Jornal Estado de Minas

RAMIRO BATISTA

Bolsonaro tenta à última hora e em vão mudar DNA de encrenqueiro

Além da empatia, que trazem do berço ou treinam, grandes líderes políticos tratam de expandir suas alianças logo nos primeiros dias de governo. Ampliar seus tentáculos sobre o máximo possível de aliados potenciais, de forma a reduzir arestas e criar uma base forte que os mantenha no poder por mais do que um mandato.





Têm ou desenvolvem maturidade para perceber os puxa-sacos e os conspiradores que alimentam divisões internas em nome de interesses próprios. É muito comum o homo conspiratus de palácio que usa o ouvido estúpido de governantes imaturos.

Ao mesmo tempo, têm ou desenvolvem jogo de cintura para torear os aliados descontentes com as decisões amargas da primeira hora e a aproximação com adversários de que vai precisar. Em nome da estabilidade determinante a seu projeto de longo prazo.

Tudo o que não fazem é trair. Lealdade, como na máfia, é a primeira condição de ampliar apoio, obediência e sucesso na política. Você será tolerado se roubar ou matar, mas não se trair.





Em 2009, ao final do seu segundo mandato, Luiz Inácio Lula da Silva tinha conquistado quase todos os segmentos de poder do país, todos os movimentos relevantes de pressão na sociedade, a maior parte das faixas geográficas e etárias de alto potencial eleitoral.

Tinha apoio e paixão das principais lideranças do Centrão, da elite empresarial, dos banqueiros, dos sindicatos, da universidade, do funcionalismo público, das  igrejas católicas e protestantes, do mundo artístico, dos movimentos de mulheres, lgbts, negros e índios.

Tinha comprado a paixão de velhos com aposentadoria compulsória aos 65 anos, sem terem contribuído. De pobres, com o Bolsa Família. De jovens, com o Enem e o financiamento da universidade (o Sisu). De donas de casa, com o Minha Casa Minha Vida. Até de segmentos menos votados, como o dos pescadores, na farra do Auxílio Defeso.





E do Nordeste inteiro. Numa viagem a São José do Seridó, no meio da caatinga do RN, ouvi de um prefeito que Lula havia debelado definitivamente a fome, a miséria e os saques até então recorrentes  antes de seus governos e os de Dilma Rousseff.

Dos cerca de uns 3 mil habitantes adultos, por volta de 1.500 recebiam salário da prefeitura, 600 do Estado, 300 do governo federal em aposentadorias e outros 300 de Bolsa Família. Alguns empreendimentos privados — laticínio, abatedouro e uma fábrica de camisetas de multinacional — ocupavam os restantes. 

Tudo por via de dinheiro público, na boca do caixa, no contracheque ou em subsídios dos bancos públicos e do bom BNDES. Quebraria o país ou criaria as condições para quebrar, mas cravou seu nome definitivamente no coração dos nordestinos.





Só não tinha dominado — totalmente — a imprensa tradicional, implicante como convém. Mas tinha criado sua própria base de comunicação. Blogs alugados (também com dinheiro público), muita verba para veículos de imprensa menores pelo interior e a militância furibunda da guerrilha virtual que antecederia a de Bolsonaro, nas condições tecnológicas da época. 

Tinha reduzido a pó qualquer tipo de oposição, não apenas política, mas em qualquer estamento. Não por acaso chegou ao fim de seus dois governos com mais de 80% de aprovação e bala na agulha para fazer o sucessor que quisesse. 

Como ninguém é perfeito e, como as ferraris, também dá defeito, cometeu o erro de que viria a se arrepender para o resto da vida: a eleição de uma sucessora inexperiente que produziu a sequência de desastres que o levariam à guilhotina da Lava Jato.





Jair Bolsonaro, além de não ter ou tentar desenvolver empatia, fez tudo ao contrário. Em poucos meses, emprenhado pelo ouvido por uma família de assanhados por espaço, não teve maturidade e jogo de cintura para afastá-los e manter aliados, cooptar adversários, aparar arestas. 

Mais que isso, por vaidade, mesquinharia e picuinha palaciana que não soube discernir, fritou os primeiros companheiros de jornada (Gustavo Bebiano, Santos Cruz, Joyce Hasselmann e tantos outros), os auxiliares mais técnicos (Rego Barros, Joaquim Levy e tantos outros) e os ministros mais populares (Luís Mandetta e Sergio Moro).

Caso clássico de seu modus operandi tocado a rancor e mesquinharia, mesmo com companheiros fiéis, é o de Janaína Paschoal. Candidata muito superior a Marcos Pontes e mais votável ao Senado por São Paulo, foi trucidada por ele e sua militância adestrada por não lamber-lhe as botas, apesar de apoiá-lo com honestidade.





(Veja-se em contraponto o que fez Lula. Conversou e ficou rouco de tanto ouvir para congregar todos os partidos de esquerda e chegar a uma solução salomônica que viabilizasse a melhor solução conciliadora, em Fernando Haddad para o governo e Márcio França para o Senado. Creio que, se pudesse, faria o contrário. Márcio teria menos rejeição ao governo.)

Na ingenuidade de montar um ministério técnico, Bolsonaro brigou inicialmente com o Congresso. Para alimentar sua base fanática, fustigou o Judiciário e a imprensa. Para cutucar os artistas e a indústria cultural, atacou ou ignorou ícones nacionais em momentos definidores (Fernanda Montenegro, Anitta, Tarcísio Meira em sua morte).

Para arredondar, comprou briga com lideranças nacionais e mundiais do meio ambiente e, em especial, do mundo científico, em meio ao consenso mundial de combate à pandemia. Conseguiu ser contra vacinas e máscaras, de que todos dependiam por questão de vida.





Além de produzir encrenca, não teve a sagacidade de líder para correr atrás de grupos, faixas ou segmentos do eleitorado em que era rejeitado ou rejeitou desde o início: pobres, mulheres, negros, lgbts, artistas, funcionários públicos…

Se é mais fácil entender o sucesso de Lula pela exceção de um único segmento que não conquistou totalmente (a grande imprensa), compreender o fiasco de Bolsonaro passa por procurar a exceção dos poucos que não desagradou: o empresariado, na cidade ou no campo, os evangélicos e os militares.

Salvou-o de maior desastre e o mantém vivo, como ocorre em todo governo, mesmo capenga, o Centrão. Que cooptou só depois de ano e cinco meses de governo, ao acordar para o risco real de ser cassado ao cabo de várias brigas, tentativas e quebras de acordos de apaziguamento com os demais poderes.

Pois é essa figura que vem, a menos de 60 dias da eleição, tentando tirar o atraso em pelo menos duas estratégias tardias visíveis. Criar bondades para os diferentes públicos que desprezou (mulheres e pobres, em primeiro lugar) e minimizar a imagem de encrenqueiro que afasta os dois.





Problema é que, como economia não dá resultado em curto prazo, empatia não se desenvolve em 60 dias e muito menos em quem tem agressividade e conflito como espécie de DNA, não quer ou não percebe que seja necessário. Como não percebeu em três anos e meio de encrenca.

Salvo ainda que o empenho por mudar de cara em curto prazo costuma ter efeito contrário, além de alta carga de ridículo. Nada menos Bolsonaro que o anti Bolsonaro na pele dele mesmo. Pode correr o risco de perder até parte dos 30% da população que gosta do seu modo encrenqueiro de ser.

A militância do "mas"

Emílio Zurita, apresentador do Pânico da Jovem Pan, mistura de entrevista jornalística e humor, listou sete manchetes recentes para denunciar como a grande imprensa se utiliza de contraponto negativo (antecedido da clássica adversativa "mas") para desqualificar as conquistas do governo Bolsonaro:

- “Brasil melhora acesso a escola, mas ainda precisa superar desigualdade, aponta OCDE”, 

- “Desemprego recua para 9,3% em junho, mas número de informais é recorde, aponta IBGE”, 

- “Itaú eleva PIB para 2% em 2022, mas alerta para desafio fiscal relevante”; 

- “Emprego surpreende em maio, mas dúvidas persistem”, 

- “Brasil tem menor taxa de homicídios em uma década, mas está entre os dez países mais violentos”, 

- “Brasil volta ao 6º lugar em investimentos no mundo, mas retomada é parcial”.





Ao comentar o trecho que bombou nas redes bolsonaristas, o professora Pablo Ortellado justificou em O Globo que os editores assim procedem para não dar munição aos apoiadores do presidente. 

Depois de admitir a prática tradicional nas redações de colocar contrapontos para abarcar os diferentes lados da notícia, ressalva que: 

— Na atual circunstância, porém, essa prática me parece ter um outro motivo bastante compreensível. Muitos jornalistas consideram hoje grande irresponsabilidade dar uma manchete que possa ser usada como escada para o bolsonarismo, que está corroendo e degradando as instituições democráticas. Assim, para dar a notícia e não se deixar ser usado, inclui-se já na manchete um contraponto.

Tudo bem, mas não reclamem de serem acusados, não só por bolsonaristas, de censura ou militância, que é onde os jornalistas caem quando se arrogam a controlar a repercussão do que publicam e proteger a inviolabilidade de seus títulos.

Como fez, na mesma semana e não por acaso, Vera Magalhães, o alvo preferencial da mais recente temporada de violência contra o jornalismo profissional, liderada por Jair Bolsonaro: 

— Algo está muito errado com a democracia quando jornalista vira assunto ou, pior, personagem de uma campanha eleitoral.





Não viram à toa, a se ver na lista de manchetes de Zurita, mas não só. Convém ouvir o outro lado.

Falta-lhes também a humildade de admitir que não estão acima de críticas e que a nobre instituição a que pertencem, como as demais do nosso precário sistema democrático, também passa por um processo indiscutível de degeneração. Não só econômica.

Talvez fosse o caso de dizer que algo pode estar muito errado também com o jornalismo quando seus profissionais viram pauta. 

Jovem Pan e Fox News

Não é totalmente aleatório que tenham saído pelo menos duas extensas reportagens sobre o caso Jovem Pan, o mais recente e impressionante fenômeno de sucesso empresarial de comunicação atrelado à onda do bolsonarismo.


Em curto espaço de tempo, uma emissora de rádio obscura e provinciana de São Paulo ganhou musculatura nacional e virou líder de audiência disparado nos segmentos de notícia em rádio, TV a cabo e internet. Sua audiência em canais de notícia no Youtube é humilhante para as outras.





Leia: 
Jovem Pan vira voz do bolsonarismo com verbas do governo
 
Como nas escorregadas de Ortellado e Vera, é difícil passar despercebida certa arrogância de tratar o caso de nariz tapado, como exotismo de uma facção fanática e ignorante que só se informa por ela e pelo WhatsApp. Fora algumas maldades, como simplificar a impressionante plataforma de cursos Brasil Paralelo como "produtora de vídeo de direita".

Falta humildade para admitir que a velha imprensa a que pertencem não contempla grande parte da sociedade que vem há muito tempo se sentindo não atendida por ela. Se levar em consideração o apoio fiel de Bolsonaro nas pesquisas, algo como um terço.

Fenômeno semelhante e já clássico nos Estados Unidos deu na Fox News, criada em 1996 por Rupert Murdoch e a genialidade de Roger Ailes, que viria a cair em desgraça por acusações de assédio sexual, 20 anos depois.





Como havia percebido Olavo de Carvalho aqui, lá nos 90, ele convenceu o empresário de que havia uma grande maioria do país, conservadora, que não se sentia representada — ou até o contrário disso, afrontada — pela relativização moral do jornalismo liberal progressista, maioria do mainstream midiático.

Em pouco tempo e sobretudo a partir da cobertura nacionalista, patriótica e até um tanto xenófoba dos ataques de 11 de setembro, em 2001, fez todas as emissoras de notícias do país comerem poeira. Até hoje.

Muito longe da Fox News, que acalentou mas também contrariou Donald Trump, a Jovem Pan não é veículo que se recomende para quem busca isenção ou pelo menos tentativa de. 

Seu carro-chefe, Os Pingos nos Is, é uma chapa branca desavergonhada. Difícil afastar a impressão de que seus três únicos jornalistas críticos ao governo, no restante das 24 horas de programação (Amanda Klein é irritantemente ótima), não estejam ali para cumprir cota e vender o marketing, pouco convincente,  de que pratica o contraponto.

Mas, como dizem as manchetes, deveria ser percebida como algo mais do que produto de fanatismo. Por um questão de respeito a si mesmos e ao terço da sociedade não deve ser visto como imbecil.