Viva, entrei oficialmente
no sobrepeso!
Leo Cunha
Escritor
Entre as figuras de linguagem, a ironia é, sem dúvida, uma das mais sofisticadas. Ela pede que o leitor não apenas seja atento e inteligente, mas também que esteja inteirado de todo o contexto que cerca aquela frase ou texto. Não é à toa que o Veríssimo sugeriu que, ao lado da exclamação e da interrogação, fosse criado um ponto de ironia, para alertar leitores desatentos ou obtusos.
Meus alunos cansaram de ouvir o seguinte exemplo: se Fulano entrar na sala agora, no meio da aula, e eu disser: “Chegou cedo!”, vocês vão achar que é uma ironia, pois a aula já começou há meia hora.
Porém, imagine que o Fulano mora muito longe e sempre chega na faculdade com 40 minutos de atraso. Se ele entrar agora e eu disser a mesma frase – “Chegou cedo!” –, não vai haver ironia alguma. Estarei realmente cumprimentando o Fulano porque ele conseguiu chegar com 30, e não 40 minutos de atraso. O contexto é tudo!
Dito isso, volto ao título do texto. Certamente, o leitor deve ter imaginado uma ironia minha ao comemorar o sobrepeso.
Ocorre que entrei na quarentena pesando redondos 104kg, o que correspondia a um IMC (Índice de Massa Corporal) de 34. Estava literalmente obeso, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A pressão também estava elevada, na casa dos 14/10.
Pra piorar, logo nos primeiros dias de isolamento eu descobri que a COVID era mais perigosa nos hipertensos. Eu estava no grupo de risco e não podia bobear.
Acontece que sou um irrecuperável otimista. Decidi, então, que – em meio a tanto medo, insegurança, solidão, saudade e limitação impostos pela quarentena – eu buscaria um lado bom: perder peso e diminuir os riscos. Encarei aquela esteira elétrica que há anos enfeitava a sala, para felicidade da minha mulher (ponto de ironia), e resolvi transformá-la em mais do que cabide e prateleira.
Depois de cinco meses de atividade física diária, a balança finalmente apontou 89kg, o que derrubou meu IMC para 29,5. Ou seja: saí do campo da obesidade (IMC acima de 30) e entrei oficialmente no campo do sobrepeso (25 a 30).
Portanto, amigos, não havia ironia nenhuma no título. Seja bem-vindo, sobrepeso!
Mudando (só um pouco) de assunto, no fim de semana passado fui ao supermercado e, no ca- minho, cruzei com várias pessoas sem máscara.
Um deles era um sujeito num conversível lindo, dos anos 40. Outra meia dúzia eram sujeitos bem malhados, correndo sem camisa.
Faz sentido: de que adianta ter um carro daqueles se você não pode nem exibir seu rosto? De que vale esculpir o corpo se ninguém vai saber quem você é?
A ciência, a OMS e os governantes poderiam cogitar, talvez, em abrir exceções para carrocerias e músculos conservados com tanto esmero.
Digo mais, o próprio vírus podia repensar seus modos indiscriminados e ser mais condescendente com essa gente que só deseja encher a rua de beleza, charme e privilégio.
Como diria Carlos Drummond de Andrade, eis que o espírito irônico regressa a mim!