Brasília – Demorou mil anos. Tempo suficiente para que as feridas produzidas pelo Cisma de 1054 entre a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Ortodoxa Russa começassem a cicatrizar. Em uma demonstração de que as mágoas entre os dois ramos do cristianismo começam a se amainar, o papa Francisco e o patriarca Kirill manterão, hoje, um encontro sem precedentes. Em viagem à Cidade do México, o pontífice argentino aproveitará uma escala em Havana para se se reunir com Kirill por cerca de duas a três horas, no Aeroporto Internacional José Martí, a partir das 14h15 (17h15 em Brasília). Ao fim da conversa, ambos assinarão uma declaração conjunta e farão pronunciamentos. Especialistas consultados pela reportagem destacaram a importância do “abraço inter-religioso” e admitiram a preocupação de Francisco com os cristãos do Oriente Médio, alvos do terrorismo.
O evento será uma marca para o papado do primeiro pontífice latino-americano. A notícia do encontro foi anunciada de forma inesperada pelo Vaticano na semana passada e representa uma nova etapa nas relações entre as duas igrejas cristãs mais importantes do mundo. Cuba, considerado território neutro, acolherá a reunião. “O encontro será realizado em Cuba, onde o papa fará escala antes de sua viagem ao México, e onde o patriarca estará em visita oficial”, anunciou o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi. “Este encontro dos primados da Igreja católica e da Igreja ortodoxa russa será o primeiro na história e marcará uma etapa importante nas relações entre as igrejas”, destacou o Vaticano.
O pontífice e o líder da Igreja ortodoxa russa terão “um encontro pessoal, que concluirá com a assinatura de uma declaração comum", informou Lombardi. Desde 1054, data das excomunhões mútuas e do maior cisma da cristandade, nenhum pontífice ou patriarca de Moscou tinham se encontrado. Os dois líderes optaram pela América Latina, já que Kirill foi convidado pelo presidente cubano Raúl Castro a visitar a ilha e o papa tinha programado a viagem ao México para o período que vai de hoje a 17 de fevereiro.
O encontro, segundo Lombardi, terá como mediador o presidente anfitrião. “Trata-se de um sinal de esperança”, destaca o Vaticano, que convida “todos os cristãos a rezar com fervor para que Deus abençoe o encontro, para que dê bons frutos”. Há anos se falava da aproximação entre o papa e o patriarca de Moscou, líder de dois terços dos 200 milhões de ortodoxos no mundo. O papa considera prioritária a aproximação entre religiões, em particular com as cristãs, que lutam no Oriente Médio contra o radicalismo. (Com agências)
Três perguntas para...
Anna Carletti
Professora de relações internacionais da Universidade Federal do Pampa, autora de O internacionalismo vaticano e a nova ordem mundial
Passados mil anos de cisma, o que representa essa reunião?
O encontro entre o patriarca russo e o papa Francisco é histórico, pois os esforços pela reaproximação vêm de décadas. O cisma aconteceu em 1054 abrindo uma ferida que parecia incurável. Na década de 1960, o papa Paulo VI e a o patriarca de Constantinopla, Atenagora, após vários encontros, assinaram uma declaração conjunta anulando a excomunhão recíproca de 1054. João Paulo II, na encíclica Ut unum sint, com foco na unidade dos cristãos, manifestava a disposição da Igreja Católica a repensar as formas de exercício do primado de São Pedro. Durante o seu pontificado, houve intensas negociações por um encontro com o patriarca Alexis II, mas, de última hora, o encontro foi cancelado.
Ao longo de 10 séculos, as diferenças foram amenizadas?
O diálogo inaugurado e fortalecido durante o pontificado de Paulo VI contribuiu para aproximar católicos e ortodoxos. Existem encontros periódicos de diálogo em que o conhecimento recíproco é aprofundado e em que se procura encontrar o que pode unir.
Quais podem ser os próximos passos?
No encontro em Cuba, os dois lideres vão assinar uma declaração conjunta centrada principalmente na perseguição aos cristãos no Oriente Médio e na África. Não vai ser discutido o aspecto teológico, que é objeto de diálogo em uma comissão internacional ad hoc. Provavelmente, essa reunião servirá como testemunho da vontade de comunhão entre as duas igrejas frente aos problemas atuais que o mundo tem de enfrentar. O papa Francisco deixou claro que respeitará o espaço da Igreja Russa no que diz respeito ao problema tradicional do “uniatismo”, considerada por ele uma palavra ultrapassada e que até hoje foi grande obstáculo para a aproximação. Será uma primeira etapa à qual poderão seguir-se outras. (Sílvio Queiroz)