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Uma das discussões mais polêmicas do século é a definição do que é ser macho ou fêmea na espécie humana. Se, no aspecto comportamental, esse assunto requer muito mais do que análises a ferro e fogo, para a ciência, a resposta, que não é simples, certamente é clara: redes neurais distintas em cada sexo. Essa característica traz consequências diversas. Uma delas é a capacidade mais aguçada que as mulheres têm de assimilar odores. A descoberta é de dois estudos recentes produzidos no Brasil. A explicação para isso, entretanto, permanece desconhecida.

A equipe liderada por Roberto Lent, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, constatou que as mulheres têm entre 40% e 50% mais células no bulbo olfatório, região do cérebro responsável por processar odores. O resultado da pesquisa, fruto da tese de doutorado de Ana Virgínia Oliveira-Pinto, aluna de Lent, foi publicado na revista especializada Plos One.

Com a colaboração do Banco de Cérebros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), os cientistas investigaram 18 cérebros, sendo que 11 deles eram de mulheres. Até então, essa capacidade distinta de perceber odores era apenas uma suspeita. Entretanto, após uma contagem milimétrica dos neurônios e das células do bulbo olfatório, o professor Lent concluiu que as mulheres podem, realmente, ser mais hábeis quando o assunto é cheiro. O método utilizado para fazer a contagem, chamado de fracionador isotrópico, foi desenvolvido há quase uma década pelo próprio Lent com outra especialista da UFRJ, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel.

CONHECIMENTO BRASILEIRO

Como o cérebro é muito volumoso, as células só podem ser contadas se analisadas em pequenas amostras de tecido. Entretanto, se elas forem muito diferentes umas das outras, as chances de obter resultados equivocados são grandes. “É como se, de um helicóptero, quiséssemos contar o número de pessoas em um bairro ou praça em um dia comum. Teríamos que contar ‘amostras’ de áreas pequenas e, depois, multiplicar pela área total, e erraríamos bastante”, conta Lent.

Para driblar esse problema, a técnica desenvolvida nos laboratórios da UFRJ transforma o tecido cerebral heterogêneo em um meio homogêneo, fazendo dessas amostras uma “sopa de núcleos celulares”. Primeiro, um pedaço do tecido — no caso, do bulbo olfatório — é reservado e triturado para que as células se separem. Depois, a partir de um método de coloração, as células neuronais são distinguidas das outras, permitindo que elas sejam, literalmente, contadas. O cálculo mostrou que as mulheres têm, em média, 16,2 milhões de células na região, enquanto os homens têm cerca 9,2 milhões. O número de neurônios também difere: elas têm 6,9 milhões e eles, 3,5 milhões. A metodologia da UFRJ também foi divulgada na Plos One.

Marcos Romualdo Costa, professor adjunto de neurociência na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pondera que nem sempre mais é melhor. “Alguns anos atrás, pesquisa nessa linha mostrou o resultado contrário, isso é, que homens têm mais neurônios no córtex”, diz. “Entretanto, apesar de ter menos neurônios nessa parte, as mulheres têm maior densidade. Os pesquisadores sugeriram que, se há menos células, existem mais processos”, completa.

Por isso, partindo dessa lógica, não necessariamente os homens têm uma percepção menor de odores. “Não sabemos se mais neurônios resultam em uma experiência olfativa mais elaborada, pois é possível que uma quantidade menor dessas células seja compensada por um número maior de sinapses”, observa. O especialista frisa que é preciso ter cautela antes de qualquer conclusão. “Precisamos de mais pesquisas, com amostras de pessoas que morreram com a mesma idade, pois há degeneração do cérebro à medida que envelhecemos. Também seria interessante verificar outras regiões do cérebro para ver se os resultados são semelhantes, além de fazer estudos com mais pessoas, inclusive do mesmo sexo”, sugere.

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Valdo Virgo/CB/D.A Press

Os autores do estudo reconhecem que ainda não sabem o que causa essa diferença. Lino Pinto de Oliveira Junior, professor de anatomia e fisiologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS), acredita que as mulheres podem ter desenvolvido maior sensibilidade ao longo da evolução, especialmente por serem as responsáveis por cuidar dos filhotes. A mesma teoria é defendida por Lent.

Entretanto, assim como Costa, Oliveira Junior diz que as suposições ainda são muito difíceis de ser comprovadas. Ele ressalta que as descobertas da equipe de Lent podem ser somadas a outras, de forma que a ciência avance mais no entendimento dos dimorfismos. “Além de revelar um pouco sobre nosso organismo, pesquisas assim mostram que existem fatores desconhecidos que interferem na forma como entendemos as relações sociais”, observa o professor.

Pode ser, por exemplo, que a maior sensibilidade aos odores, aliada a outros processos sociais e ambientais, explique por que uma pessoa se interessa pela outra. “Nem tudo é raciocínio lógico, e as sensações podem interferir no comportamento de forma não explícita e inconsciente. Os cientistas sempre procuraram entender essas diferenças entre os gêneros. Quem souber o que realmente se passa na cabeça de uma mulher terá encontrado o Santo Graal”, brinca o professor.

DUAS PERGUNTAS PARA... Roberto Lent, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ

Os resultados mostraram que as mulheres têm mais neurônios e células nessa região do cérebro. Por enquanto essas descobertas têm alguma aplicabilidade prática?

Não, por enquanto não vejo aplicabilidade prática, a não ser, talvez, para orientar as empresas de perfumes e cosméticos a privilegiarem as mulheres. Mas isso elas já fazem, intuitivamente. Os resultados que obtivemos são de interesse conceitual: existem diferenças sexuais no cérebro humano, e elas são diferentes de acordo com as regiões, o que deve refletir - ou causar - as diversidades funcionais ou cognitivas existentes.

O estudo ainda não chegou a uma conclusão sobre as origens e razões desse dimorfismo. Mesmo assim, qual a opinião do senhor sobre isso?

Tudo indica que essas diferenças são inatas, isso é, próprias de cada sexo e não de aspectos culturais ou sociais. Pelo menos, não exclusivamente. Possivelmente, durante a evolução, foi vantajoso para as mulheres terem o olfato mais desenvolvido, para melhor reconhecer e cuidar das suas crias, e para melhor se adaptar às necessidades da evolução.