Chame de fetiche, se quiser. Mas é fato que a mente de Freud exerce grande fascínio sobre aqueles que se interessam pela psicanálise – e pelo pai dela. Além do que está documentado em seus livros e conferências, o que ocupava os pensamentos do homem que se dedicou a compreender os mecanismos do inconsciente? Como era seu comportamento no dia a dia? E, sobretudo, como ele lidava com seus pacientes?


O livro “Minha análise com Freud - Reminiscências”, de Abram Kardiner (1891-1981), recém-lançado no Brasil pelo selo Quina, oferece um vislumbre desses aspectos. Kardiner foi aceito por Freud (1856-1939) para ser seu analisando, por um período de seis meses, entre 1921 e 1922.




Médico nascido nos Estados Unidos em uma família de imigrantes russos, Kardiner decidiu se dedicar à psicanálise num período em que havia apenas oito pessoas exercendo essa atividade em Nova York. O pré-requisito para se tornar um analista era submeter-se à psicanálise, o que Kardiner havia feito com o também norte-americano Horace Westlake Frink (1883-1936).


A experiência de Kardiner com Frink, no entanto, resultou num impasse para o qual nem um nem outro enxergaram uma saída. Frink recomendou Kardiner a Freud. Aos 30 anos, o jovem médico juntou as economias e fez as malas para Viena.

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Para acomodar em sua agenda naquele 1921 “cinco americanos e um cavalheiro suíço” interessados em se analisar com ele – e somente com ele; Kardiner declinou das alternativas oferecidas, que eram “Karl Abraham em Berlim, Otto Rank ou Sándor Ferenczi em Budapeste” –, Freud fez um arranjo, reduzindo as sessões dos regulares seis encontros semanais para cinco.


Freud discutiu o assunto em família e comunicou da seguinte maneira a decisão ao grupo: “Bem, cavalheiros, minha filha, minha mulher e eu chegamos a uma conclusão, a qual espero que possa convir a todos. Minha filha Anna deu a melhor sugestão. Como boa matemática, ela descobriu que 6 x 5 = 30, e que 5 x 6 = 30. Assim, se cada um dos senhores sacrificar uma hora por dia, poderei acomodar a todos.”


A primeira impressão que Kardiner teve de Freud foi algo decepcionante. “Eu esperava encontrar um homem mais alto, e ele tinha uma voz roufenha, estridente, embora falasse um inglês impecável”, escreve. O convívio entre os dois, contudo, devolveu ao aspirante a analista a impressão de estar diante de um “gigante”.

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“Em nenhum momento em meu contato com o movimento psicanalítico, e com todas as pessoas que dele faziam parte, encontrei alguém, além de Freud, que se qualificasse como um gênio”, afirma.


Em retrospectiva

O relato que Kardiner apresenta de sua análise com Freud se enquadra na categoria de “reminiscências” porque foi feito quase 50 anos depois da experiência, quando o analisando lançava um olhar retrospectivo para sua vida, próxima do fim.


É também uma retrospectiva biográfica o que Kardiner apresenta a Freud em sua primeira sessão, com tal riqueza de detalhes sobre suas origens, sua infância e os persistentes efeitos de experiências traumáticas em sua personalidade e em suas relações que o analista pergunta se ele havia ensaiado aquela apresentação “perfeita”.


O momento decisivo do processo se dá quando Kardiner apresenta a Freud o sonho que perturbou sua terapia com Frink, e Freud destrava a interpretação, fazendo o analisando enxergar que um aspecto crucial do sonho “era uma projeção no futuro daquilo que você de fato temia no passado. O que você temia, portanto, não era o que aconteceria, mas aquilo que realmente havia acontecido, que você não apenas esqueceu, mas teve medo de recordar”.


Uma intervenção enérgica do analista se dá quando Kardiner insiste em atribuir à madrasta uma influência positiva em sua vida, algo de que Freud discorda e, segundo o analisando, eleva o tom de voz para dizer: “Você está enganado a respeito de sua madrasta. Ainda que seja verdade que ela lhe propiciou um ambiente estruturado, também o superestimulou sexualmente e assim intensificou sua culpa em relação ao seu pai”.


A notar a coragem do autor de “Minha análise com Freud” de expor num livro episódios tão íntimos que, em geral, parecem destinados a não atravessar as paredes do consultório, como sua iniciação sexual (aos 4 anos) pela madrasta ou a relação ambivalente que tinha com a única irmã – a um só tempo de gratidão, culpa e desprezo.


O fato de Freud ser “brilhante na interpretação dos sonhos e muito intuitivo ao interpretar associações livres” não cessa de impressionar Kardiner, mas o analisando faz também uma crítica ao desempenho de seu analista, que deixou de ver o mecanismo de transferência em curso.


“O homem que havia concebido o conceito de transferência não o reconheceu quando aconteceu nesse caso (o da análise de Kardiner). Ele não percebeu uma coisa. Sim, eu tive medo do meu pai na infância, mas aquele que eu temia agora era o próprio Freud.”


“MINHA ANÁLISE COM FREUD - REMINISCÊNCIAS”
• Abram Kardiner
• Tradução: Nina Schipper
• Quina (128 págs.)
• R$ 56

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