O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de votos, nessa quinta-feira (27/11), para reconhecer a existência do racismo estrutural no Brasil e determinar a elaboração de um plano nacional de enfrentamento em até 12 meses.

Entre os votos que marcaram a sessão, o de Cármen Lúcia ganhou centralidade ao apresentar uma análise ampla sobre a persistência histórica das desigualdades raciais e a insuficiência das medidas adotadas pelo Estado ao longo das últimas décadas.

A ministra recorreu à produção cultural brasileira para reforçar que o racismo atravessa séculos e continua delimitando oportunidades, destinos e até sonhos de grande parte da população negra.

Ela mencionou versos do cantor e compositor Emicida para explicar como barreiras simbólicas e materiais seguem impondo limites à população negra e a escritora mineira Carolina Maria de Jesus. Também recuperou trechos do poema "O navio negreiro", de Castro Alves, para lembrar que a violência herdada do passado escravista ainda reverbera nas estruturas institucionais atuais. Para a ministra, a permanência dessas referências na vida cotidiana evidencia o quanto o país falhou em superar as marcas do período colonial.

"Emicida escreveu que, para eles negros, até para sonhar tem trave. 'A felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase'. Eu não espero viver num país em que a Constituição para o branco seja plena e para o negro seja quase. Eu quero uma constituição que seja plena, igualmente, para todas as pessoas. Naquela música, o Emicida diz que 80 tiros te lembram que 'há a pele alva e a pele alvo'. Não é possível continuar vivendo essa tragédia no Brasil", disse a ministra citando a música Ismália, com participação de Larissa Luz e Fernanda Montenegro.

"A insuficiência de todas as medidas e providências tomadas até aqui não revela superação do racismo histórico, de um racismo estrutural sem resposta adequada", completou.

No voto, Cármen Lúcia apontou que a Constituição de 1988, apesar dos avanços, não conseguiu se tornar plenamente efetiva para todos, momento em que citou a autora mineira.

"Nós poderíamos lembrar com Carolina de Jesus: 'Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida. Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida'. Não é possível continuar preterindo mais da metade da população brasileira por puro, grave, tráfico, racismo e é isso que nós temos. E se a constituição brasileira tem que ser plena, é preciso que se tomem providência sobre isso, uma vez que as medidas até aqui tomadas não foram suficientes", destacou.

Cármen Lúcia ainda enfatizou que a proteção oferecida pelo Estado permanece insuficiente e que a desigualdade racial continua se reproduzindo de forma massiva, nas abordagens policiais, nas prisões, no acesso a políticas públicas, nos índices de violência letal e na sub-representação em carreiras estatais.

Ao mencionar situações recorrentes envolvendo jovens negros e mulheres negras, observou que o país convive com um ciclo contínuo de exclusão, que se reflete inclusive na percepção social, marcada por reações de desconfiança e medo quando corpos negros circulam em determinados espaços.

A ministra também destacou que, quase quatro décadas após a promulgação da Constituição, a igualdade formal não se converteu em práticas institucionais capazes de transformar o cotidiano. 

Para ela, isso justifica o reconhecimento do chamado estado de coisas inconstitucional, entendimento segundo o qual há um cenário persistente de violações de direitos que o Estado, mesmo diante de seu dever constitucional, não conseguiu corrigir.

Ao encerrar o voto, Cármen Lúcia retomou a poesia de Castro Alves para reforçar que o país ainda convive com marcas profundas da escravidão. A ministra lembrou que o poeta descrevia um povo cuja bandeira era usada para acobertar infâmias e violências cometidas nos navios negreiros e afirmou que a Constituição não pode ocupar lugar semelhante, servindo de enfeite formal enquanto direitos de negros, pardos e, especialmente, de mulheres negras seguem sendo negligenciados. 

"Eu não quero que a Constituição seja, também, a bandeira que antes rota na batalha, antes que a gente faça com que ela vale aqui, do que servir a mortalha dos direitos de negros, pardos, de mulheres negras, de mulheres pardas, de mulheres valorosas, que hoje constituem a maioria, inclusive, dos lares brasileiros", disse.

Votos no STF

O argumento de Cármen Lúcia, no entanto, enfrenta resistência na Corte: o placar parcial é de 5 a 3 contra a adoção desse conceito no caso, embora haja maioria para admitir a existência do racismo estrutural.

O julgamento foi interrompido e será retomado em data futura, quando os ministros vão definir as diretrizes do plano nacional. A ação julgada foi apresentada em 2022 pela Coalizão Negra por Direitos, em conjunto com sete partidos políticos, com o objetivo de reconhecer a omissão do Estado no enfrentamento do racismo.

Mesmo com as divergências internas, houve consenso entre vários ministros sobre a persistência das desigualdades e a necessidade de medidas mais robustas. Luiz Fux, relator do processo, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes destacaram que a estrutura racial brasileira evidencia um quadro prolongado de violações. Já André Mendonça afirmou reconhecer o racismo, mas questionou a ideia de que as instituições seriam estruturalmente racistas.

Posição do governo federal

O governo federal afirmou estar comprometido com o plano nacional. Em nota, a Advocacia-Geral da União declarou que o Ministério da Igualdade Racial assumirá a liderança na articulação entre sociedade civil e entes federativos para construir diretrizes efetivas de combate ao racismo.

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"O governo federal, por meio do Ministério da Igualdade Racial, manterá seu protagonismo na coordenação do processo, articulando a participação da sociedade civil — especialmente do Movimento Negro — e dos demais entes federativos, de modo a construir diretrizes que tornem o plano nacional efetivo, colaborativo e viável em todo o território nacional”, disse a AGU.

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