(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Após 45 anos, mulher pode ter encontrado filha separada dela por causa da hanseníase

Mãe afastada dos filhos quando era interna de colônia para hansenianos em Bambuí acredita ter localizado sua caçula, dada como morta. As duas farão exames em São Paulo.


postado em 23/09/2012 07:13 / atualizado em 23/09/2012 07:50

Maria Aparecida da Silva - 65 anos, dona de casa(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Maria Aparecida da Silva - 65 anos, dona de casa (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


Bambuí – A dona de casa Maria Aparecida da Silva aparenta ter mais de 65 anos. Tem o rosto envelhecido pelo sofrimento. Quando nova, chamava a atenção pelos cabelos louros e lisos, os olhos esverdeados e o corpo esbelto. A beleza da mãe, porém, tornou-se uma maldição na família. Quatro dos cinco filhos de Aparecida sumiram misteriosamente, ainda bebês, durante a década de 1960, dentro da colônia para doentes de hanseníase São Francisco de Assis, em Bambuí, na Região Centro-Oeste de Minas Gerais. Renata e Wilson tinham pele cor de jambo e olhos de esmeralda, Vânia e J. eram louras de nascença. Com a mãe, restou apenas Reinaldo, o único de pele mais morena e olhos castanhos.

Desde que entrou na colônia, há quase meio século, Aparecida nunca mais saiu. Vai sair agora, depois de descobrir uma pista sobre o paradeiro da filha mais nova, J., que até então era dada como morta. Hoje, Aparecida e o único filho ‘sobrevivente’ enfrentam 598 quilômetros de estrada de Bambuí a São Paulo em busca de um rastro de esperança. “Eu era interna da colônia. Um dia, depois de muito custo, recebi autorização para ver meus filhos na pupileira (orfanato), em Belo Horizonte. Disseram que o mais velho tinha falecido de icterícia, que a Renata não tinha resistido a uma transfusão de sangue e que J. tinha morrido, mas não disseram de quê. Não peguei certidão de óbito, nem nada. Só queria ir embora dali”, diz, com os olhos vermelhos pela emoção.

Pavilhões desativados do hospital para tratar hanseníase em Bambuí viraram ruínas(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Pavilhões desativados do hospital para tratar hanseníase em Bambuí viraram ruínas (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


Aparecida tinha 18 anos quando contraiu hanseníase, a lepra. Trabalhava na roça de algodão com a mãe, em Claraval (SP). Estava ainda de resguardo da Renata, a mais velha, quando começou a não sentir as mãos. Alguém a denunciou para a saúde pública, dando início à trajetória de angústia e dúvidas. Hoje, o sofrimento de Aparecida poderá ser amainado. Mãe e a possível filha concordaram em se submeter a um teste de DNA em SP. “Se for mesmo minha filha, não sei como ela vai me receber. Esquecer, eu nunca me esqueci dela. Não sei se ela sabe que a gente não podia ficar com as crianças, só podia ver o bebê na hora em que nascia. Não acho que faziam isso por maldade; eles tinham medo de espalhar a doença”, acredita.

A técnica de enfermagem J. mora em uma cidade do interior paulista e sempre desconfiou que era adotada, mas nunca soube a história verdadeira. Loura, foi chamada de galega pelos irmãos e primos, predominantemente descendentes de índios. Ela não tem certidão de nascimento e nenhuma foto da infância. “Quero que seja verdade, porque só tenho a somar. Vou ter duas mães!”, acredita. Ela e o possível irmão Reinaldo, que têm a mesma profissão, confiam na indicação de um amigo da família. Recentemente, essa pessoa ajudou a encontrar as certidões de nascimento e de ‘óbito’ de J. em um cartório de BH, apesar de terem trocados sobrenomes, datas e local de origem, como se costumava fazer nas adoções irregulares dos filhos da hanseníase.

Exame

Amanhã, Aparecida e J. seguem juntas para um laboratório na capital paulista. O resultado do exame leva até um mês para sair. Tempo curto diante dos 45 anos de afastamento compulsório entre as duas. “Consegui ver a J. com 15 dias de nascida. Era lourinha. Sou espírita e dei a ela um nome com significado. Como não podia amamentar, passei a usar colar de mamona no pescoço para secar o leite. Toda vez que pensava nela, o leite descia”, lembra a mãe, emocionada.

Quando entrou, em 1964, para o isolamento, de onde nunca mais saiu, Aparecida era uma das jovens mais belas da colônia. Tinha o cabelo louro, em estilo Chanel, mesmo corte de cabelo usado hoje pela provável filha caçula. Ela logo engravidou de Gervásio Manoel da Silveira, com quem se casou. Em 1965, nasceu Wilson; depois veio Reinaldo, em 1966; seguido de Vânia, em 1968, e, por fim, J., em 1967. “Quando eu me internei, Renata ficou um tempo na roça com minha mãe, mas ela não tinha condições financeiras de criá-la e mandou entregar a criança para mim na colônia. Minha filha não passou nem na cancela. De lá, foi levada direto para o porão da administração”, diz. Até hoje, apesar de não existir mais colônia, nem isolamento, está mantida a cancela com porteiro na Comunidade São Francisco de Assis.

A mais velha, Renata, é filha do primeiro noivo de Aparecida, que ficou do lado de fora da colônia. Segundo a certidão de nascimento original, que pode ter sido modificada depois da adoção, Renata veio ao mundo em 16 de outubro de 1962. Hoje, portanto, estaria com 50 anos. Meio século de dolorosa separação. Há indícios de que ela teria sido adotada por um casal de italianos. “Quando fui vê-la, ela estava com 2 anos. Usava um vestidinho azul e, quando me viu, começou a chamar ‘nanãe’, ‘nanãe’, porque não sabia falar direito”, conta, escondendo a cabeça entre as mãos, que não apresentam sequelas da hanseníase.

Doença tem cura desde 1940

Mais antiga doença da humanidade, a hanseníase é caracterizada pela presença de feridas no corpo do enfermo, que podem provocar deformidades físicas na fase aguda. É transmitida pela respiração, através do contato íntimo e prolongado com o portador do bacilo de Hansen. A doença já tem cura desde 1940. No Brasil, o tratamento com poliquimioterapia (PQT) é simples e oferecido gratuitamente nos postos de saúde, segundo o Ministério da Saúde. A primeira dose de medicamento mata 90% dos bacilos e a doença já deixa de ser transmitida. O tratamento não pode ser interrompido e dura em média seis meses.

Entrevista

"Peço a Deus que ela seja minha mãe"

J. - auxiliar de enfermagem que pode ser filha de Maria Aparecida Silva

Dependendo do resultado do teste de DNA, a auxiliar de enfermagem J. poderá descobrir que seu nome no registro de nascimento não começa com outra letra do alfabeto, que seu sotaque paulista não é de origem, que tem outra mãe e que sua filha terá mais uma avó e quatro tios. Até a data do seu aniversário pode estar errada, pois era costume trocar os dias para apagar qualquer vestígio de que a criança tivesse pertencido a uma colônia de hansenianos. Ela disse ao EM torcer para que o exame dê positivo. “Se der negativo, vão sair dois lados tristes desta história”, diz.

Você sempre soube que era adotada?

Sempre ouvi dizer que era adotada. Meus irmãos são moreninhos, descendentes de índio, e me chamam de galega. Quando tinha sete anos perguntei para a minha mãe e ela disse que havia me achado em uma caixa de sapatos, mas depois desmentiu. Não tenho fotos da infância e no meu registro eu nasci no mesmo ano que um dos irmãos. Perguntei para a minha mãe e ela alegou que havia sido erro do cartório. Hoje já nem sei mais meu nome correto nem a idade que eu tenho.

Você sente que o teste de DNA vai dar positivo?

Pode ser que sim, pode ser que não. Mas se der negativo, vão sair dois lados tristes desta história. No fundo, a gente sempre quer saber de onde veio. Se meus pais adotivos não contaram é porque não conseguiram. Devem ter ficado com medo de que eu abandonasse tudo. Tenho uma colega que ficou revoltada ao descobrir a adoção.

Existe esse risco para você?

Imagine! Para mim não tem divisão, vai ser uma soma. Vou passar a ter duas mães, um monte de irmãos, minha filha vai ter várias avós… Do fundo do meu coração, estou pedindo a Deus que ela seja a minha mãe. Preciso acabar com essa dúvida.

Reinaldo foi o único filho não adotado(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Reinaldo foi o único filho não adotado (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


Histórias de separações

O biotipo de Reinaldo aparentemente não interessava nas adoções irregulares que ocorriam aos montes nas colônias da época, criadas a partir da década de 1920 com o objetivo de isolar doentes de hanseníase para tratamento compulsório. Ao dar entrada no isolamento, levados muitas vezes à força, mães e pais eram obrigados a abandonar os filhos já na cancela de entrada dos hospitais-colônia. Calcula-se que entre 25 mil e 40 mil bebês e crianças foram separados de seus pais, como forma de evitar o contágio. Cresceram internados em 101 creches (preventórios) e orfanatos (educandários) no Brasil.

Nem todos os filhos separados de seus pais cresceram em internatos. Muitos morreram no caminho ou foram dados como mortos, quando eram encaminhados para adoção a famílias de posses e sobrenomes importantes no Brasil e no exterior. “Fato é que existia preconceito. Só ocorriam falecimentos de crianças brancas no sistema”, ironiza Reinaldo, de 48 anos. Casado e com uma filha, ele continua morando perto da mãe e complementa a renda da enfermagem trabalhando como taxista.

Segundo ele, J. se parece muito com Vânia, a irmã do meio. De cabelos louros e corte Chanel, Vânia havia sido dada em adoção a um casal de médicos de Carlos Chagas. Recentemente, foi localizada com a ajuda de um amigo da família, o mesmo que tenta agora encontrar J. A diferença é que a entrega de Vânia para adoção, na época, teria ocorrido com o consentimento do pai. Gervásio já morreu. Vânia tem dificuldades em aceitar a nova realidade. E Aparecida tem medo de voltar a sofrer. “Tenho medo de eles me rejeitarem”, desabafa.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)