Detalhe do quadro

Detalhe do quadro "Allegoria dell'Inclinazione" da pintora italiana Artemisia Gentileschi (1593-1653), que teve obra censurada por conter um nu

crédito: Andreas SOLARO / AFP

 

Caiu em minhas mãos, por indicação de alunos da pós-graduação em sexualidade contemporânea, do IEC- PUC, o romance “Middlesex”, de Jeffrey Eugenides (Companhia das Letras). Entre outros romances e muitos contos, o autor ganhou o Prêmio Pulitzer com o livro “As virgens suicidas”, que alcançou notoriedade no filme de 1999 dirigido por Sofia Coppola.

 


Para trazer o personagem principal de “Middlesex” até o leitor, Eugenides percorreu a saga da família de imigrantes gregos fugidos da guerra, desde os avós. Órfãos, filhos do mesmo pai e mãe, desafiam a lei do incesto e se casam no navio a caminho da América, sob novos nomes.

 


Daí em diante, todas as emoções se colorem de culpa e temor pelas consequências da consanguinidade e possíveis insuficiências no futuro da prole. Tiveram na América um filho, Milton, e este teve dois, um menino e uma menina.

 


Milton insistiu em uma filha depois do primeiro. Era moderno e tinha encontrado na ciência garantias das condições ideais para gerar uma menina (copular 24 horas antes da ovulação controlada pela temperatura corporal).

 

 


Callíope nasceu duas vezes: da primeira vez, menina, e, na adolescência, menino. Sofreu então uma inadaptação que não compreendia. Seu corpo se transformou, cresceu demais em suas formas retas e angulares, com seios que não se desenvolveram, não menstruou, a voz mudou. Percebia tudo isto com sofrimento e constrangimento pela diferença, e não encontrava palavras.

 


Sentia um volume em seu clitóris, ora mais, ora menos, sofria cólicas (motivadas pelos testículos invertidos, dentro do abdome). Evitava médicos, em suas idas anuais ao velho médico da família, ele nunca era rigoroso. Era “como se” ninguém quisesse saber.

 


Lutou contra a atração pelas amigas e os indesejáveis pelos arrancados com dor. Sofrimento sufocado, calado, impalavrável. Sofreu um acidente e foi aí que descobriram seu hermafroditismo.

 

 


Levada ao especialista, sonegou informações sobre suas inclinações sexuais. Ele indicou cirurgia corretiva: a castração. Seus pais aflitos para se verem livres de sua angústia e culpa autorizam o procedimento.

 


Callíope conseguiu acesso ao prontuário que foi ocultado. Geneticamente, era menino. Um choque de realidade, entretanto, tudo parecia fazer sentido! Por temor de, aos 14, enfrentar autoridades que a impediam de opinar sobre sua vida, decidiu ser menino. Agora seria Cal.

 


Deixo ao leitor o interesse sobre as aventuras de Cal. E a reflexão sobre a questão da inadequação entre desejo e corpo biológico, nem sempre ligada à genética, como neste caso. Parte das pessoas que sofrem desta dissonância entre desejo e corpo tende a buscar solução cirúrgica, nem sempre alcançada. Não se pode consertar no corpo uma situação subjetiva.

 


No caso de Cal, o conserto cirúrgico sugerido pelo médico foi aceito pelos pais. O paciente não foi escutado, a solução para sua vida vinha de fora. No seu íntimo, sabia do desejo inconfessável. Decidiu ser fiel à sua singularidade apesar das dificuldades. Encontraria seu próprio modo de conviver com sua “diferença”.

 


Na verdade, escolheu o intersexo, causado pela deficiência no cromossomo 5. Dotado de órgãos sexuais feminino e masculino, era XY, o que os hormônios deixaram claro.

 


Entre desejo e corpo, quer se trate do desejo vindo da inversão pela escolha de gênero incongruente com o corpo, ou de uma questão genética, é absolutamente importante para o sujeito reconhecer seu desejo, que nem sempre alcança realização plena tão ansiada. Pensando bem... quem de nós se realiza plenamente?