Era uma tensa reunião do Comitê Central do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), para discutir a posição da legenda recém legalizada, às vésperas das eleições de 1986. Uma ala desejava formar uma frente de esquerda e apoiar candidatos de oposição ao governo, mas prevaleceu a posição da cúpula da legenda, então sob a liderança de Giocondo Dias, um ex-cabo do Exército que havia liderado a chamada “Intentona Comunista” em Natal (RN), em 1935, e sucedera o legendário Luís Carlos Prestes, em 1980.
“Vocês ainda vão sentir saudades do Sarney”, vaticinou Giocondo, ao defender a manutenção da política de frente democrática tecida pelos comunistas com os políticos liberais durante o regime militar e que levou à eleição de Tancredo Neves (MDB) no colégio eleitoral. Estava-se em meio à longa transição negociada com os militares, que aceitaram, contrariados, a derrota de Paulo Maluf (também não morriam de amores por ele). A alternativa descartada era uma frente com o PDT, o PT e o PSB, leia-se, Leonel Brizola, Luís Inácio Lula da Silva e Miguel Arraes, respectivamente.
O MDB venceu de ponta a ponta as eleições, com exceção de Sergipe, onde o PFL elegeu o governador. Mas o PCB só conseguiu eleger três deputados: Roberto Freire (PE), Fernando Santana (BA) e Augusto Carvalho. Naquela curva da história, perdeu qualquer esperança de recuperar a posição que ocupava em 1964, quando era principal força de esquerda do país.
Giocondo sempre foi grato ao presidente Sarney por ter convocado a Constituinte e legalizado os partidos comunistas (PCB e PCdoB), em 10 maio de maio de 1985. Seu primeiro contato com Sarney na Presidência foi “armado” pelo dirigente comunista Regis Fratti, já falecido. Ele havia dito a Giocondo que Sarney queria se encontrar com ele e repetiu o mesmo expediente numa conversa com Roseana Sarney. Como os dois gostariam mesmo de conversar, o encontro aconteceu e proporcionou uma interlocução sincera entre ambos, a ponto de Sarney se considerar amigo de Giocondo. Por sua política reformista, o moderado PCB não era nem seria uma ameaça à democracia.
Ontem, José Sarney completou 94 anos, em boas condições de saúde para sua idade e, principalmente, lúcido. Lucidez à qual recorrem os políticos de suas relações nos momentos de confusão política em Brasília. Sua carreira começou em 1955, no ano seguinte ao suicídio de Getúlio Vargas, quando se tornou deputado federal. Foram três mandatos na Câmara. Depois, tornou-se governador do Maranhão, senador e presidente da República. Sua investidura na Presidência, após a morte de Tancredo, fechou um ciclo de 20 anos de ditadura militar. Depois, foi presidente do Senado por quatro vezes, ao longo de 39 anos e seis meses.
Sarney assumiu a Presidência da República sem ter participado da elaboração do programa de governo e da constituição do ministério de Tancredo, além de ter origem no PSD (partido que sucedeu a Arena, do qual foi presidente). Foram os fatores da permanente desconfiança política em relação ao presidente da República por parte da maioria das forças que apoiaram Tancredo. Durante seu mandato, enfrentou a pressão dos militares e, simultaneamente, a tutela de Ulysses Guimarães na Constituinte.
Legado social e político
Seu governo registrou 12 mil greves, o maior ascenso do movimento sindical da nossa história, a maioria liderada pelo PT. Numa delas, em Volta Redonda, Sarney teve que enfrentar uma crise séria, porque o Exército, ao reprimir os operários da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), matou três operários. Indexada pela correção monetária, o país vivia uma inflação real de 17% e uma ciranda financeira sem precedentes.
Mas todos os indicadores sociais melhoraram em seu governo, que fechou 1989 com uma taxa de desemprego de 2,59%, o que explica o número de greves. Na política externa, deixou como legado a aproximação com a Argentina, inclusive com uma parceria nuclear, e a criação do Mercosul, com uma política externa independente, que levou ao restabelecimento das relações diplomáticas com a Cuba e China.
Entretanto, seu maior legado é a Constituição de 1988, que assegura as liberdades e os direitos sociais. Nesse aspecto, vale o registro de que Sarney estava disposto a aprovar o parlamentarismo, desde que mantivessem os seis anos de seu mandato. O acordo não saiu porque Mario Covas, o grande líder do PSDB, não aceitou. Preferiu reduzir o mandato de Sarney para cinco anos e convocar eleições solteiras para a Presidência em 1989, como de fato ocorreu.
Olhando a história retrospectivamente, a sucessão de Sarney em 1989 surpreendeu todos os atores políticos que o questionavam, derrotados por Fernando Collor de Mello, cujo governo resultou em mais inflação e na sua própria renúncia, para evitar o impeachment. O fracasso do Plano Cruzado, que havia proporcionado a vitória espantosa do MDB em 1986, foi carimbado como um “estelionato eleitoral” pelo ex-ministro da Fazenda Delfin Neto, o que jogou no chão a imagem do governo.
Essa expressão entraria para o nosso vocabulário político como uma espécie de maldição. Foi usada contra Collor de Mello, após o confisco da poupança, e contra Fernando Henrique Cardoso, após a reeleição, devido à crise cambial. Dilma Rousseff também foi acusada de trair seus eleitores após a reeleição, ao dar um cavalo de pau na “nova matriz econômica”.