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Estado de Minas

Doce despedida de dona Canô

Família se reuniu para o adeus à matriarca dos Vellosos, que foi sedada na madrugada de Natal e morreu ao amanhecer, rodeada por entes queridos


postado em 26/12/2012 00:12 / atualizado em 26/12/2012 07:38

Brasília – Não houve ceia na noite de Natal no número 179 da Avenida Vianna Bandeira, no Centro de Santo Amaro da Purificação (BA). Não havia clima. Dona Canô começou a se sentir mal de madrugada e, às 4h, médicos que a acompanhavam resolveram sedar a matriarca de 105 anos. Às 8h40, dona Canô morreu rodeada por mais de 20 pessoas da família, incluindo a filha Maria Bethânia. Caetano Veloso havia passado por Santo Amaro mais cedo, mas deixou a cidade por volta da meia-noite de segunda-feira. O cantor e compositor era esperado ontem à noite para acompanhar o velório da mãe.


Jorginho Velloso, bisneto de Claudionor Vianna Telles Velloso, como se chamava dona Canô, contou que a noite de Natal foi de tristeza, mas também de conformação. “Passamos todos juntos, no início da noite começamos a sedar minha bisa, mas ficamos todos juntos aqui com ela, a família toda, filhos, netos, bisnetos. Foi uma noite, apesar de toda a situação, descontraída”, disse o bisneto, que é neto de Mabel, a filha poetisa de dona Canô. “Ela estava lúcida o tempo todo, até o finalzinho, quando começaram a botá-la para dormir.”

A lembrança que Jorginho levará da bisa é a da figura festeira. Por isso, perdê-la no dia de Natal, para ele, até fez algum sentido. “Ela foi de muita festa o tempo todo. Muita gente pode estar pensando: ‘Ah, mas ela foi embora no dia de Natal’. Mas é isso mesmo, dia de festa, ela sempre gostou de festa e não podia ter ido num dia melhor. Apesar de toda a dor, estamos todos muito conformados”, disse.

Dona Canô foi velada na própria casa pelos amigos e familiares até as 19h de ontem (horário de Brasília), quando o corpo seguiu para o Memorial Caetano Veloso, na Praça da Purificação. Uma missa de corpo presente está prevista para as 10h de hoje na Igreja Matriz Nossa Senhora da Purificação, e o enterro será às 20h, no Cemitério de Santo Amaro.

Dona Canô esteve internada até a sexta-feira, dia 21. Em 15 de dezembro, ela deu entrada na Unidade Cardiovascular Intensiva do Hospital São Rafael, em Salvador, depois de sofrer uma isquemia cerebral. Foi levada ao hospital por Rodrigo Velloso, que morava com a mãe e é secretário de Cultura de Santo Amaro. Seis dias depois, a pedido da própria Canô, os médicos decidiram mandá-la de volta para casa. O governador Jaques Wagner (PT) mobilizou batedores da polícia do estado para abrir caminho na estrada e acompanhar a ambulância até o município de Santo Amaro, a cerca de 70 quilômetros de Salvador.

Em casa, dona Canô chegou a apresentar leve melhora durante o fim de semana. Antes de morrer, ela pediu à filha Clara Maria que fosse enterrada com o caixão envolto na bandeira da cidade onde morou a vida inteira. O neto J. Velloso, filho de Clara Maria, contou que a família tenta manter a racionalidade e pensa no descanso da matriarca. “Não queríamos que ela sofresse. Estamos tristes, mas tranquilos. Ela era tudo, a grande referência do clã dos Vellosos. Ela conseguia manter a unidade da família, mesmo cada um de nós tendo personalidades, atitudes e comportamentos diferentes. Tudo o que fazíamos era para alegrá-la. Ela e meu avô criaram os filhos com certo rigor, mas com leveza. Nunca vi nenhum dos dois levantarem a voz”, disse.

HOMENAGENS Dezenas de artistas e políticos enviaram mensagens de solidariedade à família Velloso pela morte da matriarca. A presidente Dilma Rousseff se referiu a dona Canô como “mulher forte e sábia” que deixará saudade. Em nota, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, amigo de dona Canô, e a mulher, Marisa Letícia, lamentaram a morte. “Dona Canô foi um exemplo de mulher, de mãe e uma referência de sabedoria e generosidade para sua família, para Santo Amaro da Purificação, para a Bahia e para o Brasil. Para nós, foi também uma grande amiga, da qual sempre lembraremos com muito carinho.” Nas redes sociais, a morte de dona Canô repercutiu durante todo o dia e ficou entre os tópicos mais comentados no Twitter.

 

Influência política

Dona Canô ganhou mais prestígio em Santo Amaro do que qualquer político. Em época de eleição era assediada por políticos, que buscavam seus conselhos. Teve forte e antiga amizade com o senador Antônio Carlos Magalhães e com Lula. Em 2002, telefonou ao então candidato e o parabenizou pela campanha. Em 2009, repreendeu o filho Caetano, que criticou Lula e defendeu a candidatura de Marina Silva. Ela ameaçou ligar para Lula e pedir desculpas, em nome do filho.

 Aconchego mineiro

Minas esteve no roteiro da matriarca baiana. Acompanhada do filho Rodrigo e de amigos de Santa Luzia, na Grande BH, como minha mãe, Ephigenia, dona Canô (foto), com o seu inseparável bonezinho branco, passeou pela Rua Direita, conheceu o santuário dedicado à padroeira e visitou o Mosteiro de Macaúbas, bela construção de 1714 que mantém irmãs concepcionistas enclausuradas. No almoço, provou torresmo, tutu e, claro, apreciou os doces feitos pelas irmãs Gema e Quitita, famosas pelas balas delícia e cocadinhas. Aprovou tudo com palavra de mestra, afinal, ninguém conhece mais de cocadas do que uma legítima filha do Senhor do Bonfim. Próxima parada, Ouro Preto, com passeio pelas ladeiras, Praça Tiradentes e outras maravilhas do Centro Histórico. (Gustavo Werneck)

 De coração aberto

A primeira vez que vi dona Canô, de pertinho, foi no fim da década de 1970, num verão inesquecível em Salvador. Com quatro amigos, fui à casa dos Vellosos no Bairro de Nazaré e a senhora miúda e de cabelos sempre em coque nos recebeu com sorrisos e saborosos quitutes da terra. Estavam abertas as portas da Bahia e do coração. Daquela época em diante, praticamente em todas as férias, tive oportunidade de conversar, observar e ouvir histórias da matriarca de jeito doce, sereno e severo na hora em que precisava ser – tanto com os filhos quanto com os agregados. Um dia, estava eu sentado na porta da casa em Santo Amaro, na região do Recôncavo, quando dona Canô me chamou para almoçar. “Já vou…”, respondi mineiramente, quase num sussurro. Silêncio. Lembro de escutar alguém observar baixinho, ao lado: “Com dona Canô não se brinca. Se ela chamou, é para ir…” E fui ligeiro.

Mesa farta, colorida, aromática, pratos de peixes, carnes e comidas típicas na casa da Avenida Viana Bandeira, em Santo Amaro, onde dona Canô foi morar definitivamente depois da morte de seu Zezinho, como José Telles Velloso era conhecido. Da união nascerem Rodrigo, Roberto, Caetano, Bethânia, Clara, Mabel e mais os do coração – Nicinha, falecida em 2011, e Irene. Há cinco anos, quando ela estava perto de completar 100 anos, tive oportunidade de entrevistá-la, por telefone, sobre o grande feito e ela mostrou a voz firme, a força da sua fé e a opção pela felicidade. Dona Canô, tenho certeza, passava, até para quem não a conhecia pessoalmente, a imagem de mãe devotada, amorosa e pronta para abrir o peito para o mundo e os filhos.

Quando a matriarca dos Vellosos chegou aos 80 anos, em 16 de setembro de 1987, recebi o convite e enfrentei mais de 20 horas de ônibus de BH a Santo Amaro para abraçá-la. De manhã, houve missa solene na Matriz de Nossa Senhora da Purificação e depois um almoço que varou a noite. Na véspera, junto de amigas e parentes, numa roda no quintal, dona Canô, batizada Claudionor, comandou o ritual de picar o quiabo a fim de preparar o caruru servido na grande festa. Era bonito ver aquela turma de cabelos brancos, animada como o quê – era uma expressão muito usada por ela –, cantando músicas dos tempos da juventude e agindo com precisão cirúrgica para fazer o prato-vedete do aniversário.

Em 2007, na comemoração dos 100 anos dela, num resort à beira-mar, encontrei-a disposta, recostada num banco de vime, num calorão daqueles, sendo abraçada por centenas de convidados. Sempre protegida pelo abraço da filha Bethânia, dona Canô não demonstrava sinais de cansaço e provou de todas as iguarias. Era boa de garfo e se gabava disso. A chegada ao resort, claro, tinha de ter impacto. E ela chegou num carrinho motorizado, com seu vestido azul de linho e sapato de trecê. Para o conforto do pés e a elegância, tinha de ser um calçado de couro “bem molinho”.

ensinamentos Dona Canô era dessas pessoas de alma nobre, que aprendem as lições da vida, sem arrogância, e sabem traduzir seus símbolos de forma inteligente e distribuir ensinamentos com generosidade. Solidária, estava pronta a qualquer momento para socorrer os corações aflitos e as barrigas vazias; dinâmica, liderava obras dirigidas aos pobres e ao patrimônio cultural da sua cidade; e, carinhosa, sabia receber os amigos em sua casa, sem vaidade ou pose de celebridade. Devota, fortalecia a fé em Nossa Senhora da Purificação, “doce mãe dessa gente morena”, conforme escreveu o compositor.

Traduzia a figura da mulher acolhedora, admirável, terna e brava. Sem dúvida alguma, a estrela mais fulgurante do casarão da cidade de Santo Amaro da Purificação. Digna, mulher de respeito, de pulso. Uma brasileira guerreira, que tinha as palavras certeiras para exorcizar demônios e as de maior candura para espalhar a fraternidade. Hoje é um dia emblemático para todos os brasileiros. Morreu uma mulher de fibra, atuante em sua comunidade e conquistadora de um espaço na cultura baiana, independente da fama dos filhos.

Que dona Canô descanse em paz. E deixe por muito tempo a luz que incandesceu a sua vida centenária e espalhou energia vigorosa. Existirá, meu Deus, glória maior?


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