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Contra o falso moralismo

Roteiro nunca realizado do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, O imponderável Bento contra o Crioulo Voador vai do thriller político ao delírio sobre a perversão


postado em 07/12/2018 05:06


É comum que se diga, com toda razão, que poucas coisas são tão desinteressantes de se ler no mundo quanto um roteiro de cinema. Essa velha máxima acaba de sofrer um baque no Brasil graças ao relançamento de O imponderável Bento contra o Crioulo Voador, um dos últimos roteiros escritos pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, que nunca chegou a realizá-lo.

As consequências dessa publicação são inúmeras. A primeira é justamente a de desconstruir, para um público especializado ou não, os mitos “técnicos” da narrativa cinematográfica: escrito de maneira simples e direta, com pouquíssimas indicações de decupagem, Joaquim Pedro prova que um bom roteiro pode ser tão prazeroso de ler – e de escrever, por que não? – quanto um bom conto.

A segunda é ainda mais importante. Escrito entre 1986 e 1988, ano da morte do cineasta, o livro permite ver de perto o processo de criação de um dos mais rigorosos diretores do Cinema Novo, num trabalho que se liga à verve mais erótica e satírica de filmes como Guerra conjugal (1975), ao mesmo tempo em que sintetiza inúmeras obsessões de sua obra, principalmente seu vínculo intelectual com Mário e Oswald de Andrade, que já haviam sido adaptados por ele em Macunaíma (1969) e O homem do Pau Brasil (1982). Some-se aí Brasília: contradições de uma cidade nova (1968) e estão dadas as bases desse último roteiro, que encena uma espécie de curto-circuito entre essas diferentes “formas de ser” de um Brasil moderno.

Com os sinais trocados, o “herói sem nenhum caráter” de Macunaíma aparece aqui na personagem de Bento, um militar frustrado que vive um processo de conversão espiritual ao cruzar com uma comunidade de eremitas isolada no interior do Planalto Central. Bento aprende com eles o valor do sacrifício e da autoimolação, e volta para a capital como um homem santo, um messias cujos dotes sexuais enfeitiçam a alta sociedade brasiliense e ameaçam a autoridade de um pequeno grupo de militares. Enquanto isso, o editor-chefe de um poderoso jornal trama uma conspiração para fazer frente à fama de Bento, criando uma nova celebridade, o “Crioulo Voador” – na verdade um pobre morador da periferia de Brasília metido numa fantasia de super-herói.

Enquanto a primeira parte evolui como um thriller político convencional, a segunda é tão delirante que faz um cineasta como Luís Buñuel – um dos preferidos do diretor – parecer um artista comedido. Numa das cenas mais perturbadoras do roteiro, a comunidade de eremitas é assaltada sexualmente por uma excursão de socialites de Brasília, e Bento é confrontado com uma visão terrível: o torso de uma mulher nua, sem braços e sem cabeça, que fala pela boceta. Na mesma cena, uma cabeça rola pelo chão protestando por ter deixado de fazer sexo aos 45 anos, enquanto um personagem que passa por ali simplesmente “mostra o cu para a câmera”. De resto, o humor aparece por toda parte em descrições provocativas e inspiradas, como na maravilhosa apresentação dos figurinos erótico-monásticos que adornam os ritos celebrados por Bento, ou nas reiteradas menções ao estabelecimento preferido dos militares na capital federal, o “Motel 3 Poderes”.

Numa costura que amarra o drama sério, a sátira social e a mais completa falta de pudor estético, O imponderável Bento só faz evidenciar a admirável e já conhecida versatilidade de Joaquim Pedro, e prova que os ventos de sua sensibilidade artística nunca deixaram de soprar na direção da chanchada e do cinema marginal. Como gesto final de uma trajetória brilhante, o diretor nos deixou o retrato de um país algo grotesco, onde a libertinagem se converteu no artigo de luxo de uma casta econômica e militar infantilizada. Uma casta dominada por pulsões sexuais e destrutivas, mas incapaz de lidar com o seu próprio moralismo. Diagnóstico mais que condizente, por sinal, com o país que viria a se revelar exatamente 30 anos depois da morte do cineasta.

*João Dumans é roteirista e cineasta, codiretor de Arábia (2017)

O IMPONDERÁVEL BENTO CONTRA O CRIOULO VOADOR
De Joaquim Pedro de Andrade
Todavia
104 páginas
R$ 49,90 (livro) e R$ 34,90 (e-book)


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