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Estado de Minas INFRATORES LIVRES, VÍTIMAS CONDENADAS

Aumenta a impunidade para crimes de trânsito em Minas Gerais

Índice de julgamento de processos relativos a crimes de trânsito não chegou a 10% em 2011. Apesar de pífio, desempenho que revolta cidadãos foi 10 vezes superior ao de 2010


postado em 22/04/2012 06:58

(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

A saúde era perfeita, mas não suportou tantas noites sem dormir e a ansiedade da espera por justiça. A pressão sanguínea disparou. Os pesadelos trouxeram um ranger de dentes tão forte que provoca dores na mandíbula durante o dia. Por isso, os remédios para pressão acompanham nos últimos três anos a doméstica Andreia Aparecida Fernandes da Silva, de 45 anos, em suas idas ao Fórum Lafayette, em Belo Horizonte, onde segue o arrastar do processo criminal contra o médico acusado de atropelar e matar a mãe dela, embriagado, em setembro de 2009. Como Andreia, outras vítimas de crimes de trânsito amargam anos de espera, reflexo da morosidade do Judiciário, que deixa livre quem abusa ao volante. De acordo com levantamento do Tribunal de Justiça de Minas, dos 50.575 processos sobre crimes de trânsito ativos no ano passado, apenas 4.792 (9,5%) foram julgados.

“Arrepio até hoje quando lembro o que passei. Sinto revolta pela impunidade e o descaso”, diz Andreia Silva. A morte de sua mãe foi considerada pelo TJMG homicídio culposo – quando o autor não tem intenção de matar –, delito com pena de prestação de serviços. O Ministério Público recorre ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para qualificá-lo como homicídio com dolo eventual: não há intenção, mas aceita-se o risco ao beber e dirigir. Nesse caso, a pena é de seis a 20 anos de detenção.

Além dos debates sobre as penas, o índice de julgamento dos processos é baixo, segundo especialistas. Mas a apreciação de 4.792 ações representa desempenho 10 vezes superior ao do ano anterior, quando apenas 459 processos tiveram decisão. Mesmo com a melhora, só para dar conta dos 11.348 casos encaminhados no ano passado, seria preciso que o esforço fosse ampliado em 25 vezes.

Para enfrentar todos os processos de crimes de trânsito em tramitação seria necessário que o desempenho dos juízes se multiplicasse 110 vezes. “É uma irresponsabilidade e uma omissão do Legislativo e do Executivo, que não dotam o Judiciário de recursos para julgar mais. E há descaso do Judiciário com os crimes de trânsito, o que traz descrédito e impunidade”, avalia o advogado Carlos Cateb, especialista em crimes de trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG).

Uma chave na mão e um peso na cabeça

O rosto do adolescente ainda é infantil, tímido. As botas sujas do pó branco de cal do trabalho novo carregando caminhões revelam uma vida que parece ter mudado depois que ele causou um desastre em que morreram duas pessoas e três ficaram gravemente feridas. Contudo, na última terça-feira, na porta de sua casa em um município da Grande BH, o adolescente D., de 17 anos, acusado de se envolver em um acidente em outubro de 2011, ao conduzir, embriagado, uma van em que estavam mais sete pessoas, apareceu exibindo uma chave de automóvel, na garagem de sua casa.

(foto: Juares Rodrigues/EM DA Press)
(foto: Juares Rodrigues/EM DA Press)
Tentando esconder a chave em um papel, ele garantiu não continuar dirigindo inabilitado. O fato de estar livre, com acesso a outros automóveis, como os que estavam na garagem da casa, e a lentidão do inquérito do acidente, ainda emperrado na polícia seis meses depois do episódio, só ampliam a sensação de impunidade e a angústia dos parentes dos mortos e feridos.

Como não consegue que a polícia e a Justiça deem um desfecho para a morte da filha de 18 anos, a empresária Daniela Correia Santos, de 36 anos, tentou ficar frente a frente com o jovem, mas não conseguiu. Ela é mãe de Bruna Danielle Santos, de 18 anos, uma das duas pessoas mortas na batida da van Ducatto com sete passageiros contra uma árvore do canteiro central da MG-424, em 9 de outubro de 2011, em Vespasiano, na Grande BH. De acordo com a polícia, o veículo era conduzido por D., que estaria embriagado, retornando com os passageiros de uma festa. “Tentei olhar nos olhos dele e da mãe dele e saber se pelo menos me pediriam perdão, porque nunca me procuraram”, afirma.

O acidente completou seis meses, mas o caso ainda está na fase de inquérito, período em que a polícia junta elementos para embasar a denúncia do Ministério Público à Justiça. Segundo informações da Delegacia de Vespasiano, onde o caso é apurado, o inquérito chegou a ser despachado para um promotor, mas foi devolvido para que mais testemunhas sejam ouvidas. O laudo técnico com a mecânica do acidente, que servirá para informar a velocidade do veículo e como o desastre ocorreu, tampouco está pronto, já que foram necessárias correções. No inquérito, a Polícia Civil indica crimes de homicídio doloso e lesão corporal cometidos pelo dono da van e o motorista que a usava e que a teria emprestado ao adolescente.

De acordo com a investigação e os relatos das testemunhas – entre elas alguns dos acidentados –, o adolescente estava dirigindo a van e teria se virado para trás e beijado a namorada. Quando voltou-se para frente, perdeu o controle do veículo, e, antes de bater contra uma árvore, teria conseguido saltar para se salvar. A comerciante Daniela Correia conta que só foi procurada uma vez pela polícia. “Sinto um descaso enorme por parte das autoridades. Parece que estamos desamparados. Minha filha morreu e isso não importa a ninguém”, desabafa.

Toda vez que observa o filho de 19 anos em estado vegetativo sobre a cama, no quarto onde o via alegre, a dona de casa Karina Aparecida Castanheira, de 36 anos, sente arrepios e um aperto no estômago. Fábio Henrique Castanheira era um dos passageiros da van. Sofreu traumatismo craniano e teve perda encefálica. Aparentemente não responde a estímulos, mas a família não desiste de tentar que ele volte a se comunicar, pagando duas fisioterapeutas e uma nutricionista para tratar do caçula de dois filhos. “Só quero o bem dele. Só penso nisso. Perdoo o motorista da van, que era amigo dele e veio visitá-lo. Se ele vai pagar alguma coisa será para Deus e não para mim. Mas incomoda ver que a Justiça que as outras famílias querem não sai”, considera Karina.

O advogado do adolescente, André Gustavo Braga Santos, sabe que o cliente não será julgado por homicídio e a lesão corporal, por ter menos de 18 anos. Ao analisar a investigação, ele considera que os depoimentos foram muito vagos e que nenhuma testemunha identificou seu cliente como sendo o motorista da van. Quanto à chave de automóvel na mão do menor, o defensor diz não ser indício de que o cliente continue dirigindo inabilitado, ainda que mostre que ele tem acesso fácil aos dois veículos da casa. “Não há nenhuma relação. Ele poderia muito bem estar indo buscar algo dentro do carro. No caso da van, há quem diga que outra pessoa é que estava conduzindo o veículo, mas não posso dizer ainda quem é esse suspeito, para não atrapalhar as investigações”, disse.

CONDENAÇÕES

Balança desequilibrada

Condenação por crimes de trânsito nas comarcas de Minas

» Analisando os índices de julgamento de processos em Minas em 2010, quando apenas 459 processos tiveram decisão, a juíza Maria Isabel Fleck, da 1ª Vara Criminal do Fórum Lafayette, apostou que em 2011 haveria uma melhora, devido à instalação de mais juizados especiais para desafogar a Justiça comum. A despeito de a melhora não ser suficiente para impedir que os processos se acumulem, ela afirma que 90% dos casos de crimes de trânsito chegam a condenação, ainda que isso demore.

295
é o total de comarcas mineiras

17 (5,8%)
não julgaram e condenaram nenhum infrator


164 (55,6%)

julgaram menos de 10% dos processos

7 (2,4%)

conseguiram julgar mais de 50% dos processos

» Pirapora (Norte de Minas) é a comarca com menor resolução de processos. Nenhum dos 208 abertos no ano passado teve desfecho


» Dores do Indaiá (Centro-Oeste) é a campeã em resolução de processos da Lei Seca, com 86% de julgamentos. Dos 43 abertos, 37 foram julgados


BH tem índices mais baixo que o Estadual

Se o índice de julgamento de processos é baixo no estado, onde apenas 9,5% das 50.575 ações sobre crimes de trânsito ativas no ano passado tiveram decisão, em Belo Horizonte essa proporção é ainda menor. Na capital, dos 5.577 procedimentos que tramitaram em 2011, apenas 324 (5,8%) tiveram conclusão. Na fila estão milhares de casos como o da doméstica Andreia Aparecida Fernandes da Silva. A mãe dela, a cozinheira Luzia Rodrigues Fernandes, de 65 anos, foi atropelada pelo médico Fellipe Ferreira Valle, em setembro de 2011, aos 31 anos, enquanto ele tentava fugir da polícia.

Policiais informaram que o condutor apresentava sintomas de embriaguez ao ser abordado por uma equipe de trânsito da PM, na Praça Raul Soares, Região Centro-Sul. O médico saía de uma boate por volta das 7h30 e havia deixado seu carro, um Polo, estacionado em local proibido. Ele fingiu que ia pegar os documentos no carro e fugiu em alta velocidade, atropelando um policial.

Houve perseguição por seis quilômetros, nos quais Fellipe é acusado de avançar quatro sinais vermelhos, andar nove quarteirões na contramão e subir no passeio, onde atropelou e matou a cozinheira, que voltava da padaria. Também atingiu um ônibus, um carro da BHTrans e, ao passar por um cruzamento do Bairro Prado, bateu num Siena ocupado pelo tenente-coronel Wellington Limeira, sua mulher e o filho, então com 17 anos, que ficaram feridos.

De acordo com o advogado de Fellipe Ferreira Valle, José Arthur Kalil, o médico é um “profissional muito sério e atarefado”, que ainda mora em Belo Horizonte e prefere aguardar para saber se o seu processo será julgado como homicídio culposo, nas varas criminais, ou como doloso, no tribunal do júri. Ele não quis falar com a reportagem e nomeou o advogado como porta-voz.


ENTREVISTA

D., 17 anos - Adolescente acusado de ter conduzido embriagado van com sete passageiros em acidente com dois mortos

“Sinto como se não valesse nada”
Com a chave de um automóvel na mão, aparentemente tentando escondê-la num papel enquanto entrava na garagem de casa, o jovem suspeito de provocar a morte de duas pessoas e de deixar três feridos graves no acidente com uma van na MG-424, em Vespasiano, em outubro de 2009, contou com exclusividade ao Estado de Minas o que disse lembrar do desastre. Afirmou não recordar o momento exato da batida, se deu mesmo um beijo na namorada, que perdeu um braço, ou de ter saltado para se salvar, mas relatou ter perdido o pai aos 13 anos e contou como sua vida mudou.


Você se lembra de como foi o acidente e por que ele aconteceu?
Estávamos voltando de uma festa num sítio. Os passageiros que peguei estavam na festa e fui deixando uns em Venda Nova e depois o resto ia descer aqui na cidade. Não me lembro da batida. Apagou da minha memória. A última coisa que lembro foi de ter deixado as últimas pessoas perto do Hospital Risoleta Neves e depois quando fui tratado no hospital.

Quem lhe deu as chaves do carro e por que você resolveu dirigir sem carteira e bebendo?
Prefiro não falar sobre isso. Não quero atrapalhar o que o advogado está fazendo.

E quando você pensa sobre esse acidente grave, o que sente?
Quando lembro, sinto uma sensação ruim. A pior da minha vida. Sinto como se não valesse nada quando me procuram para saber daquilo. É muita tristeza. Perdi amigos e outros ficaram machucados.

Como foi para você depois do acidente, com as outras pessoas?
Tive de ficar uns tempos fora de casa por causa disso, do que as pessoas poderiam fazer comigo. Na época, estava fazendo um curso de mecânica industrial e parei. Muita gente estava em cima, me perguntando. Mas agora voltei ao curso e vou me formar na metade do ano que vem. Trabalho de dia para meu tio carregando um caminhão e depois estudo.

O que você diria aos familiares de quem morreu ou ficou ferido?
Minha família já procurou os outros que estavam no acidente. Eu mesmo não fui, porque a gente não sabe como iam reagir comigo. Fui ver o Binho (Fábio Castanheiras, rapaz em estado vegetativo), que está de cama na casa dele. Não sei o que falar para eles, não. Prefiro nem procurar ninguém. Sei como é isso para a família, porque perdi meu pai aos 13 anos. Quem sabe assim eles conseguem esquecer isso tudo?


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