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Estado de Minas

TCU e a presunção de boa-fé


postado em 09/08/2019 04:00

Caio Mário Lana Cavalcanti
Advogado do Carvalho Pereira, Fortini


Recentemente, no escopo do Acórdão 2.742/19, o Tribunal de Contas da União  (TCU) ratificou entendimento que há anos vigora na corte, no sentido de que a boa-fé dos processados nos procedimentos ali em trâmite não se presume, mas deve ser demonstrada no caso concreto. Referida posição corrobora a jurisprudência da corte, que, a exemplo da compreensão extraída dos Acórdãos 1.895/14 e 4.667/17, afasta a presunção legal de boa-fé que normalmente pesa em favor do administrado.

No caso envolvendo o Acórdão 2.742/19, o TCU entendeu pela rejeição das contas de gestor público em virtude de suposta insuficiência probatória trazida à baila pelo processado. Entre outras fundamentações, sedimentou-se justamente que, nos processos em andamento na corte, a boa-fé dos processados não é presumida.

Discorda-se, com a devida licença, da fundamentação acima narrada. Entende-se que, ainda que na circunstância fática seja difícil demonstrar a má-fé do processado ou as irregularidades de suas condutas, a presunção de má-fé configura retrocesso e desrespeito aos mais elementares sustentáculos da Constituição da República.

Isso porque a presunção de boa-fé e de inocência é pilar fulcral da República Federativa do Brasil e essência do Estado democrático de direito que, diversamente de outrora na história brasileira, trata o indivíduo como probo e como inocente até que se prove o contrário. Assim, a dificuldade concreta dos mecanismos de controle e o cenário de corrupção e de má gestão pública não podem oferecer azo ao desrespeito às mais comezinhas garantias individuais, razão pela qual comunga-se da máxima há muito sedimentada no ordenamento jurídico pátrio, a saber: má-fé não se presume, má-fé se prova.

Nesse sentido, se de um lado o TCU tem papel relevantíssimo para o resguardo da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da eficiência e da probidade, a busca pela valorização de tais preceitos não pode ser justificativa para o sepultamento de direitos e princípios outros, igualmente importantes e previstos na Constituição da República, a exemplo do direito à imagem, à honra e, sobretudo, à presunção de boa-fé, corolário da presunção de inocência.

Ou seja, a indispensável atuação das cortes de Contas, malgrado louvável por buscar a concretização do interesse público e da probidade administrativa, não pode servir de respaldo para a degola dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, entre eles a tão cara presunção constitucional de boa-fé.

Outrossim, conquanto administrativos, os processos que tramitam no TCU têm consequências graves, não raras vezes mais severas que aquelas decorrentes de sentenças judiciais, mais uma razão pela qual o devido processo legal e os direitos dos cidadãos devem ser resguardados também em tais procedimentos, evitando-se, assim, arbitrariedades.

Neste horizonte, frisa-se que a busca pelo interesse público e a sua supremacia perante o interesse privado não implica sepultamento de direitos: por isso a razoabilidade, a proporcionalidade, a ponderação, a prudência e o equilíbrio devem guiar o julgamento das controvérsias em concreto.

Vive-se, é sabido, um momento histórico peculiar da história brasileira, em que a fiscalização exercida pelos órgãos de controle está sendo efetivada com deveras severidade, máxime tendo em vista o clamor social perante o cenário de corrupção sem precedentes. No entanto, os órgãos de controle devem primar por uma fiscalização consciente que não só garanta uma gestão da coisa pública correta e eficiente, mas que, concomitantemente, privilegie os direitos dos administrados, entre eles a presunção de boa-fé.

Não bastasse, o cenário acima relatado gera demasiado receio naqueles que impulsionam e gerem a máquina pública, culminando com uma estagnação e engessamento da atuação administrativa, fato que cria óbice à busca pelo interesse público. Isso em virtude da apreensão de os agentes públicos serem facilmente condenados às sanções administrativas, máxime se mantido o posicionamento pela ausência de presunção de boa-fé, entendimento de duvidosa constitucionalidade.

Preferem os agentes públicos – diante dessa realidade de medo e de incerteza – manter-se inertes frente à máquina pública, haja vista a desproporcionalidade que se observa recorrentemente no âmbito do controle, tanto interno quanto externo.

Por derradeiro, impende deixar assente que não se busca, com argumentação desenvolvida, depreciar ou dificultar a atuação das cortes de Contas, que têm uma função primordial para o contínuo aperfeiçoamento do Estado democrático de direito. Entende-se, todavia, que o controle desarrazoado e desproporcional – a exemplo daquele efetuado mediante sepultamento da presunção de boa-fé – mais afronta os fundamentos da Constituição da República que os consolida, porquanto viola direitos fundamentais irradiantes que representam o âmago do espírito constitucional idealizado pelo constituinte.


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