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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

Sobre o Raposão branco de olhos azuis e o Comitê de Torcedores

A torcida do Palestra/Cruzeiro nasceu antes do que o próprio clube. Esse fato histórico deveria estar plotado em cada aquário de startup da SAF


26/03/2023 04:00 - atualizado 25/03/2023 22:11

As mascotes Raposão e Raposinho antes da repaginada visual proposta pela diretoria da SAF celeste
As mascotes Raposão e Raposinho antes da repaginada visual proposta pela diretoria da SAF celeste (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/4/18)

Seria muito fácil (e ganharia milhares de “likes”) incentivar o paredão de fuzilamento digital dos funcionários da SAF Cruzeiro responsáveis pelo lastimável projeto de “repaginação” dos personagens Raposão – um dos mais antigos e consolidados mascotes de clube do mundo – e seu parceiro, o Raposinha. Mas seria de uma covardia absurda e criminosa, além de desviar o foco do modus operandi dessa que é só a ponta de um iceberg. O ponto central a se discutir, na verdade, deve ser a recorrente atitude prepotente das seguidas diretorias do Cruzeiro ao longo das últimas décadas, infelizmente repetida pela turma da SAF-Mercantilização-Cruzeiro, de tratarem 99,99% da Nação Azul como simples “números de cartão de crédito”.

Para essa gente “branca e de olhos azuis”, como o lastimável protótipo do novo Raposão, ouvir a torcida se resume a validar suas próprias decisões tomadas em aquários – ao estilo startups – com influencers de Twitter e/ou jabás ou com a ínfima parcela da torcida cruzeirense com o padrão de vida econômica de classe A (ou mais) e que muitas vezes, inclusive, adora calçar um sapatênis...

O resultado dessa fórmula excludente e permissiva, infelizmente, todos nós assistimos logo que os filmes publicitários oficiais preparados pelo próprio clube para apresentar a repaginação do Raposão e do Raposinha ganharam as redes sociais e a imprensa nacional.

Culpa direta dos artistas responsáveis pela criação do novo Raposão e do novo Raposinha? Jamais!!! Antes da criação, sempre há o que chamamos de “briefing”. Trata-se de uma lista repassada previamente aos criadores, com direcionamentos exigidos pelo cliente (nesse caso, a SAF Cruzeiro). Pode até ser dada a “liberdade total de criação” ao autor, mas mesmo essa é acompanhada de pedidos informais que poderiam direcionar a produção criativa (por exemplo, a de não ter nada com as cores ou a simbologia de times rivais ou a de “branquear” um animal que subjetivamente é visto como uma pessoa). Sendo justo, não tenho informação se esse briefing foi feito ou não.

Além disso, a aprovação de uma peça da grandiosidade e com a capacidade de geração de mídia espontânea na proporção de um mascote de um dos maiores clubes do mundo certamente passa por uma lista enorme de pessoas e setores. Muitas vezes, até mesmo os presidentes, CEOs e donos possuem o direito/dever da “última palavra”. Ou seja, assim como massacrar apenas o artista, seria covardia também emparedar apenas um funcionário da SAF. Quanto a esse ponto, concordo em número, gênero e grau com a Nota Oficial emitida pelo Cruzeiro na manhã desse sábado.

Nela também vem uma proposta reparadora, batizada às pressas de “Comitê de Torcedores”. Atrasada, genérica, reativa e com ares de ser apenas uma estratégia dentro do que chamamos na comunicação de “gestão de crise”, ou seja, reduzir os danos de imagem assumindo a culpa e sinalizando que irá mudar daqui para a frente (ou até que a crise seja esquecida, o que é bem mais fácil nesses tempos sombrios em que os profissionais da imprensa investigativa/crítica são sumariamente substituídos pelos “comunicadores” de canais de YouTube, de Twitter e chamados de “influencers”).

Mesmo com a suspeita de que a proposta do Comitê de Torcedores não irá se concretizar realmente como um instrumento popular de tomada de decisões, trato como positivo o anúncio de que será criado uma esfera de decisão vinda “da arquibancada para dentro” (lei-se ARQUIBANCADA, e não REDE SOCIAL).

Sei que pouquíssimos gestores, heads e ex-Corinthians do staff da SAF Cruzeiro se preocuparam em conhecer a fundo a história de 102 anos do Palestra/Cruzeiro, mas ao menos – e provavelmente, sem nem se darem conta disso – acabaram por seguir a vocação histórica que as diretorias do clube deveriam ter como mandamento: ser um instrumento para colocar em prática as ideias, os ideais e os desejos da torcida palestrina/cruzeirense – e não tratá-la como “cagadora de regra” ou um cartão de crédito.

Ao contrário dos outros clubes profissionais de Belo Horizonte, o Palestra/Cruzeiro não nasceu do desejo de uma pequena parcela da elite econômica, oligárquica e feudal da então jovem capital mineira. A Società Sportiva Palestra Italia foi fundada em 1921 exatamente para colocar em prática o sonho, o ideal de uma das maiores alas da massa de trabalhadores da cidade: criar um time para chamar de seu. Ou seja, o Cruzeiro tem na sua essência o fato das suas diretorias serem realizadoras do desejo do povo, dos torcedores – e não o contrário.

A torcida do Palestra/Cruzeiro nasceu antes do que o próprio clube. Esse fato histórico deveria estar plotado em cada aquário de startup da SAF; em cada resumo de perfil do clube nas redes sociais e na cartilha entregue a cada funcionário, seja ele jogador ou gestorzinho.

Dito isso, mesmo sabendo que a medida só foi tomada após um “bom sacode” das torcidas organizadas e da repercussão negativa da imprensa à prepotência interna, apoio muito a ideia (que ainda não é realidade) da criação do tal “Comitê de Torcedores”

Porém, mesmo cético quanto à real relevância que a diretoria do clube dará a essa instância decisória ou consultiva, espero que ela não fique apenas na “gestão de crise”, não passe a ser contaminada com representantes por atuação em Twitter/rede social, pela parcela ínfima dos endinheirados e tampouco seja ocupada pelos famigerados influencers movidos a jabás.

Nos erros se aprende. Assumi-los, engrandece. Fingir resolvê-los, mancha o caráter.


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