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Estado de Minas

Família terá que avalizar uso de células de Henrietta Lacks, que revolucionaram a medicina

Morta aos 31 anos, negra americana teve, sem permissão, suas células usadas em pesquisas que revolucionaram a medicina. Sessenta anos depois, família terá de dar aval a cientistas


postado em 08/08/2013 08:34 / atualizado em 08/08/2013 08:35

Células de Henrietta, descendente de escravos, ajudaram a criar vacina contra a poliomielite, entre outros avanços(foto: Lacks Family/Reuters)
Células de Henrietta, descendente de escravos, ajudaram a criar vacina contra a poliomielite, entre outros avanços (foto: Lacks Family/Reuters)
Brasília – Henrietta Lacks era mulher, negra, pobre e vivia no auge da segregação racial dos Estados Unidos pós-guerra. Em sua época, não foi ninguém – no máximo, a dona de um prontuário médico da ala de “pessoas de cor” do Hospital Johns Hopkins, no qual era apontada como um “espécime miserável”. Morta, até ao espaço ela chegou. As células tumorais de Henrietta, retiradas sem seu conhecimento e autorização, foram enviadas para um experimento de gravidade zero em uma das primeiras missões espaciais americanas. Hoje, a descendente de escravos vive, por meio de culturas de laboratório, em todas as partes do mundo, e, só agora, 60 anos depois de sua morte, a família foi consultada sobre o uso do material em pesquisa.

As chamadas células HeLa (pronuncia-se rila) foram as primeiras provenientes de um câncer humano a sobreviver fora do corpo, dividindo-se infinitamente, e, por isso, se transformaram em uma das mais importantes ferramentas da ciência. É praticamente impossível imaginar uma doença ou condição que não tenha sido estudada nessa linhagem – de infecções virais a Aids e diversos tipos de câncer, passando por experiências de fertilização in vitro e clonagem. Quem tomou vacina contra a poliomielite, por exemplo, deve a proteção recebida a Henrietta Lacks. Foram as células imortais da mulher, vítima de câncer cervical em 1951, aos 31 anos, que permitiram testar a imunização.

Nem Henrietta nem seus familiares jamais foram recompensados por isso. A equipe que fez a biópsia no tumor da paciente não informou que tentaria cultivar as células da jovem. Até então, testes para manter tecidos humanos in vitro haviam sido frustrados. Surpreendentemente, por um motivo que ninguém sabe explicar até hoje, as células de Henrietta não apenas sobreviveram como jamais pararam de se dividir. Sessenta e dois anos depois da morte da americana, a cada 24 horas uma nova linhagem de células HeLa é reproduzida em discos petri.

Enquanto ela morreu sem saber que suas células seriam um divisor de águas para a pesquisa médica, os cinco filhos só tomaram conhecimento disso na década de 1970. Ainda assim, não porque os cientistas estivessem arrependidos e quisessem pedir a autorização. Na verdade, a família também foi usada pelos pesquisadores, que estavam interessados em investigar se a incrível característica de sobrevivência celular de Henrietta havia sido herdada pelos descendentes.

Supervisão

Para muitos cientistas, contudo, os benefícios à humanidade não justificam o uso das células HeLa sem o conhecimento da família. Só agora os descendentes foram consultados formalmente pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, sigla em inglês) dos EUA, que pediram autorização para publicar o sequenciamento genético do tumor de Henrietta. Os dados estarão em um banco, supervisionado por uma comissão, da qual fazem parte cientistas dos NIH e familiares da mulher. Para que as informações sejam usadas em futuras pesquisas, será necessária aprovação prévia.

A formalidade ocorreu poucos meses depois de mais uma polêmica envolvendo as células HeLa. Em março, um consórcio genético alemão publicou, com apoio tecnológico dos NIH, o sequenciamento do material, em um site de livre acesso. Embora nenhuma regra tenha sido violada, a divulgação enfureceu mais uma vez os filhos de Henrietta. Poucos dias depois, os dados foram tirados do ar. Ontem, a comunidade científica teve acesso novamente ao sequenciamento, que revelou, inclusive, marcadores do vírus do HPV no organismo de Henrietta. Esse é um sinal de que a infecção por papilomavírus humano pode ter originado o câncer no colo do útero. Novamente, a descendente de escravos está ajudando a medicina a entender melhor uma das doenças que mais matam mulheres em todo o mundo.

Agora, porém, a publicação dos dados na revista Nature tem a autorização da família. Além do sequenciamento genético, o periódico britânico divulgou um artigo e um editorial sobre o acordo feito entre os NIH e os filhos de Henrietta. Em uma reunião com a imprensa, o diretor do órgão afirmou que o acordo é um marco. “O sequenciamento e a publicação do genoma HeLa trouxeram à tona um importante tema ético. Para entender as perspectivas da família, nos encontramos com eles frente a frente três vezes ao longo de quatro meses e ouvimos cuidadosamente suas preocupações. No fim, chegamos a um termo que respeita seus desejos e permite à ciência progredir.” “O genoma HeLa é outro capítulo da história inacabável de Henrietta Lacks”, comentou Jeri Lacks-Wheye, neta de Henrietta e porta-voz da família.” “Ela é uma mulher fabulosa que continua a surpreender o mundo. A família Lacks sente-se honrada em fazer parte de um acordo importante que, acreditamos, será benéfico para todos”, completou.

Patente
Apesar de comemorado pela família Lacks, o acordo só diz respeito ao uso do sequenciamento genético de Henrietta, deixando de fora o cultivo das células em laboratório. Francis Collins, que utiliza as HeLa em pesquisas genéticas, contou que alguns membros da família chegaram a pensar em compensação financeira, ideia que se mostrou impossível. Os cientistas envolvidos na negociação até sugeriram que a família poderia patentear um exame genético para testar câncer, que teria as células HeLa como base. Contudo, ironicamente, foi uma decisão comemorada pelos bioéticos que invalidou a ideia: há pouco tempo, a Suprema Corte americana determinou que genes não podem ser patenteados. Para a porta-voz dos descendentes de Henrietta, contudo, isso não importa. “Meu pai sempre dizia que se sentia pago por saber tudo que sua mãe tinha feito pelo mundo”, declarou Jeri Lacks-Wheye.

 


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