Isso não é uma sessão de análise. O nome do podcast da psicanalista e escritora Vera Iaconelli alerta seus convidados que o microfone não será um divã. O que, de certa forma, acaba acontecendo.
O programa, que estreou em agosto, inicia com uma pergunta que é o fio condutor da entrevista: "Qual é a sua referência de família?". E, muitas vezes, a resposta toma grande parte do tempo do programa.
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Mas é justamente aí que mora também a beleza.
"Olha que exercício interessante para você sair do seu clubinho, para você sair só do teu grupo de afinidades e exercitar um pouco essa tolerância à diferença", diz ela.
Para isso, no entanto, é preciso baixar as expectativas, especialmente no fim do ano, com as festas e encontros familiares. No Natal, ou seja lá qual for o nome da celebração, é preciso deixar de lado as idealizações e "a fantasia de que é um momento onde tudo dá certo".
"A família continua sendo ela, só que em um momento específico de comemoração."
E justamente porque a família de sangue não significa necessariamente afinidades mútuas, e, muitas vezes, o desafio é maior do que o prazer de se estar junto, é que tantos outros arranjos familiares estão surgindo.
"A gente vai vendo diferentes formas de conjugalidade nas quais a premissa é o cuidado e a responsabilização ao longo da vida."
Nesta entrevista, Iaconelli fala sobre esses arranjos familiares, mas também sobre a sua própria família, a epidemia de feminicídios e o ódio às mulheres, e sua campanha de encarar o uso das redes sociais como um trabalho.
"É muito importante a gente escancarar isso: rede social é trabalho, a gente dá expediente. Fora disso, ela é absolutamente adoecedora."
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
- 'Se você acha que seu filho tem um problema, olhe para o seu relacionamento com ele. É lá que você encontrará a resposta'
- 'Quando fiz 10 anos de casada, falei para meu marido: o que você acha da gente abrir o nosso casamento?'
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BBC News Brasil – Vou começar fazendo uma pergunta de volta: o que é a sua referência de família?
Vera Iaconelli - Tem o público e o privado. No privado, eu tenho uma família que tem um formato xis, mas, cada vez mais, eu tenho me interessado e tenho escutado a nova geração falar de laços de família cada vez menos consanguíneos e cada vez mais ligados ao cuidado e à responsabilização ao longo do tempo.
Vão entrando nessas famílias não só configurações diferentes, não necessariamente heterossexuais, cisgênero, mas configurações de amigos que vão se tornando esse núcleo de cuidado mútuo, amigos que têm filhos e não são um casal.
A gente vai vendo diferentes formas de conjugalidade nas quais a premissa é o cuidado e a responsabilização ao longo da vida. No âmbito particular, eu resolvi do meu jeito, e acho que não serve de modelo para ninguém, que me é muito confortável. Mas cada vez mais vou vendo essa mudança de perspectiva no âmbito público: as pessoas fazendo outros modelos bem interessantes.
BBC News Brasil – As festas de fim de ano, em que se reúnem as famílias, são, em muitas vezes, momentos de tensão. Por que o Natal gera brigas familiares?
Iaconelli - Acho que não é sempre, mas é 100% [dos casos] (risos). Porque tem algo que se trata justamente de uma data, e eu acho importante essas datas, não é só tradição. É importante que a gente tenha uma data na qual a gente seja obrigado a parar e pensar sobre certas coisas.
E o Natal, embora ele cause muito adoecimento, aumento de suicídios, quadros depressivos, doenças psicossomáticas, essas festas de fim de ano, elas são uma curva de rio na clínica. Muito frequentemente, as pessoas adoecem, porque é a hora de fazer uma certa contabilidade, uma certa fotografia, um diagnóstico de como anda a relação com essa família, na história dessa família, mas também pontualmente.
Às vezes, você tem uma família que funciona super bem o ano inteiro. Mas aí morre um ente querido. E aí o Natal, o Hanukkah, ou o Dia de Ação de Graças, cada grupo vai ter lá suas datas, acaba sendo um lugar onde você vai ter que se haver com essa falta.
Divórcios, mortes de entes queridos, às vezes o nascimento de alguém, podem ser muito impactantes, no bom sentido ou não. Há rupturas. As polarizações políticas cada vez maiores foram rupturas que a gente ainda está se havendo com elas.
É muito importante falar sobre Natal. Não só porque é uma data, mas porque eu acho que é psiquicamente importante, relevante.
E tem outras questões no Natal, para além da família. Tem a questão do impulso ao consumo, que deixa mais clara as diferenças de classe, a pobreza e a riqueza no nosso país, que é gigantesca. Tem uma série de questões.
BBC News Brasil - Quando você diz que no consultório essa época de Natal traz questões psíquicas, doenças, enfim, em ano eleitoral isso é ainda mais latente?
Iaconelli - Nem sempre foi assim. A gente teve uma ruptura de laços a partir da polarização da eleição do [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Porque as pessoas têm escolhas, desejos, fantasias, sonhos, hábitos, costumes, inclinações, mas, na família, você pode contornar. Então, um torce para um time, outro torce para o outro time, tem uma religião, o outro tem outra religião, é mais conservador, o outro é mais liberal.
Você tem essas coisas, e é muito importante que haja isso, porque a família, pela estrutura dela, acaba juntando pessoas muito diferentes. Isso é bom, porque é um espaço de reflexão sobre a diferença.
É um espaço de tolerância. Com a polarização, que foi muito, muito explorada pelas mídias, pelas redes sociais, muito comercializada, diria até, monetizada, o rage bait ["isca de raiva", termo para descrever táticas manipuladoras usadas para estimular o engajamento online], a exploração dos nossos afetos.
A partir daí, algumas coisas se tornaram inconciliáveis, porque as pessoas, na decisão política que elas iam tomar, iam criar animosidades insustentáveis com alguns integrantes da família.
Aí, a gente começa a ter um problema muito sério: famílias que estavam organizadas, bem ou mal, romperam para sempre. Não se falam mais e não falarão mais, porque, enquanto essas posições estiverem acirradas desse jeito, algumas coisas ficaram reveladas e se tornaram inconciliáveis.
BBC News Brasil - E tem alguma dica prática de como sobreviver nesse momento?
Iaconelli - Uma importante é que a gente trabalha muito com a questão da mídia, da propaganda, das imagens... Elas são sempre muito inflacionadas, muito editadas, só os melhores momentos. Começa toda essa história de supervalorizar um certo modelo de família, ou uma família na qual tudo se resolve, que é só conversar. Isso daí assombra muitas pessoas.
Elas têm muita dificuldade de se haver com o que é possível, [por exemplo] "Ah, minha família pode se encontrar, pode almoçar, pode jantar e depois cada um vai para o seu canto, e nós tivemos um momento civilizado no qual a gente manteve os laços". Se você for comparar isso com aquela família do anúncio de venda de peru, talvez você se deprima.
BBC News Brasil – Devemos baixar as expectativas então?
Iaconelli - Baixar as expectativas, tirar as ideias idealizadas, a fantasia de que é um momento onde tudo dá certo. A família continua sendo ela, só que em um momento específico de comemoração.
É a redução de danos, o que dá para fazer, o que é conciliável e o que não é conciliável. Algumas coisas não são para serem toleradas. Se é sempre uma ceia de Natal violenta em nome da família, é pavoroso. Às vezes, é melhor não ir mesmo. Você faz um grande serviço a si mesmo e à família se você denunciar algumas coisas intoleráveis.
Mas são poucas as coisas que são de fato intoleráveis. A gente tem que entrar nesses encontros sabendo por que a gente está indo. Você está indo para marcar a sua posição e provar que você está certo? É melhor nem sair de casa.
A família se estrutura a partir do encontro de duas pessoas que, por interesse ou amor, resolvem viver juntas, e, a partir desse encontro, elas juntam grupos que não necessariamente comungam da ideia de cada um desses dois.
Você tem os parentes de cada um dos lados que vão se tornar parentes comuns, vão criar, eventualmente — não necessariamente, mas eventualmente — uma descendência. Essa descendência também vai pensar com a própria cabeça. Não é um grupo de amigos, ou um clube que resolveu, por afinidade, se juntar. Não. É um grupo que provavelmente se juntou por força de uma circunstância de dois.
Olha que exercício interessante para você sair do seu clubinho para você sair só do teu grupo de afinidades e exercitar um pouco essa tolerância à diferença. Mas desde que a gente entre com a bola um pouco mais baixa e esteja aberto a lidar com o contraditório.
BBC News Brasil – No recém lançado O Brasil no Espelho (Globo Livros), uma das descobertas sobre o perfil do brasileiro é que 96% concordam com a frase "família é a coisa mais importante da vida". Isso é uma característica brasileira, ou essa importância dada à família inerente ao ser humano?
Iaconelli - Eu não sei se é uma característica brasileira só. Mas entendo que é uma característica humana. E acho essa frase super real.
O problema é que ela embute a ideia de que a gente sabe o que a pessoa está falando quando ela fala família.
Porque este núcleo de referência ao longo da vida transgeracional de cuidado e responsabilização, que é testemunho da minha história que marca a minha origem, que marca a minha descendência, eu acho que é fundamental mesmo.
A gente não pode estar só com colegas, só com pessoas com quem você pode estar junto ou não. Você precisa desse núcleo duro no qual você se finca.
BBC News Brasil - Por quê?
Iaconelli – Porque somos seres relacionais que precisamos de intimidade. Você pode encontrar milhões de pessoas o dia inteiro, ser superpopular, cheio de amigos, e não ter intimidade.
A gente precisa ter um lugar onde a gente compartilha coisas do sofrimento, onde a gente confia que as pessoas estão lá para nós. Um lugar de lealdade, para onde você pode retornar, haja o que houver. Esses lugares são fundamentais.
Mas não estão necessariamente ligados aos parentes. Quem você chama de família? O que está por baixo desse termo família? Eu imagino que grande parte seja a família convencional, papai, mamãe, filhinhos. Pode ser, mas acho que não só.
BBC News Brasil - Você tem uma campanha de que estar nas redes sociais é um trabalho. Por quê?
Iaconelli - Eu não estou falando sozinha quando falo que a rede social é trabalho. Nós estamos trabalhando para as big techs [grandes empresas de tecnologia]. O produto delas somos nós. A gente está trabalhando lá e as pessoas acham que não, que elas são sociais no sentido da vida social, e vão se privando da vida social para estar na rede. É muito importante a gente escancarar isso: rede social é trabalho, a gente dá expediente. Fora disso, ela é absolutamente adoecedora.
Hoje as pesquisas mostram os danos terríveis que essas redes têm sobre nós, sobre o psiquismo, então precisamos aprender a usá-las. E a única forma de pressionar as redes é individualmente, a greve das redes.
Isso é no nível individual. Coletivamente, a gente tem feito grupos que pagam para estar em espaços nos quais se entra sem celular. Você entra, deixa seu celular, e o que você faz lá dentro? Lê, faz tricô, conversa, bebe, ouve música. E por que funciona? Você poderia fazer isso em qualquer lugar, sem pagar, nada.
Funciona porque a gente precisa fazer coletivamente. Se todo mundo está sem celular, eu aguento. Mas se só eu estou sem celular, eu tenho a sensação de que eu estou excluído de algo que está acontecendo e só eu não sei.
Tem o individual, tem esse coletivo e tem [a iniciativa] de empresas, instituições, as escolas, quando falam que as crianças não vão entrar com o celular. E depois você tem o Estado botando regra, regulando essas big techs, porque elas nos fazem muito mal.
É que nem parar de fumar. É como qualquer compulsão. Só que a gente já sabe que é o vício mais impregnante que a gente tem, dentre todas as drogas. Inclusive, porque ninguém fica falando para você "vamos cheirar, vamos cheirar cocaína, você já viu a cocaína hoje?". Ninguém faz isso. Mas as redes, seu chefe, seu trabalho, a própria rede, seus amigos, estão sempre se referindo a elas. A gente é estimulado, incentivado a usá-las vinte e quatro por sete.
Não só ela libera uma dopamina lascada, que é a fonte de prazer que a gente busca nas drogas, como o tempo todo seu uso é incentivado, e ela se torna para algumas pessoas absolutamente obrigatória. Como é que você vai ser um jornalista que não está em contato com as redes? Isso não existe.
BBC News Brasil – O mesmo vale para o uso do celular em geral, não?
Iaconelli - Mas aí a gente tem que começar realmente uma nova etiqueta, fazer uma barreira bem clara do horário de parar de usar. É chegar na sua casa e falar "de tal a tal hora eu não vou entrar na rede".
Durante uma refeição, que a pessoa pega o celular, é feio, não pegue o celular, o mundo não vai acabar. Se você está esperando uma ligação muito importante, deixe ele tocar, e você atende só se tocar.
Tem uma geração que eu acho super interessante, que está falando "nós recusamos esse futuro, nós não compramos esse futuro". A gente tem uma ideia de progresso que tem muito a ver com o consumo, que é muito ruim. Tem coisas que a gente tem que recusar. Tem que voltar atrás. Tem que fazer diferente. A gente tem que recusar coisas, dizer não, mesmo para supostos progressos.
BBC News Brasil – Você diz que escrever sobre seu pai em Análise (Companhia das Letras) foi vê-lo como um homem, e não só como seu pai. Você conseguiu fazer o mesmo com a sua mãe?
Iaconelli - Acho que sim, um tanto. Acho que não é um processo acabado. Colocar os pais num lugar de exceção, não inteiramente homem e mulher, mas outra coisa, uma espécie de ente, isso nos apazígua profundamente. Enquanto eles estão vivos, é como se a gente nunca fosse morrer. Porque é como se a gente só pudesse ir depois deles. E eles foram, ao longo de toda a nossa existência, os fiadores de tudo.
Por exemplo, você tem uma mãe de 80 anos que não consegue usar o celular, que não consegue usar o computador. Você pode ficar irritado com ela. Por quê? Porque ela deveria saber tudo. Essas são fantasias que reaparecem. Ver o adoecimento dos pais, por mais óbvio que seja, ver eles perdendo as capacidades, pode dar raiva, tristeza, depressão. Por quê? Porque é uma notícia de que eles não vão estar aqui mais para nós.
Eu andei um percurso importante escrevendo esse livro para vê-los mais como pessoas falíveis e humanas. Mas isso não encerra a questão. Não há análise que encerre nossas questões. Mas isso me deu uma possibilidade de lidar com o que é potente em mim muito maior do que quando eu suponho que o outro é meu fiador.
É um processo. A análise não acaba com as nossas questões, mas ela dá lugares mais confortáveis para as questões.
BBC News Brasil - Eu pergunto da mãe, porque a mãe é muito menos humanizada, é sempre mãe, nunca mulher. E uma vez você falou da mãe narcisista dizendo que isso é julgamento moral. O que uma mãe que cuida da carreira, que cuida de si mesma, que vive a mesma vida mais parecida com a do pai, ela causa nos filhos?
Iaconelli - As demandas para pai e mãe são um pouco distintas, embora tenham que ser pensadas singularmente cada caso. Está suposto que a mãe, acima de tudo, ama os filhos, põe tudo em segundo lugar pelos filhos, o amor dela é incondicional, e, no final, se ela tiver que escolher entre a carreira e o filho adulto, se ela tiver que escolher entre a sexualidade e estar com o filho, ela sempre vai escolher o filho.
Do pai, não se espera isso. Ao contrário, [é esperado] que ele tenha uma carreira até que ele tenha uma sexualidade, mas que ele seja um eterno fiador, caso o filho precise justamente de alguma garantia financeira. São demandas diferentes para cada figura, mas que os dois, a qualquer momento que você precisar, venham em seu socorro, venham garantir alguma coisa.
Mas para as mulheres, o peso é maior por conta desse mito da origem. A mulher saberia de onde viemos, para onde vamos. A mulher não sabe nada, obviamente, e desse corpo que se ofereceu inteiramente para que a gente possa existir. Então são equívocos diferentes que cobram contas diferentes.
Quem hoje quer, por exemplo, uma mãe que, no fim da vida, dependa do filho para se sustentar? Infeliz porque não conseguiu realizar seus sonhos? São contas que chegam numa certa hora, que os filhos também hoje não querem.
Eu acho que é super possível para uma criança se orgulhar, e para um filho ao longo da vida, se orgulhar da carreira de uma mãe, do fato dela ter conseguido bancar suas contas.
BBC News Brasil - E como é a Vera mãe? Você é bonita, inteligente, uma figura pública, realizada, fico imaginando como é ter uma mãe assim. Você fala muito sobre a Vera filha, mas como é a Vera mãe?
Iaconelli – Sou uma mãe muito apaixonada pela maternidade e muito encantada pelas minhas filhas, porque elas me trazem essa nova geração, e elas me apoiam muito como meu trabalho, elas se encantam quando conquisto coisas.
Elas também me acham muito bonita, embora eu ache isso engraçado, porque elas são moças lindas, jovens. Mas essa coisa da beleza tem a ver com gostar de mim, gostar do jeito que eu sou.
Temos milhões de questões que a gente debate, pensa e se critica mutuamente. Eu falho em várias coisas, elas também falham comigo. Mas tem uma confiança mútua muito grande de que eu não vou retaliar se elas vierem se queixar e que elas também não vão me retaliar, que a gente pode se escutar e superar momentos difíceis.
Durante esses 30 anos de clínica, às vezes vinha uma mãe no consultório, muito destruída, com muitas limitações, uma mãe que odiava o filho. E as pessoas perguntavam: "Mas como você aguenta atender uma mulher que é uma péssima mãe?". Eu sempre pensava: "Eu tenho tanta compaixão, porque ela não sabe o que ela está perdendo". O que será que prejudicou a possibilidade dela de ter uma relação com o filho, que é uma coisa tão bacana?
Sempre tive muita compaixão por esses desencontros. Porque quando é bom, é muito, muito bom. Tenho muita afinidade com a escuta de pessoas que não tiveram maternidades legais. A maternidade sempre é um pouco sofrida na nossa cultura ou muito sofrida na nossa cultura, mas sempre me compadeci muito. Todo mundo tem direito a ter uma maternidade bacana. Enfim, acho que eu sou uma mãe esforçada.
BBC News Brasil – Nas últimas semanas saíram muitas notícias sobre feminicídio no Brasil, com manifestações em várias cidades contra a violência contra as mulheres. Você acha que estamos vivendo uma epidemia de ódio às mulheres?
Iaconelli - Acho que sim. Principalmente o feminicídio de mulheres negras e os abusos às mulheres negras, mas às brancas também. O corte de raça e de classe é muito importante aí. E de gênero também, quando você tem mulheres trans. Mas todo esse grupo do feminino, das mulheres, está sofrendo cada vez mais violência porque o pacto se rompeu. Tem várias questões, não uma só, mas uma delas é que o pacto de silêncio, de tolerância se rompeu.
Quando você olha para os casos de feminicídio, na maioria das vezes, são mulheres que disseram não para o desejo de um homem. São mulheres que quiseram se separar, que romperam namoros, que decidiram que não iam ficar com aquele cara, e o cara não se conforma. Os caras não se conformam com os nãos que até então não vinham sendo sustentados. As mulheres toleram cada vez menos, exigem cada vez mais, e eles respondem com assassinatos, tortura e abusos.
O que está em jogo aqui é a própria identidade, uma certa identidade do masculino que só se fia na subalternidade da mulher. Quando a mulher diz não, o cara tem que refazer a prova de que ele é homem. E ele só sabe fazer isso com violência.
E tem as redes sociais fomentando, acobertando, estimulando para vender tempo de atenção para vender produtos. Essas redes sociais não só fazem isso com essa rage bait, mas elas também conseguem juntar, para o bem e para o mal, grupos que até então não se encontrariam.
Falar de coisas antirracistas, de amor, de bem comum, de cuidado não dá muito engajamento. Falar de ódio, destruição, imagem de mulheres apanhando, tem toda uma estética da violência que as pessoas gostam de ver. E isso dá mais engajamento.
Estamos em um momento de virada muito importante. Até então, a gente estava se defendendo, estava acusando os homens. Hoje, eu acho que a pauta é a seguinte: não basta não ser machista. Você tem que ser antimachismo. Os homens vão ter que se posicionar perante os outros homens. Os homens vão ter que provar e comprar esta briga perante os seus pares.
A gente quer nota de corte. Com quem você anda? Com quem você fala? Que piadas você faz na presença dos seus amigos? A gente tem que chamar os ditos bons homens à fala. Eu estou vendo isso acontecer. Já é outro passo do feminismo.
BBC News Brasil - E diante dessa discussão, também vejo um discurso no sentido de que a gente precisa educar os meninos. Mas isso não cai, novamente, sobre a mulher? Quem educa? Não é colocar mais uma responsabilidade sobre a mulher?
Iaconelli - Vamos fazer um exercício. Você tem um menino e uma menina. A sua filha quer ir no dia da fantasia vestida de caubói. Ninguém vai falar nada. O seu filho quer ir vestido de fadinha. Alguma chance que seu filho vá de fadinha? Não.
A sua filha brinca com todos os brinquedos. O seu filho brinca com a bonequinha cor de rosa, o carrinho cor de rosa, o fogãozinho? Não. A sua filha veste uma roupinha que mal dá para ela se mexer, porque é um vestido cheio de babados. O seu filho está de shorts e camiseta, que é para pular.
Tem uma série de coisas que a gente nem percebe que a gente faz e que são difíceis de você se opor, porque toda família está olhando. A escola está olhando. Os amigos estão olhando. Os vizinhos estão olhando e estão apontando. Por que esse menino veio de fadinha? Pelo amor de Deus! Por que essa menina veio de caubói? Ninguém quer nem saber. Veio de jogador de futebol? Ninguém quer nem saber. Inclusive, as meninas podem fazer tudo isso, podem jogar futebol, podem fazer tudo.
Então, botar no plano privado, individual, de uma mãe e seu filho é uma loucura, porque a pressão social é gigantesca. Os meninos não são autorizados a cuidar, pegar uma boneca no colo. Essas brincadeiras estão interditadas do lado dos meninos. E é uma pressão muito grande sobre homens e mulheres que sentem que se deixar os meninos fazerem isso, vão criar o grande fantasma do menino gay.
As meninas podem até ser lésbicas, isso não fere tanto, porque as pessoas nem levam muito a sério as lésbicas. Tem uma negação total da homossexualidade feminina. Do lado dos meninos, não, eles têm que dar provas da masculinidade deles dia e noite. Os meninos são realmente massacrados neste lugar, ficam extremamente inseguros, porque é a identidade deles que está em jogo.
Isso não é uma coisa que uma mãe faz sozinha. Ela não peita isso sozinha. Isso é uma mudança de mentalidade. Diria mais: a gente precisa parar com essa tecla de que um menino, para ser legal, ser aceito pelo feminismo, ele tem que ser feminino no sentido de pintar a unha, deixar o cabelo crescer, isso não interessa em nada.
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Um homem para ser legal, ele pode ter todas as prerrogativas masculinas: barba na cara, futebol, cerveja com os amigos. Não é isso que a gente está discutindo. A gente quer homens decentes, homens que não associem a masculinidade à violência. Homens que não tenham medo da sua própria sexualidade, não tenham medo de ser amigos de outros homens, de serem íntimos, que não tenham medo de cuidar, de ter intimidade, de falar de si. E isso não tem nada a ver com os hábitos dos homens. Continuem sendo masculinos, mas aprendam a cuidar de si e do outro. Aprendam a amar.
