"Tenho orgulho de ser a primeira pessoa LGBT a assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa"

crédito: Guilherme Dardanhan/ALMG

Nascida e criada em Belo Horizonte, Bella Gonçalves, de 35 anos, é formada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a primeira deputada estadual a se assumir publicamente lésbica. Condição que a levou a ser alvo, em 2023, de ameaças de “estupro corretivo”, ainda não desvendadas pela Polícia Civil. Mas nada disso intimidou a deputada, que já foi vereadora por dois mandatos e começou sua atuação política defendendo o direito à moradia, uma das pautas que ela pretende tirar do papel caso seja eleita prefeita da capital mineira.

Segundo ela, seria possível zerar o déficit habitacional em BH usando imóveis desocupados e terrenos ociosos da União. “Não é impossível, muita gente falava que a tarifa zero também era, e hoje estamos vendo ela ser implantada em várias cidades”.

O nome de Bella já foi lançado pelo partido e ela assegura que sua candidatura é para valer. “Sou uma mulher dos movimentos populares e uma mulher que tem orgulho de ser a primeira pessoa LGBT a assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa”, afirma a deputada, que nas horas de lazer gosta de pegar uma cachoeira e contemplar a natureza e afirma que nesse primeiro ano já pegou a “manha” de como funciona o Legislativo.

Deputada, quem é a Bella Gonçalves?
Sou de Belo Horizonte, cidade onde sempre morei, filha de pais ali da Serra do Espinhaço. Minha mãe é da região do Serro, e meu pai é capixaba. Comecei em 2008 a me envolver na construção dos movimentos sociais, quando entrei nas Brigadas Populares, acompanhando a luta por moradia e direito à cidade, e venho desde então atuando nesses temas. Fui vereadora por duas vezes, construindo um mandato coletivo – que foi a gabinetona – e hoje estou no meu primeiro mandato de deputado estadual. Tenho orgulho de ser a primeira pessoa LGBT a assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa.

Como a senhora avalia esse primeiro ano de mandato do governador reeleito Romeu Zema (Novo)?
Parece que depois dos quatro primeiros anos de governo, Zema decidiu ser pior ainda, fazendo um loteamento muito forte de cargos com o a criação de secretarias para abrigar aliados políticos, aumentando seu próprio salário e dos dos secretários, propondo aumento de impostos para a população e dando benefícios fiscais para os seus aliados de primeira hora na campanha, como é o caso da Localiza.

E, depois dessas maldades, sem diálogo e fundamentação nenhuma, tentou emplacar o Regime de Recuperação Fiscal, que se mostrou um verdadeiro desastre, o que acabou levando ao isolamento do governador frente ao conjunto das forças políticas que se uniram para salvar Minas Gerais e tentar mostrar que existiam propostas melhores. E teve ainda a tentativa de acabar com o referendo para privatizar as estatais mineiras, a não colocação em funcionamento de diversos conselhos e os ataques ao meio ambiente. Na minha vida parlamentar nunca tinha experienciado uma coisa tão ruim assim.

E como a senhora analisa a atuação da oposição?
Nós fizemos política de redução de danos e, ao mesmo tempo, de enfrentamento a todas essas medidas. Avalio que tivemos um salto positivo. O Regime de Recuperação Fiscal não passou e estamos discutindo agora propostas melhores para a dívida de Minas, que vão demandar muito boa vontade, inclusive do governador, apesar de não podermos contar muito com isso.

Além disso, também conseguimos evitar danos importantes como a garantia de R$ 1 bilhão que o Zema estava desviando do Fundo de Erradicação da Miséria, mas conseguimos atrelar ao Fundo Estadual de Assistência Social. Essa resistência acabou garantindo que, pela primeira vez na história, esse fundo, que cuida da assistência social e da política para a população de rua no estado, por exemplo, tenha pelo menos 1% do orçamento. Isso é histórico e muito importante. Assim vamos resistindo e garantindo vitórias concretas para a população.

O governador começou seu mandato comemorando um aumento da sua base de apoio no Legislativo, a senhora acha que isso se concretizou ou ele isolado inclusive entre os próprios aliados?
Tem uma parte da base do Zema que é ideológica, outra parte que é fisiológica. Elas se juntaram e ele conseguiu garantir algumas coisas derramando milhões de emenda. Acho importante dizer que é um governo que faz esse tipo de política para dizer que tem base na Assembleia, mas no caso do Regime de Recuperação Fiscal nem isso adiantou, porque de fato os deputados compreenderam que a proposta dele sacrificava demais o estado, os servidores e as estatais e não resolveria o problema da dívida pública.

Qual o principal desafio para este ano de 2024?
Temos dois debates centrais. Um deles é a dívida pública: como é que a gente resolve esse problema e diminui essa dívida.Temos uma série de propostas, mas é preciso que os diferentes atores – Congresso Nacional, o governo federal, mas em especial Zema, também queira resolver o problema, o que parece que ele não quer.

O outro desafio são as estatais e o papel delas no desenvolvimento e na garantia de direitos para Minas Gerais. A privatização é o pior que pode acontecer com as nossas estatais, porque isso é transformar energia elétrica e água em mercadoria e os lugares que privatizou a gente sabe o que aconteceu. Falta de luz e água de péssima qualidade. Mas também a ideia da federalização precisa ser muito bem desenhada, porque o fato das estatais deixarem de ser estaduais e passarem a ser federais pode prejudicá-las enquanto ativo estratégico para o desenvolvimento do Estado. Como evitar que isso aconteça? Então, no início do ano, teremos que nos concentrar a desenhar o melhor formato para contrapor à ideia de privatização do Zema com uma federalização que seja de fato benéfica para a população para o serviço público para os servidores.

Seu nome já foi lançado pelo PSOL para a Prefeitura de Belo Horizonte. Sua pré-candidatura é para valer ou pode haver desistência em nome de alguma composição com outros partidos?
Minha candidatura é pra valer e está referendada pelas direções do partido e não existe hoje nenhum tipo de medida que nos atrela a não sair como cabeça de chapa da federação de partidos. Temos tido muita receptividade das pessoas e já começamos a pontuar nas pesquisas espontâneas muito antes de eu ter imaginado ser pré-candidata.

Por que a candidatura à Prefeitura de Belo Horizonte? A senhora acha que a capital está precisando ter pela primeira vez uma prefeita mulher?
Belo Horizonte está precisando de uma cidade governada por uma mulher, uma cidade mais bela, porque 126 anos é tempo demais para a cidade que tem mais mulheres do Brasil, para a cidade mais feminina do Brasil, nunca ter elegido uma mulher. As mulheres têm uma forma de governar que é muito competente e muito cuidadosa, e Belo Horizonte está precisando ser cuidada. A cidade está abandonada, em especial as periferias.

A senhora atuou desde o começo de sua carreira política na defesa por moradia. Esse tema segue sendo prioritário?
A maior parte da população de Belo Horizonte, 25%, vive em vilas, favelas e ocupações urbanas e não é gasto nem 1% do orçamento anual da prefeitura com essas áreas. E aí, quando tem um deslizamento de terra, uma enchente, a gente chama de fatalidade, mas não é fatalidade. É abandono.

Belo Horizonte vive um problema estrutural do transporte que ninguém aguenta mais falar e precisa de solução. Quem está no ponto de ônibus? Quem são os maiores usuários de transporte? As mulheres, aquelas que cuidam na maioria das vezes do trabalho da casa, dos filhos, dos idosos. Então, eu acho que uma candidatura feminina é que tem esse olhar de cuidado com a população, que tem condição de fato de fazer com que BH fique mais bela.

A senhora teme que o fato de ser assumidamente lésbica possa ser usado de maneira negativa na disputa pela PBH?
A violência contra as mulheres é uma regra no Brasil e um problema que muitas das mulheres que ocupam a política aqui em Minas Gerais estão enfrentando. Não é à toa que estamos no topo do ranking das ameaças contra parlamentares. É importante dizer que as mulheres são ameaçadas a partir do seu lugar. Algumas são ameaçadas por serem mulheres negras, outras são ameaçadas por serem LGBT, outras simplesmente por serem mulheres. Então, é preciso que a gente compreenda que, por mais difícil que seja, temos que aprender a lidar com esses processos.

Precisamos manter a cabeça erguida, enfrentando eles, e mostrando que uma sociedade livre de preconceitos, que cuida da diversidade, que cuida das mulheres, é uma sociedade melhor para todo mundo. Acredito que nós vamos conseguir vencer esse debate. O que a extrema direita faz na verdade é construir cortinas de fumaça para não discutir as questões centrais, que são o aumento da população em situação de rua, o transporte, a falta de moradia, a fome. Acredito que ser LGBT não me atrapalha, pelo contrário. Me coloca ainda mais bem posicionada para lutar contra as injustiças.

A senhora foi uma das parlamentares mineiras vítimas de ameaças extremamente violentas, de tentativas de intimidação no parlamento, como enfrentou tudo isso? Ficou abalada, teve medo?
A violência é devastadora. Por isso, precisamos construir política de verdade para proteger a população da intolerância, do preconceito e da violência. O que eu vivi foi uma situação horrível, abominável, mas é uma situação que várias mulheres e várias pessoas vivem cotidianamente. Nossa cidade é uma das que tem mais estupro do Brasil, uma loucura isso.

Então, tudo isso tem sido um processo desafiador, mas nada me paralisou, muito pelo contrário. Conseguimos transformar essa violência contra nós em um desafio de fazer com que outras mulheres não passem por isso, porque precisamos, cada vez mais, de mulheres na política, como prefeitas, deputadas e vereadoras. Um ano antes de ser vereadora só tinha uma mulher na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Quando fui eleita pela primeira vez, tinham quatro. Hoje, tem um número maior, mas ainda é pouco, pois somos mais de 50% da população. Então, temos que destravar todos os mecanismos que têm impedido as mulheres de ocupar a política e a violência política, sem dúvidas, é hoje um dos principais mecanismos que atenta contra a democracia e contra a participação das mulheres.