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A coroação

Dizia-se que era originária de Portugal e que, por vir das origens da aparição, tinha uma força especial de cura e de graça


postado em 23/05/2020 04:00 / atualizado em 23/05/2020 06:12

José Alberto Nemer
Artista plástico
 
Ano de 1953. A chegada a Belo Horizonte da imagem de Nossa Senhora de Fátima, a Virgem Pe- regrina, já vinha sendo anunciada pelos púlpitos das igrejas e pelas páginas dos jornais. Dizia-se que era originária de Portugal e que, por vir das origens da aparição, tinha uma força especial de cura e de graça. O jornal carioca Correio da Manhã, de 31 de maio de 1953, anuncia:
 
"O cardeal arcebispo D. Jayme de Barros Câmara celebrará a missa de despedida. Às 9 horas, num avião da FAB, Nossa Senhora deixará esta capital rumo a Belo Horizonte. A comissão faz um apêlo a todos os moradores da Rua do Riachuelo e adjacências para preparar esta última manifestação à Virgem Peregrina com todo o esplendor possível. O Santuário de N. S. de Fátima desta cidade deve mandar ao Santuário Central da Cova da Iria uma grande mensagem de fé que só pode ser obtida através da colaboração de seus fiéis" (sic).
 
Entre os preparativos para receber a imagem santa, promoveu-se um concurso nos grupos escolares de Belo Horizonte para escolher a criança – ou melhor, a voz – que iria soar na coroação da Virgem Peregrina. Foram feitos testes com professoras de canto orfeônico vindas de fora e que visitavam as escolas. Um dia, fui chamado à sala da diretora. De pé, solenemente, anunciou que eu, "estudante do nosso orgulhoso Grupo Escolar Barão do Rio Branco", seria o ser humano a coroar Nossa Senhora de Fátima, a Virgem Peregrina, que, em breve, chegaria à cidade. Minha reação foi de alívio. Ser chamado no gabinete da diretoria quase sempre era prenúncio de mau agouro.
 
Passei os dias seguintes sendo, frequentemente, retirado da sala para ensaiar e receber      instruções. Os colegas me olhavam com um misto de inveja por sair mais cedo e contida admiração pelas outras razões. Os ensaios não se resumiam à única canção que deveria cantar e que incluía dois violinos, como também de recomendações detalhadas de como chegar, subir os degraus do altar, me posicionar, esperar que as duas outras crianças colocassem a palma e o ramalhete, encontrar rápido o furinho onde fincar a sustentação da coroa, segurá-la "com firmeza, mas com graça", pousá-la sobre a cabeça da santa, recolher as mãos e mantê-las postas em prece, aguardar as ordens para descer etc.
 
Em casa, os preparativos não eram menores. Minha mãe lavara e passara uma camisa social e um terno de linho branco, calças curtas, usado na Primeira Comunhão. Confeccionara, a mão, uma gravata-borboleta preta, cujas pontas desabavam tristes, longe daquelas asas armadas das gravati- nhas que se compravam prontas. Os vizinhos falavam em assistir ou participar. Foi por isso que, no dia marcado, um generoso e prestigiado médico que morava na casa da esquina ofereceu seu Chevrolet Bel Air, com motorista, para me levar à concentração que se formara na pracinha da Igreja da Boa Viagem. O lugar estava lotado. Passamos por todos os controles e me vejo, então, em plena sacristia da igreja, com o clero em suas muitas nuanças hierárquicas, em vestes e capas de gala, jovens coroinhas balançando turíbulos, algumas Filhas de  Maria vestidas de branco com uma fai xa azul-claro atravessada no pescoço, vários senhores de terno, organizadores e ajudantes. Falavam comigo com simpatia. Sentia-me como se estivesse sendo guardado por aquela gente. Num ambiente circunspecto, só um rádio sobre a cômoda transmitia ao vivo os detalhes do desembarque da Virgem no aeroporto da Pampulha. O repórter, eloquente, falava da imagem já  instalada no alto de um caminhão todo enfeitado do Corpo de Bombeiros. Contava sobre a comoção popular ao longo da Avenida Antônio Carlos e de todo o percurso. A cada metro, dizia ele, homens, mulheres e crianças saudavam a Virgem Peregrina abanando as mãos, com bandeirinhas, lenços, medalhas, terços.
 
Chegando à praça, ela caminhava agora em seu andor no meio do povo, instalando-se, afinal, em um altar onde seria coroada. A multidão gritava em uníssono louvores à Virgem. Uma grande inquietação tomou conta da sacristia. As pessoas se davam os últimos retoques na roupa, nos cabelos e nos véus, organizando-se para sair. Nós – eu, duas meninas e dois músicos – fomos ficando e seríamos os últimos a deixar a sala. Chegado o momento, nos enfileiramos e, cada um com seu atributo entre as mãos, subimos cuidadosamente os degraus e nos preparamos para o rito. Por causa da luz dos holofotes, era difícil ver algo além de uma grande quantidade de microfones brigando por um lugar.
 
Via, também, o manto que cobria a cabeça da santa, de costas. Alguém nos fez um sinal. Os dois violinos deram o tom e as meninas, cada uma em seu tempo, entoaram os cantos e ofertaram as flores. Era chegada a minha vez. Enquanto esperava a entrada dos músicos, tentei me aproximar mais da Virgem, querendo vencer os aparelhos que ficavam entre nós. Neste momento, encostei em um dos microfones e levei um choque na boca. Soltei um grunhido de javali, acompanhado de um incontido "puta merda" que, prefiro acreditar, ficou diluído nos ruídos do engasgo. Os violinistas aumentaram seus volumes e repetiram por três ou quatro vezes as introduções, até que me recuperasse. Fora isso, todo o resto correu muito bem, por obra e graça de Nossa Senhora de Fátima, a Virgem Peregrina.
 
Quando passo, hoje, pela Igreja da Boa Viagem, vejo um pequeno altar externo voltado para os jardins da pracinha. Lá está ela, a santa coroada por mim há mais de seis décadas. Se alguém estiver comigo no momento, não resisto em revelar o fato. Mas, num exercício de humildade, abstenho-me de incluir a proeza em meu curriculum vitae. 


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