
A maldição de Némesis assombra a economia americana
Ainda não está claro como Némesis seduzirá o atual presidente dos EUA às aguas profundas de sua vaidade e arrogância e soterrará a soberania norte-americana
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Nos idos de 1990, a abertura e intensificação do comércio mundial deram início à fase mais pujante das trocas entre as economias. Foi a partir de então que as economias europeias e estadunidense começaram a terceirizar parte expressiva de suas produções para a Ásia, tornando a China o quintal fabril do mundo. As potências do Ocidente transformaram a Ásia na mão de obra escrava contemporânea. E hoje a China não só domina o mercado fabril como é o maior “trader” mundial.
Em seu primeiro mandato como presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump criou o “Tax Cuts and Jobs Act” (TCJA, em tradução livre, Lei de Corte de Impostos e Empregos), que tinha por objetivo principal reduzir impostos para as empresas e os indivíduos e, com isso, estimular a atividade econômica. Dentre as medidas mais impactantes estavam a redução dos impostos corporativos, da ordem de 35% para 21%, acompanhada de redução menos expressiva para os indivíduos.
No curto prazo, a TCJA promoveu a repatriação de lucros no exterior, de cerca de US$ 1 trilhão, em decorrência da redução das alíquotas de repatriação – de 35% para percentuais entre 8,0% e 15,5% -; o desemprego caiu a patamares historicamente nunca vistos e a Bolsa de Valores (S&P) subiu mais de 30% entre 2017 e 2019. Em contrapartida, o TCJA aumentou significativamente o déficit fiscal e a concentração de renda, criando desafios sociais de difícil superação.
O presidente Donald Trump ficou conhecido mundialmente, no seu primeiro mandato, por sua truculência, seus desmentidos, sua arrogância e por seu narcisismo. Caso raro de um presidente que não conseguiu se reeleger, voltou após 4 anos e o poder parece ter lhe “subido ainda mais à cabeça”. Sua posse, marcada pela presença dos super-ricos das “big techs” e pelas festas que pareciam reunir o Produto Interno Bruto (PIB) norte-americano, deu o tom de sua reestreia.
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O retorno de Trump à presidência dos EUA faz-me lembrar a clássica história da mitologia grega, “A Maldição de Némesis” – a deusa grega que personificava a vingança divina, o equilíbrio moral e a punição aos arrogantes. Em que medida essa história mitológica remete ao presidente Trump? Tudo começa com o personagem Narciso - aquele também conhecido pela letra e música de Caetano Veloso sobre a metrópole São Paulo, quando diz que ”narciso acha feio o que não é espelho”.
Na mitologia, Narciso era um homem jovem de beleza inigualável e que carregava consigo outros atributos: egoísmo, orgulho e desdém. Por conta de sua beleza extraordinária, Narciso atraia a atenção de todos, embora desprezasse sempre quem se apaixonasse por ele. A ninfa Eco, uma linda jovem mulher desprezada por Narciso, pede a Némesis para vingá-la, e ela assim o faz, de tal modo que Narciso “afoga-se em sua própria beleza”.
Imbuído de arrogância pouco vista explicitamente entre líderes de poderosas nações, o presidente norte-americano volta ao poder como se voltasse para seu escritório na Trump Tower e adota um estilo “jogador de pôquer” para transacionar com outras economias como se não houvesse distinção entre ser um empresário e ser um chefe de Estado. Esse tipo de comportamento se exacerbou na semana passada ao sinalizar informações privilegiadas para “traders” do mercado de ações.
Não me dedicarei aos efeitos que as tarifas comerciais impostas a várias economias do mundo, e em especial à China, podem gerar de impactos negativos, inflacionários e desestabilizadores no mundo, encerrando, possivelmente, a era dos grandes fluxos comerciais. As decisões e suas subsequentes suspensões ou adiamentos fazem parte do estilo Trump de governar e isso traz ainda menos previsibilidade para um mundo que tem vivido anos de guerras, refúgios e instabilidades econômicas.
Detenho-me, exclusivamente, no que considero uma das melhores reflexões recentes. O Nobel de Economia Joseph Stiglitz, em entrevista ao canal Democracy Now, traçou a seguinte linha de argumentação: presidente Trump quer tornar a indústria dos EUA forte novamente, mas ela só representa 9 a 10% da economia; em contrapartida, está devastando os setores de turismo, saúde e educação. Para Stiglitz, não há teoria econômica por trás de nada que o atual presidente faz.
Sobre o turismo, a título de ilustração, uma análise do jornal Financial Times sobre os dados relativos ao turismo apontou uma redução de 12% do número de visitantes estrangeiros viajando para os EUA em março do ano corrente, na comparação em relação a igual período do ano anterior, sendo que turistas de países como Irlanda, Noruega e Alemanha tiveram queda ainda mais expressiva, da ordem de 20%.
Stiglitz ainda afirma que a economia norte-americana não tem mais logística, fornecedores, cadeias de suprimento etc., sem contar que a manufatura moderna é composta de robótica, o que impactaria negativamente sobre o mercado de trabalho, caso houvesse a expectativa de aumento de empregos com a nova política industrial. Vive-se um sonho de retornar aos idos de 50 da pujante indústria do século passado em uma economia dominada pela tecnologia moderna do século XXI.
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Na vingança de Némesis, a deusa leva Narciso à beira de um lago e faz com que ele se veja pela primeira vez. Narciso se encanta com aquela beleza refletida nas águas do lago e torna-se obcecado, de tal forma, que não consegue parar de olhar para si mesmo. Consumido por sua vaidade, Narciso acaba por se afogar ao tentar aproximar-se de seu próprio reflexo, culminando, assim, em sua morte.
Ainda não está claro como Némesis seduzirá o atual presidente dos EUA às aguas profundas de sua vaidade e arrogância e soterrará a soberania norte-americana. Ao que tudo indica e ao continuar nessa toada, parece-me uma questão de tempo. Afinal, como dito na cena mais icônica do filme “O Advogado do diabo”: “a vingança é um prato que se come frio. (...) saboreada a cada momento. Porque quando finalmente chega... ah, não há nada mais doce”. Tempos mais duros estão por vir.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.