Estado de Minas

Do escambo ao milagre: uma crônica de Arnaldo Viana

Com o minguado salário mínimo de faxineiro, almoçava no bandejão que havia sob o Cine Brasil. A classe média se esbanjava nas cantinas do Lucas e do Alvim.... Já o topo da cadeia degustava o cardápio alemão do Alpino, a feijoada do Minas, os filés do Casa Branca, as caças então permitidas do Tavares


postado em 13/07/2018 07:01 / atualizado em 12/07/2018 16:38

No caminhar dos anos 1950, um jovem curioso de Santa Maria do Salto, no Vale do Jequitinhonha, entendeu de classificar economicamente o povo do lugar. Postou-se à porta do consultório de Amílcar Peres Veiga, único médico de lá, na Praça Aurelina Mota Santos. Caneta e papel nas mãos. Havia quem pagava os serviços do doutor com um frango raquítico, carente de milho para reforçar o peito. Ali estava a classe D. Outro trazia uma galinha gorda, boa de molho pardo e digna de quiabo. Entrou na categoria C. Mais um trazia uma leitoa, bonita de se ver. Era paciente classe B. O identificado como A pagava com bezerro. Tudo vivo, claro.

Praticava-se o escambo. Dinheiro vivo em Santa Maria era raridade. Só aparecia quando alguém rumava, de tropa, para os pontos de venda de cidades baianas, com animais e bens das colheitas. Notas e moedas quase não recheavam as capangas, na longa e penosa volta em lombo de burro. Esse capital, como diziam, era para aquisição de flanelas, brim e chitão para o vestuário. Os lojistas, dois ou três, no máximo, não aceitavam animais porque precisavam repor, em espécie, o estoque, feito por intrépidos tropeiros. Nessas idas ao comércio baiano, os saltenses conheceram a chamada economia de mercado. Coisa teorizada por figuras como Adam Smith.

Doutor Amílcar migrou-se para Nanuque, na região do Mucuri, satisfeito com o resultado do escambo e feliz por ter iniciado a carreira naquele fundão do Jequitinhonha, então coberto por ramificação da mata atlântica, consumida adiante pelo mercado sedento de madeira nobre. Na época, o Estado de Minas chegava à sua terceira década de fundação. Máquinas a todo vapor. O chumbo, quente, escorria pelas veias das linotipos na missão de moldar a notícia. Não se sabe se a pesquisa do saltense, que resultou em 60% de cidadãos classe D, 20% C, 15% B e apenas 5% A, chegou às páginas do jornal. Informação, na época, tinha, literalmente, pernas curtas.

Diários

O relato, na abertura do texto, do modo arcaico de pagar por serviços e de fazer negócios, insinua tratar-se de conteúdo de economia. E é. Estas linhas foram intimadas a falar da trajetória da cobertura econômica do EM ao longo de nove décadas de existência. Como estas letras saem de dedos pouco instruídos no assunto, eles se limitam a tratar de agentes, atos e fatos mais conhecidos. Como a notícia publicada no primeiro dia de março de 1962, pouco mais de um mês da chegada a BH do curioso jovem saltense. O governo, de acordo com o jornal, enviara o primeiro-ministro Tancredo Neves à Câmara para explicar sua política contra a inflação.

Inflação, novidade para a pura alma interiorana. O que não era problema nos anos 1920 – não há registro de dança de preços nas primeiras edições do EM, em 1928 – tornou-se uma praga, da qual poucas vezes o país se veria livre. O rapaz do Vale interessava-se pela leitura de diários. Parcos recursos o empurravam para as paredes das bancas. Lia as páginas penduradas. O noticiário transpirava inquietação política, apesar das intenções otimistas. Como a previsão do presidente João Goulart, publicada em 1963: “O Brasil vai produzir 5 bi de toneladas de aço em 1965”. Ele mal sabia que não veria esse metal correr rumo aos portos. Na virada de março para de abril daquele ano, militares o derrubaram, para só devolver o país à democracia 20 anos depois.


O noticiário econômico murchou. As redações ainda tentavam achar uma linha que não ofendesse a ordem vigente. A cobertura política, no entanto, já estava contida, assim como a livre expressão. Mas uma matéria publicada em 26 de abril de 1964 deixou o jovem saltense de orelha em pé: um jornalista de Santos, para agradar a fardas, sugeria aos brasileiros doar um dia de salário "para salvar a pátria". "Puxa, já ganho tão pouco", murmurou, baixinho, o rapaz vindo do interior. Entendeu logo: se era mais seguro seguir surdo e mudo, resignado, assim seria. Mentiroso! Nas rodas de boteco com os amigos, etilicamente estimulado, dava curtos pitacos.

E a vida seguiu seu curso em BH. Com o minguado salário mínimo de faxineiro, almoçava no bandejão que havia sob o Cine Brasil. Os que se vestiam melhor comiam arroz, feijão, bife e batata frita nos bares do Centro. Outra casta sentava-se às mesas e cadeiras de casas um grau acima. A classe média se esbanjava nas cantinas do Lucas e do Alvim, Giovanni, Tip-Top, Cantina do Ângelo. Rosário.... Já o topo da cadeia degustava o cardápio alemão do Alpino, a feijoada do Minas, os filés do Casa Branca, as caças então permitidas do Tavares.

Em compensação, não era muito difícil se locomover naquela capital de 700 mil habitantes. Com R$ 10 no bolso, podia pegar o bonde no Ipiranga (Cidade Ozanam), descer na Praça Sete e tomar outro rumo à Pampulha, Zoológico. Sobrava para a média de café com leite e pão amanteigado. A praça era ponto de interseção do veículo movido a eletricidade para Sion, Santo Antônio, Serra, Savassi, Gameleira, Santo André, Santa Tereza, Horto, Cachoeirinha, Padre Eustáquio. Coisa que o metrô não foi capaz de fazer.

Classificados

Vestir-se, mesmo que modestamente, naquela época era difícil. No caderno de anúncios do EM, as lojas populares, como a Camisaria Cadillac, ofereciam roupas feitas pelo olho da cara, à vista ou em prestações no carnê. O recurso era comprar peças de pano no Leão dos Retalhos e procurar uma costureira na periferia. Os remediados podiam entrar na Casa Rolla ou no Grande Camiseiro. A nata, por sua vez, contratava os serviços da estilista Olga Mazzeti e dos alfaiates Percy e Romeu. No Natal, época de comprar brinquedos, o ideal era namorar o que havia de mais moderno nas lojas especializadas e se satisfazer com os camelôs, que abundavam no Centro. Os ambulantes colocavam as novidades movidas a pilhas no chão, sobre toalhas, e abriam o vozeirão machista: "Enquanto mamãe trabalha, as crianças se 'adivertem'".

No auge da ditadura, entre 1969 e 1973, o saltense, já de feições adultas, se sentiu entusiasmado com o crescimento econômico, chamado de "o milagre brasileiro". Houve corrida às cidades. A população,então maioria rural, inchou as capitais em busca de vida melhor. Analistas, entre os quais os do EM, alertaram para o crescimento desordenado e a favelização. Não deu outra. O preço do metro quadrado urbano subiu absurdamente.

O domínio militar chega ao fim. Instala-se a democracia, sob uma economia desordenada. A inflação, no governo José Sarney, passou de 80% em apenas um mês. Desabastecimento, corrida aos supermercados. A ganância escondeu o boi no pasto e o Exército foi buscá-lo para garantir o bife, nem que fosse magro, ao lado do arroz e do feijão.

A vida seguiu, difícil. Veio o Collor e trancou os míseros cruzeiros (voltou a circular), depositados na poupança. Em seguida, Itamar Franco e o alívio com o Plano Real. Depois, os escândalos financeiros vêm à tona nos governos Lula, Dilma e Temer. Turbulências nas ruas, greves. E o EM continua sua missão de registrar os fatos, identificar agentes e ações. O que ocorre agora e o que virá serão contados em 2028, no centenário do jornal. Quem vai escrever? Se por acaso for esta dezena de dedos, podem acreditar, será milagre.


Arnaldo Viana é jornalista. Trabalhou no Estado de Minas durante 37 anos


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