dores de Nossa Senhora se torna um campo privilegiado de reflexão sobre o construtivismo poético que diversos críticos, principalmente no âmbito universitário, passariam a identificar na poética de Alphonsus de Guimaraens.
No livro O simbolismo na poesia de Alphonsus de Guimaraens, o jornalista Tácito Pace afirma que “a intencionalidade da escolha do tema (do Setenário), a arquitetura de sua estruturação, o lirismo litúrgico e a apoteose à Virgem Maria excluem qualquer devaneio relacionado com os problemas sentimentais do poeta e mesmo com seu comportamento emocional, derivado de seu noivado”. Pace fala em “intencionalidade” e privilegia, em sua apreciação da obra, elementos internos à obra literária em oposição à abordagem biográfica tradicional, que entende a obra como expressão de uma pessoa empírica anterior ao texto.

Anos mais tarde, Francine Ricieri, em seu Imagens do poético em Alphonsus de Guimaraens, identificaria, sob o “aparente confessionalismo anacrônico” da obra, justamente uma “intelecção do poético que remete diretamente a concepções que começam a ser concretizadas em obras poéticas como a de Charles Baudelaire e escritores afins”.

Os esforços da crítica em “rever a perspectiva biografista comum à leitura consagrada do poeta”, segundo Ricieri, buscaram evidenciar a riqueza formal e autorreflexiva do livro inaugural de Alphonsus de Guimaraens, características que o inserem de fato no coração da lírica moderna, ao lado de nomes como Baudelaire e Mallarmé.

Em meu trabalho de mestrado, posteriormente publicado em livro – O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens (Relicário, 2016) –, procurei reforçar essa leitura do Setenário, evidenciando a relação entre misticismo e intelecção poética que se estabelece graças à complexa arquitetura da obra, constituída pela convergência de elementos narrativos, líricos, dramáticos e metalinguísticos no interior dos 49 sonetos e dos dois poemas de abertura e encerramento que compõem o livro. Associei essa estrutura discursiva ao “oratório”, gênero da música religiosa inserido na tradição litúrgica do cristianismo. A exemplo dos recitativos dos oratórios, os trechos narrativos do Setenário remetem de maneira mais direta aos episódios da trajetória de Maria representados na Bíblia, enquanto os trechos líricos se associam às meditações e aos momentos de louvor a cargo, no gênero musical, das árias e dos ariosos, como, por exemplo, este trecho, predominantemente narrativo, do soneto 1 da Primeira Dor:

Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na Forma etérea de invisível Pomba.

Diz-lhe o velho Simeão: “Por uma Espada,
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada...”

Exemplos de trechos predominantemente líricos não faltam na obra. Ainda no capítulo inicial, o poeta dedica o soneto VI à descida do Espírito Santo sobre a Mãe do Cristo. Ao contrário do trecho citado anteriormente, esse soneto se caracteriza pela estaticidade, pela ausência quase completa do fluir temporal.

De luar vestido, o fúlgido semblante
Entre bastos cabelos irisados,
E sobre o flanco a túnica irradiante
Que eram nesgas de céus nunca sonhados:

Os seus olhos de poente e de levante
Em silêncios de luz ilimitados;
Era o celeste Cavaleiro andante,
Anunciador de místicos Noivados...

E que Noivado o seu! Nuvens radiosas
Cercando o Mensageiro altivo e doce,
Debaixo de amplo céu de seda e rosas...

E dentro das olheiras cor-de-goivo,
O olhar da Virgem santa eternizou-se:
O Espírito de Deus era o seu Noivo...

Assim, o poema se destaca do conjunto da Primeira Dor por seu lirismo imagético e celebrativo na abordagem da cena. Por isso, embora se enquadre no todo narrativo, esse soneto tem uma função mais lírica que narrativa.
Quanto ao gênero dramático, ele se faz presente no discurso direto, isto é, pela intromissão de vozes alheias à do “narrador” no interior dos sonetos, como naquele, belíssimo, que recupera o diálogo travado entre Jesus e Pilatos (soneto 1 da Quarta Dor), do qual cito o primeiro terceto:
– “És Rei?” – “Disseste-o”. E a multidão oprime
A Pilatus. No entanto para a turba
Ele fala: – “Não lhe acho nenhum crime.

Mas a dimensão mística e a celebração religiosa, que marcam o parentesco desse “oratório” moderno com a tradição litúrgica do cristianismo, não corresponde à totalidade da experiência poética dramatizada no livro de Guimaraens. Ao impulso místico, ao desejo de vivenciar poeticamente o sofrimento de Maria, deve-se acrescentar a interrupção crítica do voo espiritual, realizada pela emersão do sujeito lírico convertido em voz metalinguística, isto é, em dispositivo autorreflexivo, presente em todos os capítulos da obra. Nesses momentos, é comum que os limites da humanidade do poeta diante da santidade de seu objeto de louvor apareçam associados aos limites da própria linguagem, numa interessante convergência entre um problema de ordem teológica e outro de ordem literária. Cito, à guisa de exemplo, os tercetos do soneto 7 da Sexta Dor:

Nem pretendo, Senhora, (fora um sonho)
Dizer toda a agonia que sofrestes
Nos versos que ante vós, humilde, ponho.

Por mais nobre que seja, é sempre tosco,
Tem sempre versos pálidos como estes
O poeta que quiser chorar convosco.

Aqui, vemos o poeta abrir mão da própria narração e da celebração das Dores para, num gesto de distanciamento religioso e discursivo, denunciar a insuficiência da poesia diante do Mistério. Esse reconhecimento dos limites ontológicos da palavra poética, dramatizado no âmbito mesmo de uma empreitada mística, é o elemento moderno – associável à ideia de crítica – que estabelece a tensão poética que distingue o Setenário das Dores de Nossa Senhora tanto de obras confessionais quanto de obras reduzidas ao materialismo poético que vingaria principalmente em vertentes vanguardistas da modernidade poética e que seriam confundidas por muitos críticos com a modernidade em si.


A dialética entre a fé e o reconhecimento dos limites da linguagem se realiza, então, graças à arquitetura dinâmica da obra, que pode ser resumida pela convergência de três dimensões discursivas: primeiro, a narrativa, correspondendo à busca do eu lírico (identificado a uma espécie de recitador) pela vivência poético-mística das Dores de Maria. A segunda dimensão é a lírica, caracterizada pela celebração religiosa dos episódios narrados, e, finamente. O terceiro elemento discursivo é a metalinguística, na qual assiste-se à emersão do sujeito poético e à reflexão sobre os limites ontológicos e poéticos de sua proposta de cantar/vivenciar o sofrimento da mãe de Cristo. Essas três dimensões já estão previstas em Antífona, poema de abertura do Setenário:

ANTÍFONA

Volvo o rosto para o teu afago.
Vendo o consolo dos teus olhares...
Sê propícia para mim que trago
Os olhos mortos de chorar pesares.

A minha alma, pobre ave que se assusta,
Veio encontrar o derradeiro asilo
No teu olhar de Imperatriz augusta,
Cheio de mar e de céu tranquilo.

Olhos piedosos, palmas de exílios,
Vasos de goivos, macerados vasos!
Venho pousar à sombra dos teus cílios,
Que se fecham sobre dois ocasos.

Volvo o peito para as tuas Dores
E o coração para as Sete Espadas...
Dá-me, Senhora, para os teus louvores,
A paz das almas bem-aventuradas.

Dá-me, Senhora, a unção que nunca morre
Nos pobres lábios de quem espera:
Sê propícia para mim, socorre,
Quem te adorara, se adorar pudera!

Mas eu, a poeira que o vento espalha,
O homem de carne vil, cheio de assombros,
O esqueleto que busca uma mortalha,
Pedir o manto que te envolve os ombros!

Adorar-te, Senhora, se eu pudesse
Subir tão alto na hora da agonia!
Sê propícia para a minha prece.
Mãe dos aflitos...

            Ave, Maria...
Esse poema pode ser dividido em quatro momentos. Nas primeiras estrofes, temos a exortação à Virgem, que aparece como uma espécie de bálsamo para o poeta sofredor. Este se apresenta como uma “pobre ave que se assusta”, mas que pode encontrar repouso nos olhos da Santa, comparados à infinitude e à serenidade do mar e do céu. Na terceira estrofe, essa exortação abre espaço para o trecho mais tenso do poema, o momento em que o fervor do poeta se materializa na tentativa de definir poeticamente a figura da Virgem. Temos, então, uma sequência reiterativa de epítetos que se estende por dois versos: “Olhos piedosos, palmas de exílios!/ Vasos de goivos, macerados vasos!”. A estrofe se encerra com uma bela imagem para a totalidade – “Venho pousar à sombra dos teus cílios/ Que se fecham sobre dois ocasos” – ansiada pelo poeta, que enxerga na mãe de Cristo o ponto final dos conflitos da existência, numa espécie de comunhão com o absoluto. A intensificação da súplica e da vontade de comunhão mística acaba desaguando na intenção sacrificial, que se expressa nos seguintes versos, em que o poeta manifesta o desejo de vivenciar as dores de Maria: “Volvo o peito para as tuas Dores/ E o coração para as Sete Espadas...”. Ao fervor desses versos, entretanto, sucede-se o arrefecimento da intenção mística que se dá através da autoconsciência do poeta, que, então, reconhece a própria infimidade perante a Virgem, cujas dores são inatingíveis à vileza humana que o caracteriza. A quarta etapa corresponde ao retorno da súplica, agora humilhada pela consciência do fracasso inevitável, pela cisão insuperável entre o poeta e Nossa Senhora.


Essa peça de abertura do “oratório poético” de Alphonsus de Guimaraens pode ser tomada, portanto, como uma amostra prévia da experiência poética que marcará todos os capítulos do livro. Numa espécie de parábola, seus versos seguem sempre o movimento de ascendência mística e arrefecimento consciente, de tensão religiosa e distensão crítica, de desejo e fracasso metafísico. Por um lado, a obra dialoga com a tradição mística do culto mariano; por outro, mostra-se contaminada pela tradição crítica da modernidade. E é nessa ambivalência que se inscreve, a meu ver, a irredutibilidade da obra tanto ao confessionalismo quanto ao materialismo poético.
Os momentos mais tensos da narrativa das Dores de Nossa Senhora coincidem, no Setenário, com o esforço do poeta em dar forma àquela experiência religiosa. São momentos nitidamente marcados pelo tensionamento da própria linguagem, que procura dar conta de uma realidade que, como anunciado desde o poema de abertura, transcende os limites do humano e, portanto, da própria poesia. Assiste-se, então, ao próprio drama da linguagem diante do intraduzível e ao reconhecimento – de todo moderno – da impotência verbal, da insuficiência da palavra humana, em pleno acordo com a experiência poético-existencial que marca a poética simbolista. Não poderia haver episódio mais dramático, nesse sentido, que o da crucificação de Jesus testemunhada por Maria.
É interessante observar que, em Setenário das Dores de Nossa Senhora, a morte de Cristo é focalizada em um único soneto (o soneto 6 da Quinta Dor), sendo retomada posteriormente apenas de maneira retrospectiva na sequência narrativa. Cabe ao soneto seguinte narrar e meditar sobre o sofrimento de Nossa Senhora diante do martírio de Jesus. Tomando, como em outros poemas do mesmo capítulo, a santa como interlocutora, a narrativa de Alphonsus atinge, no soneto em questão, seu momento mais dramático. A esse soneto, pertence o verso que me parece melhor materializar poeticamente aquele martírio, por meio de contrastes imagéticos:

Escarros que tombavam como lama
Sobre Quem é mais alvo que os arminhos

e, em especial, pela exploração significativa do ritmo dos versos:

Açoites, bofetadas, Cravos, Chagas,
E a esponja, e a Lança, e o Fel, e a Sede estranha
E o sangue santo correndo em bagas.

No primeiro caso, destaca-se o contraste entre a pureza (“alvura”) de Cristo e a vileza (“escarro”/ “lama”) dos agressores. Já na estrofe seguinte, que corresponde ao primeiro terceto do soneto, o ritmo e a sintaxe dos versos evocam, na própria materialidade da linguagem, as agressões e humilhações infligidas ao Cristo e testemunhadas por sua mãe. A sucessão de palavras sem conjunção coordenativa (verso 1), bem como a repetição sistemática da conjunção “e” e do artigo definido (verso 2), reproduzem a insistência, a repetição e a duração das Dores de Cristo ao longo de toda a sua paixão. A disposição dos acentos no segundo verso também tem papel de suma importância na significação do poema. Temos um verso acentuado em todas as sílabas pares, originando uma estrutura rítmica de alternância binária (chamada “pentâmetro jâmbico”), na qual se revezam tempo forte e tempo fraco:

E a Esponja, e a Lança, e o Fel, e a Sede estranha

Essa construção rítmica também é capaz de reproduzir os passos de Cristo, a sequência de sofrimentos aos quais esteve submetido e, acima de tudo, o ritmo dos açoites que o acompanharam em sua caminhada rumo ao Gólgota. Para o poeta, não basta apenas recordar os sofrimentos de Cristo com palavras referenciais, é preciso torná-los presentes, concretos, é preciso reproduzi-los e dramatizá-los na linguagem.


O ritmo desse segundo verso acaba por estabelecer uma relação metafórica entre os açoites e os episódios, metonimicamente evocados, da “Esponja”, da “Lança”, do “Fel” e da “Sede”. Ao se referir a esses momentos da história bíblica, fazendo uso do ritmo binário descrito acima, o poema estabelece uma analogia entre eles e os açoites, evocados por imitação sonora. Por fim, tem-se uma espécie de síntese do sofrimento de Cristo, representado em sua plenitude através dos recursos poéticos empregados.


A exploração dos recursos fônicos, no verso em questão, é responsável pelo aumento considerável da tensão poética, além de contribuir para a sensível aproximação das dimensões do significante e do significado. Por tudo isso, creio que esse verso pode ser tomado como o ápice da experiência místico-poética do Setenário das Dores de Nossa Senhora, como o momento de maior tensão da narrativa, na forma e no conteúdo. Nesse verso, linguagem e matéria narrada se aproximam, proporcionando ao poeta, que praticamente se apaga enquanto sujeito distanciado dos eventos abordados, uma experiência de comunhão semelhante àquela almejada pelos místicos. Como ponto mais alto do quinto capítulo e, em última instância, de toda a obra, o verso em questão marca o momento em que a linguagem mais se deixa afetar pela realidade representada.


Entre a narrativa, a celebração e a autocrítica, o Setenário de Alphonsus de Guimaraens se constrói como um dos livros “mais originais da literatura brasileira”, para lembrar a apreciação de Manuel Bandeira em sua Apresentação da poesia brasileira. Tal originalidade se deve ao casamento perfeito entre sentimento religioso e razão poética, entre a “expressão” da fé e a “construção” do discurso. Nesse livro, conforme a intuição dos críticos que sobre ele se debruçaram, o problema dos limites que separam vida e obra, credo religioso e trabalho poético se coloca de imediato, em função justamente da tensão entre a temática da obra e sua arquitetura formal rigorosamente elaborada.


Penso que a verdade se encontra no trânsito entre as leituras críticas de matriz biográfica e antibiográfica, que cumpriram, cada uma em seu tempo, um importante papel para a exegese da obra. Setenário das Dores de Nossa Senhora é, ao mesmo tempo, um monumento de fé e um monumento de intelecção poética. O poeta que pretende chorar com a Santa é, antes de tudo, poeta, mas não deixa de ser também uma voz de fé e religião, como aquelas do passado. Nem confissão, nem mero jogo poético, o livro inaugural de Alphonsus de Guimaraens é o ponto de partida de uma obra irredutível a etiquetas e rótulos fáceis, e nisso, sobretudo, ela se mostra autenticamente moderna, naquilo que a modernidade tem de crítica e autocrítica.

*Eduardo Veras
Professor de literatura da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). É autor de O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens (Relicário, 2016) e do livro de poemas Deserto azul (Penalux, 2018).



SETENÁRIO DAS DORES DE NOSSA SENHORA
De Alphonsus de Guimaraens
Casa Sol Invictus
146 páginas
R$ 25



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