"Na trama, quando Martha assume que foi uma perseguidora de Donny Dunn, ainda sim, ela chora e o chama de bebê rena"

crédito: Netflix/Divulgação

Será que a gordofobia me transformou numa stalker? Estou às voltas com essa pergunta há quase 24 horas, desde que dei o play na série "Baby Rena", na Netflix. Maratonei os sete episódios, que, literalmente, me tiraram o sono.

 

Na sinopse, um comediante escocês Richard Gadd se envolve com uma mulher vulnerável que entra no bar em que ele trabalha e, o que era um simples chá, se transforma numa obsessão que se desenrola ao longo da história e impacta profundamente a existência de ambos, o obrigando a enfrentar um trauma sombrio de sua própria vida. É uma história real.

 

Mas não foi só com ele. Eu me vi obrigada a me reconhecer em muitos momentos - enviando mensagens, e-mails, virando madrugadas sem me cuidar, stalkeando digital e fisicamente uma pessoa, projetando meus traumas num relacionamento que sequer existia e me comportando como uma pessoa completamente descompensada.

 

Doeu assistir à série e me reconhecer na Martha Scott (vivida brilhantemente por Jessica Gunning). Por que eu fiz isso? O que me levou a um comportamento doentio assim? Quais decisões eu tomei na minha vida que me transformaram numa stalker?

 

Pensei isso tudo enquanto tentei apagar da memória minha cena escondida, dentro do carro da minha mãe, numa rua escura, numa madrugada, tentando entender onde o objeto do meu desejo estava indo e com quem, após me dar todos os sinais de que ficaríamos juntos naquele dia e me rejeitar, como quem dispensa algo que colocou no prato, mas não consegue comer? Onde eu teria errado? Com quem essa pessoa sairia? Quem eu havia me tornado?

 

Quero me atirar numa fogueira acesa ao lembrar que nesta madrugada, recusei uma possibilidade de um emprego melhor ao montar essa vigília totalmente ineficaz do lado de fora de um hotel. No outro dia eu estava exausta. Mas vejo as fotos e penso: eu estava linda. Por que ele não me quis? E essa pergunta talvez tenha sido a raiz da minha obsessão, combinada aos sinais confusos.

 

Quem eu sou na trama de Baby Rena?

Eu transformei uma pessoa que me tratou bem num potencial amante? Eu inventei uma história? Eu fui correspondida? O que ele fez comigo? Eu fui uma vítima? Ele foi uma vítima? Existem culpados?

 

As perguntas sem respostas me rondam e me fazem desacreditar da minha sanidade diante da série, em que o autor é também o ator protagonista e trafega pelo roteiro da própria vida no melhor estilo da Micaela Coel, em "I May Destroy You" - que também me destruiu e me obrigou a assistir a trama ao menos umas quatro vezes, mas isso é assunto pra outra coluna - provocando o mais absoluto desconforto no espectador.

 

A série é bem feita, intrigante e desconfortável o tempo todo. Martha Scott é representada uma mulher gorda e o primeiro sentimento que Donny Dunn (Richard Gadd) manifesta por ela é pena. Fico pensando se, quando eu entro num bar ou pub, sozinha como ela, é com pena que os atendentes me olham?!

 

Quando Donny Dunn se vê ligado à Martha, percebe que gosta do que ela oferece a ele: carisma, gargalhadas escandalosas, elogios desenfreados e carinhosos e um olhar sobre si mesmo que ninguém nunca foi capaz de dar. E tudo isso sem exigir nada em troca, exceto uma história fantasiosa em que eles se amam e ele corresponde ao sentimento dela.

 

Martha passa as noites sozinhas em seu apartamento sujo e lotado de tralhas e louças na pia sonhando com o momento em que Donny Dunn vai reconhecer o quão incrível ela é e eles terão um momento inesquecível de sexo e romance. Isso não acontece. E a forma como ele a enxerga me destroça, porque consigo me enxergar em muito dessa ilusão e do sentimento que cultivei por muitos anos. Sentimento esse que me transformou numa stalker (talvez um pouco menos perigosa, devo ressaltar): rejeição.

 

"Na série, o desejo de Donny Dunn é confuso. A gente quase sente pena dele e acusa Martha de louca"

"Na série, o desejo de Donny Dunn é confuso. A gente quase sente pena dele e acusa Martha de louca"

Netflix/Divulgação

A rejeição é uma máquina de fazer vilão

O personagem da trama, assim como o da minha vida, não diz nem que sim, nem que não. Leva a situação em banho maria, se beneficiando do afeto recebido e se alimentando dele de forma avassaladora. Assim como Martha, eu me sentia exaurida por ofertar tanto amor e receber migalhas de volta. Porém, eram essas migalhas que me faziam permanecer.

 

E, tal qual eu, na minha vida real, demorei a perceber quão abusiva poderia ser uma relação que só acontecia quando a outra parte queria, mas existia uma relação de trabalho que me exauria, sem que eu recebesse por ela, o nome é abuso e não qualquer outra coisa. E, neste caso, Martha não é a pessoa que aparece, mas Darrien (Tom Goodman-Hill), um famoso e bem sucedido roteirista que se revela um abusador estuprador de Donny Dunn.

 

Após conhecê-lo uma festa apenas para VIPs em Edimburgo, Donny Dunn recebe o convite para se drogar e escrever um roteiro e, em longas sessões de GBH, ácido, heroína e crack, se vê apagado no tapete de Darrien, sendo abusado sexualmente, mas retornando sempre. O vício dele está na promessa: ser um roteirista, ser apresentado aos figurões do roteiro em Londres e escrever em conjunto.

 

Paralelo a isso, Darrien se comunica de maneira grosseira, pedindo melhorias em roteiros e explorando a mão de obra de Donny, sem remunerá-lo por isso. Ele demora muito tempo até perceber que aquela era uma relação abusiva. Ainda sim, foi menos do que eu, que levei uma boa soma de anos.

 

Me odeio por me perceber oscilando entre essa figura que foi abusada - e que talvez tenha me transformado numa stalker - e vítima de um homem que explorou minha vida sexual, minha criatividade e meu trabalho até não sobrar muita coisa e iniciar um burnout que dura anos de tratamento, medicações e tentativa de voltar, ao menos, ter um pouco de libido na minha própria vida.

 

"Fiquei exausta assistindo a série e pensando no que eu pude me transformar diante da rejeição. Diante de uma pessoa que me escondia"

 

Fiquei exausta assistindo a série e pensando no que eu pude me transformar diante da rejeição. Diante de uma pessoa que me escondia. Onde estava meu amor próprio e quão sintomática eu fui para me prestar a passar horas de uma madrugada escondida numa rua escura, num carro que não era meu, exposta aos mais diferentes tipos de perigo, me violentando, recusando uma entrevista de emprego que poderia me fazer galgar novos passos profissionais, por migalhas de um afeto. Para dizer a um homem o quão grandioso ele e os trabalhos e projetos dele eram.

 

O quanto do meu registro simbólico eu empenhei em longas reuniões, na expectativa de que a noite terminasse em romance, dando ideias para novas ações, lançamentos, etc, e terminei sozinha, à espreita, pensando em que direção ele teria tomado e qual corpo poderia ser mais atraente, aprazível e interessante do que o meu, a ponto de eu entregar meu melhor e receber o vazio de volta.

 

A rejeição nos coloca num lugar absolutamente sombrio. Doloroso. É um beco sem saída. E lateja na minha vida a mensagem da série: ser um corpo gordo é ser, automaticamente, rejeitada. Martha Scott é inteligente, divertida, sagaz e carismática. Mas não é o suficiente. Ela é gorda. E, como a gordofobia é uma opressão sofisticada, isso fica implícito. Em nenhum momento, o protagonista precisa nos dizer que ele não a deseja e que este é o motivo.

 

Ele descreve que pensa nela e avalia: quantos encontros dela foram frustrados? Quantos amores não correspondidos ela viveu? Mas, a admiração incondicional dela sobre ele é mais forte do que a possível pena que ele sente. Ele segue mantendo-a no radar, dando uma manutenção na relação. Não quer - e nem vai - transar com ela, mas ama tê-la ali, no balcão, por horas, admirando-o, elogiando-o, aplaudindo-o em seus sofríveis shows de humor.

 

Rejeitá-la é parte de quem ele deseja ser. Sentir vergonha da risada dela na cafeteria também. Não querer ser visto com ela ou rir, ao lado dos amigos, de quem ela é, não parecem ser um problema. Inclusive, se gabar da perseguição - ou stalking - dela é motivo de orgulho, em algum nível. O personagem sente o mais absoluto gozo ao estar na presença de Martha, mas repudia a ideia de amá-la.

 

Na série, o protagonista se queixa dos e-mails recebidos por Martha. Na vida real, eles somam algo em torno de 41 mil durante três anos. Na trama, ele se desespera quando esses e-mails param de chegar, afinal, é confortável desprezar Martha, mas contar com a obsessão dela, mantendo-o aquecido e amado de forma confortável, afinal, o quanto um e-mail pode perturbar, se há a opção de simplesmente bloquear o endereço eletrônico ou trocar o próprio?

 

Talvez esteja aí a dificuldade da polícia entender as queixas prestadas por Donny Dunn, ou Richard Gadd.

Bebê Rena é a nova série da Netflix baseada em história real

Bebê Rena é a nova série da Netflix baseada em história real

Netflix/Divulgação

Em algum ponto da trama, Donny Dunn se apaixona por uma mulher trans, o que soa absolutamente ofensivo para Martha, haja vista que todos os corpos - exceto o dela - podem e são desejados pelo seu grande amor.

 

O desejo só acontece quando ele se vê perdido na relação com uma mulher trans - que é deslumbrante, desejável, inteira, interessantíssima. É só pensando em Martha e desejando seu corpo - gordo, desajeitado, sujo, suado - que ele consegue ter uma ereção e gozar. Ele atribui isso ao abuso sofrido quando frequentava Darrien, no entanto, é pensando em Martha, após denunciá-la e ela sumir temporariamente, que ele goza. E essa se torna a única forma.

 

A denúncia é a punição. Eu ja falei algumas vezes aqui sobre desejo punitivo, que é quando alguém deseja um corpo gordo e, automaticamente, para reprimir este desejo, agride este corpo, seja com um sexo ligado ao sadomasoquismo, seja numa relação tóxica e abusiva. Na série, o desejo de Donny Dunn é confuso. A gente quase sente pena dele e acusa Martha de louca. Mas o quão conveniente era, pra ele, contar com o desejo insaciável dela?

 

Arriscaria a dizer que, no jogo que se formou nessa relação, um precisava do outro, no entanto, apenas Martha estaria disposta a doar. Assim como na relação entre Donny e Darrien, somente Donny estava disposto a doar. Percebem a crueldade e como, de um lugar de abuso, podemos passar para um lugar opressivo?

 

O autor da série, contudo, afirma em entrevistas que a história é moralmente ambígua. Tendo a concordar, muito embora me enxergue demasiado na Martha e no seu desejo desesperado por afeto e na sua crença delirante que Donny poderia prover isso, até porque, ele emitia sinais e não dizia, explicitamente, que não. Ele simplesmente não conseguia imaginar sua vida sem Martha nela. Martha lhe oferecia tudo que ele gostaria que Darrien oferecesse, sem ser, num primeiro momento, sexualmente invasiva. E quando ela o é, ele não só não consegue repelir, como segue vendo-a.

 

A complexa dinâmica entre eles me leva, de novo, à gordofobia. O nojo que Donny sente de Martha é implícito. Ele não diz isso com todas as letras. Mas descreve cheiros, formas, jeitos com total repulsa. E, esse mesmo nojo talvez seja o que o excite. Freud explica? Sim, explica sim. Mas, não quero falar de Freud e sim dessa opressão estrutural que nos transforma de mulheres desejantes, empoderadas, com profissões e contatos em seres totalmente obcecados, capazes de atrocidades contra si mesmas.

 

Martha passava dias e noites sentada à frente da casa de Donny, provocando-o ou esperando até 16 horas por alguma migalha de interação. E você pode pensar: quem se prestaria a isso? Eu! Eu me prestava a isso. Passava dias, noites e muitíssimo do meu tempo na juventude esperando uma ligação, uma mensagem, uma visita, uma migalha. Esperava encontrar as palavras de afeto que ele me dirigia quando nos conhecemos e ele dizia: vou te roubar pra mim!

 

De fato, roubou. Não da forma como imaginei, mas cheguei no limite de perder inúmeras relações, oportunidades, empregos. De ficar diante do telefone, madrugadas inteiras, à expectativa do toque, que às vezes vinha, outras não. E, assim como em Baby Rena, Donny Dunn se sentia mal com qualquer afastamento de Martha e a buscava de alguma forma, na minha vida, a pessoa por quem fui obcecada fazia o mesmo.

 

Na trama, quando Martha assume que foi uma perseguidora de Donny Dunn, ainda sim, ela chora e o chama de bebê rena. Eu, quando procurei a delegacia da mulher para pedir uma medida protetiva por me sentir invadida, saí chorando, com pena. Eu vivia uma relação abusiva, não percebi por muitos anos e, quando me dei conta, tive pena do meu abusador. E confesso que essa pena ainda aparece. Embora não seja um sentimento digno, como nos lembra Gadd no início da série.

 

Não sei se em algum momento ele teve pena de mim. Ou se realmente teve medo da minha perseguição velada, dos meus e-mails ou mensagens. Sei que a gordofobia e a rejeição ao meu corpo, num comparativo de quem eu era e o que oferecia, me marcaram para sempre. Eu nunca mais voltei a ser solar como eu era quando o conheci. Nunca mais consegui me entregar a projetos e trabalhos como eu conseguia me entregar aos dele. Nunca mais saí de casa sem medo. Nunca mais tive tanta autoconfiança como a que eu tinha quando tentava fazer a carreira dele decolar. Mas também nunca mais persegui ninguém. Sequer fiquei obcecada - tá um pouco de hiperfoco às vezes rola, mas obsessão, nunca mais. Nunca mais quis permanecer em relações que me percebo minimamente indesejável ou que eu sinto que a gordofobia e o nojo de mim e do meu corpo imenso sejam velados. Nunca mais quis ser vista como a Martha. E você que me leu até aqui, jamais saberia disso, se eu não tivesse querido falar.

 

Mas, talvez tal qual Donny Dunn na cena em que percebe que não servia para comédia e resolve abrir o coração, eu tenha me dado conta de que não existem vilões e vítimas em histórias assim. Existe alguém que doou seu melhor, sofreu uma rejeição e abriu as portas para o abuso.

 

No caso da série, eles chegam às vias de fato. Eu, por anos, lamentei nunca ter chegado. Se eu tivesse sido agredida fisicamente, conseguiria que as pessoas entendessem o quão abusiva era aquela relação. Como eu era explorada, sexual e mentalmente. Eu me sentia muito mal na maior parte do tempo. Eu tive crises de ansiedade, depressão e não me reconhecia, seja num carro de madrugada tentando descobrir onde ele iria, seja nas horas que eu passava esperando uma mensagem numa app de celular, seja nos feriados que me dediquei à construir uma carreira para ele, seja no medo que eu senti por anos, seja no quão desprezível eu me sentia por ser quem eu era, enquanto eu tentava ser perfeita, inteira e imprescindível pra ele.

 

Me tornei uma versão minha que odiei conhecer. Um caos completo. E demorei muitos anos para me reconstruir, para parar de achar que eu tinha alguma questão mental. O nome do que sofri foi abuso. Foi gordofobia. E essas opressões me acompanham ao longo da vida. Me fizeram acreditar, por anos, que eu deveria ser infinitamente melhor do que quem me circundava, que eu deveria trabalhar de graça, que eu deveria oferecer tudo que eu tinha, que nada do que eu fizesse compensaria meu corpo imenso e gordo.

 

Paralelo a isso, eu tinha a esperança e a expectativa de que meu corpo se tornasse irrelevante. Que eu fosse vista para além dele. E, assim, amada por ser quem eu sou. Não aconteceu. Assim como não aconteceu com a Martha na série.

 

Nas críticas sobre a série, li que ela tem camadas e não desumaniza nenhum dos lados. Ora, de que lados estamos falando? Martha já entra em cena desumanizada. Um corpo indesejável. Digno de pena. Indigno de afeto, de tesão, de amor. O que não é a gordofobia, senão isso?

 

É óbvio que ninguém é obrigado a ficar com ninguém. Nem a sentir desejo por quem não se sente. Nem a se relacionar com corpos pelos quais não há tesão. No entanto, o que é o desejo senão uma construção social? O que é o desejo de Donny senão um desejo de ser amado? Tanto que, quando Martha abranda as investidas persecutórias, ele passa a desejá-la, enfim, sexualmente, embora queira puní-la também por isso?!

 

E se, em algum momento, despido da gordofobia e da aversão aos corpos gordos, Donny tivesse se permitido amar Martha? E se um arranjo possível desse certo entre eles? E se, ao invés de amar todos os demais corpos que cruzaram o caminho e a cama dele, ele tivesse se aberto ao de Martha minimamente?

 

E se ela tivesse sido amada por alguém como amou a rena de pelúcia que teve na infância?

 

Gadd explica, em uma entrevista, que não queria hipersexualizar o stalking na TV, mas humanizar. Tenho minhas dúvidas se ele conseguiu. É natural que sintamos empatia por Martha em alguns momentos. E por ele em outros. Mas, no meu caso, senti gatilhos e tristeza. Pensei no que poderia ser evitado se, ao invés de humanizar o stalking, humanizarmos as pessoas e corpos gordos?

 

Sobre a série

Me choca que uma mulher gorda desejando ser amada seja mais perturbador do que um homem branco, rico, poderoso e estuprador. Darrien seria o vilão, mas, não tem o destaque que poderia ter e, ao final, é perdoado.