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Estado de Minas

Histórias de mulheres que assumiram cabelos crespos viram livro

Mulheres dão as costas ao preconceito, abandonam os alisamentos e assumem as texturas dos cabelos. A atitude ganha contornos políticos e é o tema de livro a ser lançado no próximo mês


postado em 21/09/2016 06:00 / atualizado em 21/09/2016 07:44

Depois de anos de alisamento, a recepcionista Josimara Vieira ostenta o black power, de bem com a autoestima(foto: Leandro Couri/EM/DA Press)
Depois de anos de alisamento, a recepcionista Josimara Vieira ostenta o black power, de bem com a autoestima (foto: Leandro Couri/EM/DA Press)
Houve tempo em que as meninas tentavam de todas as formas esconder o volume do cabelo, retiravam os cachos e eliminavam os crespos. Custasse o que custasse, todas as técnicas disponíveis eram usadas para deixar as madeixas lisas. Produtos químicos, escova e chapinha faziam parte da vida de muitas mulheres desde a infância. Algumas nem sequer sabiam como era o cabelo, como é o caso da poeta Nívea Sabino, de 36 anos. A mãe alisava o cabelo da menina para facilitar os penteados. De uns anos para cá tudo mudou e cada vez mais as meninas literalmente encrespam e deixam os cabelos livres independentemente das texturas, que são muitas desde os cacheados até os crespos.

O livro Meu crespo, nossa história, da Crivo Editorial, que será lançado no próximo mês em Belo Horizonte, mostra que o que antes era desvalorizado por parte da sociedade virou motivo de orgulho e de luta política de meninas e mulheres negras. “As vozes são desabafos para além do travesseiro. São autoafirmações de que somos lindas, e que nossos espelhos sempre estiveram certos. Sempre estiveram ali, nos esperando com um sorriso no olhar. E ao olharmos para ele, nos amamos, mostrando assim a verdadeira beleza negra”, afirma Walkiria Gabriele, uma das autoras do livro.

Nas páginas do livro, ela adianta que os leitores encontrarão relatos de pessoas de todas as partes do Brasil. Histórias, como elas definem, de quem se aventurou a se descobrir pela via da transição capilar. “O livro é um espaço para se conectar e entender as dores e alegrias que nós, mulheres negras, trazemos em vida e em palavras. As histórias se complementam: que todas somos uma e uma somos todas.”

A ideia de criar o livro surgiu logo depois que Walkíria e a irmã Mikaela Gabriele tomaram a decisão de não mais alisarem o cabelo, retirando toda a química da cabeleira. Muitas meninas fazem um corte bem curto, o chamado big chop, para deixar o cabelo crescer de forma natural. Na época, as irmãs resolveram criar campanha para incentivar outras meninas a assumirem a textura. Fizeram a página @cachosdanegra no Instagram. “Queríamos receber relatos das meninas que, assim como nós, estavam e estão passando pelo processo da transição capilar. E no intuito de nos fortalecer e às outras, decidimos produzir o livro com os relatos”, diz Walkíria. As autoras afirmam que o livro é um ponto de força, uma maneira de dizer: “Segue em frente e não desiste”.

A batalha não é fácil. Mesmo com a certeza de que querem usar o cabelo natural, as meninas precisam enfrentar comentários que desvalorizam o crespo. “Ia ao salão toda semana, gastava até R$ 120 por mês. Quando cortei, pensei: meu Deus, estou maravilhosa. Para as pessoas foi difícil, para mim foi de boa”, lembra a recepcionista de uma clínica médica Josimara Vieira, de 22 anos. Como não tinha paciência para o processo de transição, quando os cabelos com química são cortados à medida que o fio natural cresce, ela optou por passar máquina e praticamente raspar. “Desde quando era criança eu alisava o cabelo. Quando resolvi mudar, estava muito decidida”, afirma. Um ano e quatro meses depois, ela ostenta um poderoso black power, tira fotos e está de bem com a autoestima.

Walkíria afirma que cada menina vivencia de uma maneira a transição capilar, que é um processo de múltiplos sentimentos e descobertas. “Vai do se aceitar, reconhecer enquanto negra, criar a identidade própria, olhar no espelho, gostar do que vê, também é o de dor, de alegria. Do amar a si mesma”, afirma. E como nem sempre é fácil, muitas meninas foram para a web buscar referências. “A internet vem numa fase fundamental, em que buscamos inspirações em blogs, YouTube, entre outros sites. Para nosso projeto foi um abraço imenso. Foi onde tudo começou. Quando percebemos que podíamos ir além da internet, decidimos produzir o livro e alcançar mais vozes”, afirma a dupla que ministra palestras e participa de debates com a temática negra.

A poeta Nívea Sabino, de 36, há seis anos optou pelo cabelo crespo, deixando o alisamento para o passado. “Não conhecia o meu cabelo, desde a infância, ele era alisado”, lembra. Referência da ocupação do espaço público na cidade, Nívea usa as rimas para falar das questões raciais em diversos saraus de poesia na cidade. Também atua como arte-educadora levando a discussão sobre assumir a identidade negra para jovens e adolescentes. Nívea é a prova de que assumir o crespo é uma maneira de valorizar a cultura negra e lutar para que ela seja respeitada na sociedade. “Por sermos mulheres e negras, percebemos que temos que travar uma luta diária. Ao acordar e ao dormir”, completa Walkíria.

(foto: Bárbara Godinho/Divulgação)
(foto: Bárbara Godinho/Divulgação)
Três perguntas para

Walkíria Gabriele (à esquerda) e Mikaela Gabriele, autoras do livro Meu crespo, nossa história

Como surgiu a ideia de criar o Cachos da negra?

O Cachos da negra nasceu em 2014 com o desejo de empoderar e incentivar mulheres e homens negros no processo de pré-transição capilar e pós-transição capilar. A ideia surgiu quando estávamos eu Mikaela Gabriele e Walkiria Gabriele no processo de transição e buscávamos pelo site Instagram algumas páginas que divulgassem o cabelo crespo/cacheado para nos inspirarmos. Percebendo então certa carência na divulgação de mulheres negras, com cabelos crespos do tipo 4C (há uma gradação do liso ao mais crespo e o 4C é o mais crespo), resolvemos criar a nossa própria página no Instagram a @cachosdanegra .

Qual o propósito do livro?
Sabendo que o processo de transição capilar é uma fase difícil para quem decide voltar ao natural, pois se reconhecer negra numa sociedade extremamente racista e conservadora é uma luta de afrontamento constante. A motivação maior de continuarmos lutando para que as negras (os) se aceitem enquanto crespas (os) e cacheadas (os) vai muito além da estética capilar, vem com o cabelo a autoestima e o emponderamento. O Projeto busca que todas as mulheres sejam livres de escolha e se aceitem como são. Assim como nós nos reconhecemos como negras, por meio do processo de transição gostaríamos que outras (os) compartilhassem desse mesmo sentimento. E assim quebrando o preconceito do cabelo crespo/cacheado.

O que é o empoderamento?
Quando pensamos em empoderamento, trazemos um rosto de uma mulher negra, confiante, resistente e de autoestima. Quando levamos essa palavra para o lado estético do cabelo, percebemos que define todo o processo de aceitação da raiz, da textura, da etnia e do próprio corpo em si. Empoderar é incentivar e buscar incentivo. Nesse processo lançamos a campanha resistência onde meninas e meninos mandavam textos contando seu processo de transição. Que resultou no livro Meu crespo, nossa história.


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