Imagine a cena: morre Roberto Marinho, a Globo sai do ar em homenagem ao seu fundador. Não, isso não ocorreu em 6 de agosto de 2003, quando o poderoso “Doutor Roberto” se foi, aos 93 anos, devido a uma embolia pulmonar. Mas em 26 de maio de 1986, o SBT ficou fora do ar por várias horas. Ordem de Silvio Santos para homenagear Flavio Cavalcanti, apresentador do programa que levava seu nome, morto aos 63 anos. Flavio teve isquemia coronoriana enquanto apresentava a atração, quatro dias antes. Naquele 26 de maio, quem ligava o SBT via apenas o slide informando que a programação voltaria às 16h, horário do sepultamento do apresentador, em Petrópolis (RJ).





Um pouco da trajetória deste homem que tirou o SBT do ar está em “Senhor TV” (Matrix), lançado por Flavio Cavalcanti Junior. Como o subtítulo avisa, é um livro de filho para pai. Não se trata propriamente da biografia do apresentador, que fez história no audiovisual brasileiro dividindo os holofotes com Chacrinha (1917-1988) e Silvio Santos.

No comando do programa "A grande chance", entrega o prêmio a Áurea Martins, juntamente com Raul Giudicelli, diretor da revista O Cruzeiro


TÚNEL DO TEMPO 
Naqueles tempos, a TV aberta dominava os lares do Brasil. Apresentadores nem de longe ganhavam fortunas como Faustão e Luciano Huck. O livro de Flavio Cavalcanti Junior é uma espécie de túnel do tempo que nos conduz à era anterior à internet e ao streaming.

Flavio Cavalcanti era polêmico, gostava de confusão. Certa vez, chegou com o olho roxo em casa. Espinafrou Sérgio Ricardo em seu programa “Um instante, maestro”. Convidara o compositor para participar da atração, depois de ele causar furor ao quebrar o violão e jogá-lo na plateia, ao ser vaiado ao cantar “Beto bom de bola” no festival da Record.





Pois Sérgio cantou a música em “Um instante, maestro”, ouviu o passa-fora do apresentador. Quando o programa acabou, “partiu para cima” de Flavio.

Sucesso de audiência nos anos 1960/1970, Cavalcanti inaugurou a moda dos jurados de TV. Recebia Pelé, Roberto Carlos, Elis Regina, Chico Anysio, Stevie Wonder e várias estrelas nacionais e estrangeiras em seus estúdios. Inventou bordões que se tornaram clássicos, como o “nossos comerciais, por favor!”.

Criou “Um instante, maestro!” para a TV Tupi e levou o programa para a Excelsior. Comandou “Noite de gala”, na TV Rio, com atrações do quilate de Nat King Cole e um jovem chamado Tom Jobim regendo a orquestra. Outro sucesso foi “A grande chance”, também na Tupi, voltado para artistas em ascensão. Armandinho, da banda A Cor do Som, tinha 15 anos quando buscou lá a sua oportunidade. Alcione e Emílio Santiago foram outros calouros.

Nos anos 1950, Cavalcanti trabalhou no jornal carioca “A manhã” e se orgulhava de seu faro jornalístico. Era um apresentador-repórter, fazia “entrevistas-espetáculo”. Ganhou a pecha de cascateiro, negada pelo filho.





Entrevistou ao vivo Tenório Cavalcanti, o poderoso chefão da Baixada Fluminense, em “Noite de gala”, o que lhe rendeu audiência e ameaça de morte. Flavio convenceu o Homem da Capa Preta (que José Wilker viveu no cinema) a raspar a famosa barba. Tenoristas odiaram o “desrespeito”. Ainda por cima, o apresentador mergulhou (de smoking) na piscina da casa do homem. Lá fora, apedrejaram o caminhão de externas da emissora.

No comando do programa "A grande chance", entrega o prêmio a Áurea Martins, juntamente com Raul Giudicelli, diretor da revista O Cruzeiro


KENNEDY 
Em 1962, outra proeza. Ao fazer estágio na CBS norte-americana levando a tiracolo o amigo, intérprete e apresentador Murilo Néri, Flavio entrevistou John Kennedy – sem falar inglês!. Com ajuda da cônsul brasileira Dora Vasconcelos, marcou o encontro no Salão Oval e o presidente americano vendeu o peixe de seu programa Aliança para o Progresso, interessado em cooptar a América Latina.

Campeão de audiência, Flavio apoiou o golpe militar de 1964. Conservador, criticou John Lennon – para ele, o beatle influenciava negativamente os jovens. Rejeitou publicamente o homossexualismo, foi acusado de conivência com os generais. Espinafrou Caetano Veloso e sua “Alegria, alegria”.





Cavalcanti Junior defende o pai: admite o conservadorismo, mas lembra que o apresentador abrigou Leila Diniz após a polêmica entrevista da atriz ao “Pasquim”. Esse pingue-pongue serviu de pretexto para a censura prévia à imprensa, a partir de 1970. Flavio escondeu Leila em sua própria casa, em Petrópolis.

Flavio Junior nega enfaticamente que o pai tenha liderado o empastelamento do jornal “Última Hora” logo após o golpe de 1964. “Na hora em que alguns energúmenos invadiam a sede do “Última Hora” e a depredavam, papai estava ao vivo no ar, falando diretamente dos estúdios da TV Rio, cobrindo o andamento do movimento militar”, escreve.

Em seu livro, ele narra o encontro do pai com Samuel Wainer, ex-marido de Danusa Leão e jurada do “Programa Flavio Cavalcanti”. Experiente jornalista, o dono do jornal argumentou que havia uma foto do apresentador durante o ataque. Flavio afirmou a Wainer que lhe daria a casa de sua família, em Petrópolis, se a fotografia aparecesse.





“Passado o constrangimento, num clima de deixa-disso, Samuel convidou-o para escrever uma página, duas vezes por semana, no “Última Hora”, convite aceito com um pedido: que Paulo Alberto, o Artur da Távola, fosse o editor. E assim foi feito”, registra Flavio Junior.

ANOS DE CHUMBO 
O autor argumenta que o pai se indispôs com os militares à medida que os anos de chumbo avançavam. Além de proteger Leila Diniz, moveu mundos para saber do paradeiro do maestro Erlon Chaves, levado por um carro sem placa enquanto participava de ensaio para seu programa. Negro, perseguido por surgir no festival da canção da Globo rodeado de louras cantando “Eu também quero mocotó”, Erlon passou quase uma semana sumido. Foi trancafiado numa cela com o jurista Heleno Fragoso.

No livro “Nossos comerciais, por favor!” (Editora Beca), a historiadora Lúcia Maciel Barbosa Oliveira afirma que Flavio e outros apresentadores reforçaram valores em que se ancorava o golpe militar, embora não haja provas de que ele tenha participado de articulações, sobretudo na Escola Superior de Guerra (ESG), para formular a ideologia de sustentação do regime militar.





Flavio Cavalcanti “sabia deixar seu espectador na ponta da cadeira”, como diz Mauricio Stycer, crítico de TV, em texto publicado na Folha de S. Paulo. Atraía a audiência com reportagens sensacionalistas. Mas não eram fake news.

Enquanto a Rede Tupi mergulhava em grave crise financeira, a Globo estreou o “Fantástico”, em agosto de 1973, para concorrer com Flavio Cavalcanti. Em setembro daquele ano, o apresentador se mudou para a TV Rio e depois voltou para a Tupi, fechada pelo governo militar em 1980.

Sem a Tupi, fez programa na Rádio Capital, estreou “Boa noite Brasil” na Bandeirantes, esperou o convite – que não veio – da Globo e passou seus três últimos anos no SBT de Silvio Santos.





“Senhor TV” revela também os momentos em que Flavio Cavalcanti, decididamente, não “deu ibope”. Fracassou como dono de casa noturna, teve de entregar a residência de Petrópolis ao banco porque não conseguiu pagar empréstimos contraídos para produzir seu programa, colheu insucessos em pequenas emissoras.

MANCHETE 
Flavio Cavalcanti Junior trabalhou com o pai desde os 19 anos, mas fez sua própria carreira no setor audiovisual. No livro, conta bastidores do apogeu e queda da Rede Manchete, da qual foi funcionário. Por 14 anos, trabalhou no SBT, em Brasília.

A engrenagem da distribuição de concessões de canais de TV é outro ponto interessante do livro. Flavio Junior frequentou e fez lobby em gabinetes no Congresso. Diz que junto a Jorge Bornhausen tentou articular a candidatura de Silvio Santos a presidente da República pelo PFL, em 1989. Ela acabou lançada pelo Partido Municipalista Brasileiro e foi abortada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Depois disso, trabalhou na campanha de Fernando Collor de Mello ao Planalto.



(foto: Matrix/reprodução)

“SENHOR TV – A VIDA COM MEU PAI, FLAVIO CAVALCANTI”
De Flavio Cavalcanti Junior
200 páginas
Matrix
R$ 46

(foto: reprodução)
Caso revelado pelo  Estado de Minas tirou Flavio da TV po r dois meses
Com o título “Às vezes o amor tem dessas coisas”, reportagem do Estado de Minas “tirou” Flavio Cavalcanti do ar por dois meses, por ordem do Departamento de Censura Federal.

Em fevereiro de 1973, o EM e o vespertino Diário da Tarde noticiaram um triângulo amoroso que virou caso de polícia envolvendo o operário José Gonçalves Filho, sua mulher, Rita, e o vizinho João Coutinho. Por causa de uma briga, o trio foi parar no Departamento de Investigações, em Belo Horizonte.

De acordo com as reportagens, Gonçalves contou que, por motivo de doença, não podia dar à mulher “os carinhos necessários”. Por causa disso, decidiu “emprestar” Rita a Coutinho, concordando com o caso extraconjugal dela.





O delegado do 8º Distrito Policial intimou os três. E o marido se viu sob ameaça de ser processado por induzir a esposa à prostituição. Rita revelou aos repórteres o desejo de trocar definitivamente José por João.

O Brasil ficou sabendo do “triângulo mineiro” ao vivo: em 14 de março de 1973, os três, além do delegado responsável pelo inquérito, foram as atrações do “Programa Flávio Cavalcanti”.

Irritado com a “pouca vergonha” e com outras atitudes de Flavio – uma reportagem com a entidade espírita Seu Sete da Lira e o apoio do famoso homem da TV a Leila Diniz –, o governo militar impôs oito semanas de suspensão ao apresentador.

Naqueles dois meses de férias impostas pela censura, coube a Flavio Cavalcanti Junior e jurados – entre eles Marcia de Windsor, Erlon Chaves e o compositor Sergio Bittencourt – improvisarem para manter o programa no ar. 

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