Dedo de mão adulta toca dedo de mão de criança -  (crédito: Pexels)

Antes de apontar para o outro, precisamos apontar para nós mesmos

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Estudar direito é uma coisa curiosíssima, pois te proporciona uma encruzilhada na vida e que cabe a cada formando escolher. Por um lado, você pode se tornar um completo boçal que se julga apto a vomitar regras e enquadrar a vida das pessoas, achando-se uma deidade com espírito superior, especialmente com o uso de linguagem empolada suficiente para que a violência (e a sua boçalidade) não sejam tão escancaradas.

Por outro lado, você pode escolher navegar loucamente (e ficar meio doido também) na complexidade que é viver em sociedade e como é difícil reduzir em texto (no caso, a lei) todos os melindres da vida. Optando por este caminho, é possível descobrir que uma pessoa analfabeta pode ter muito mais senso de introjeção normativa do que uma pessoa com doutorado, de modo que se descobre (não sem certo espanto) que a ideia de criar normas de convivência pelo legislativo é um trabalho tão difícil e complexo quanto improdutivo se a realidade for ignorada.

A norma é só um condensado de coisas que surgem de demandas que a sociedade já criou. O operador do direito (é pomposo esse nome) nada mais é do que um “papagaio” daquilo que a sociedade fez de forma criativa, inovadora e produtiva. Talvez por isso os profissionais do direito deveriam estudar mais antropologia, economia, psicologia e sociologia para descobrirem que são meros serviçais daquilo que a vida impõe.

Serviria também como um bom remédio social para que as pessoas parassem de depositar as suas expectativas heroicas no direito e nos seus profissionais, dado que eles são muito (muito!) mais limitados do que talvez eles mesmos possam imaginar.

A falta desta percepção mata. E porque eu estou fazendo esta volta toda? Exatamente porque a gente é brasileiro e brasileiro é acostumado com notícias ruins. A gente levanta de manhã, tenta acordar, tomar um café e fazer com que o cérebro funcione para tocar o seu dia. Se nesse caminho você cometer o sacrilégio de ligar a TV e ver o noticiário, antes que o primeiro gole de café chegue ao estômago, o seu cérebro já foi bombardeado com tanto terror que a comida estraga.

Entretanto, eu fico bem satisfeito por não me acostumar com isso. Não conseguiram me dessensibilizar ao ponto de ver determinadas notícias e achar “normal”. Pode até ser comum, mas não é normal. E essa última semana, mesmo com todo o nosso preparo tupiniquim, foi difícil de chegar ao final sem muito mal estar.

Foi um conjunto tão grande de notícias com violência extrema que eu precisei desligar um pouco para manter a sanidade. Não dá para assistir uma notícia sobre múltiplos estupros, violência contra crianças, feminicídios no meio da rua e mais uma série de outras coisas e ir ali fazer qualquer coisa.

Não é possível deixar de pensar a quantidade de gente que morre (ou que morre em vida) de forma tão abominável e estupidamente desnecessária. Difícil viver assim e talvez por isso eu entenda aqueles que preferem se alienar disso tudo para tentar deixar as coisas mais leves.

Eu não consigo, principalmente porque sempre vejo que as pessoas, em geral, buscam no direito e nos seus profissionais a solução para este problema crônico que vivemos desde tempos imemoriais. As pessoas pedem penas mais duras, mais leis, maior rigor dos profissionais que lidam com isso e mais uma série de medidas que, ao fim, se resumem a pedir que o direito e seus profissionais “resolvam o problema”.

Triste é ver profissionais do direito que acreditam nesta mentira e assumem um papel quase vexatório de tentar virar um super-herói de quadrinhos contra o mal que assola a cidade. Não resolve, nunca resolveu, nunca vai resolver e, normalmente, desemboca em abuso de autoridade a pretexto de combater ilegalidades.

Daí me vem uma história antiga que aprendi na faculdade e que sempre fez bastante sentido para mim: o Império Romano é dividido (grosseiramente) em dois períodos. Um em que ele era hegemônico e muito forte e outro em que entrou em declínio.

O que chama a atenção quando se compara os dois períodos é que no período do ápice do Império havia muito menos leis do que no seu declínio. A maior profusão de leis do Império Romano se deu exatamente no seu período de maior declínio. E a explicação não é mirabolante.

Uma sociedade ética precisa de poucas leis. Uma sociedade civilizada precisa de poucas limitações normativas e poucas ameaças de sanção. A ética é um padrão não normativo, mas que conversa diretamente com a construção das regras jurídicas que vão reger a sociedade.

Quando você abre o Código Civil e passa o susto com o tamanho daquele negócio, você começa a perceber que a imensa maioria das coisas que estão escritas ali são obviedades. Se você compra, é seu, mas tem que pagar. Se você estraga alguma coisa de alguém, tem que reparar. E assim sucessivamente. São regras mais éticas do que qualquer outra coisa.

Dizendo de outra forma (e é o ponto que quero chegar): o problema desse caos que vivemos não é jurídico, mas filosófico e ético. Não sabemos (e nunca soubemos) que tipo de sociedade queremos. Nunca paramos para discutir no plano político, sociológico e ético quais parâmetros queremos para viver.

Quando isso foi tratado, ocorreu a imposição da vontade de um diminuto grupo em detrimento de todos e isso só piora as coisas. O resultado é que vivemos em uma sociedade que joga lixo no chão, compra coisas falsificadas, sonega tributos e reclama que a lei não é cumprida.

Vivemos em um ambiente em que distintas senhoras da classe A furam a fila do teatro ou desrespeitam o caixa preferencial para idosos, gestantes e pessoas com deficiência; respeitáveis membros do mundo corporativo ou do poder público humilham publicamente trabalhadores por sua simples condição social; aceitamos que o trânsito seja um lugar de desrespeito e violência gratuita, simplesmente porque o outro não pode esperar. Mas a lei não é rígida o suficiente.

E é nesse contexto que, diante de uma notícia chocante, pedimos que os profissionais do direito façam alguma coisa e que a lei seja instrumento de mudança. E isso simplesmente não vai acontecer, pois a lei, na sua pequenez, só é fruto do que somos. Os profissionais do direito, na sua ainda mais aguda pequenez, são reles operários dessa máquina que funciona independente da sua vontade e que nem de longe fornece ferramentas úteis para a solução desses problemas.

As sociedades que evoluíram nas últimas gerações esqueceram os tribunais e foram buscar em si mesmas, em suas práticas e no cerne da sua formação os elementos necessários para se superarem. Problemas sempre haverá e o direito e seus profissionais existem no mundo inteiro por isso. Entretanto, ao contrário do que se pensa por aqui, eles têm que ser pequenos, insignificantes quase, trabalhando invisivelmente naquelas excepcionalidades.

Quando o direito assume o centro de tudo, é um sinal relevante de que estamos no caminho errado.