O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches -  (crédito: Rafaela Cassiano/Divulgação)

O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches

crédito: Rafaela Cassiano/Divulgação

Neste mês de dezembro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encerra, pela terceira vez, um primeiro ano de mandato. Mesmo com a experiência de ter passado por três legislaturas no Palácio do Planalto, o petista se deparou com um cenário diferente das oportunidades anteriores e tem na articulação com o Congresso Nacional um obstáculo que se mostra de difícil transposição para os próximos três anos à frente do país. Em entrevista ao Estado de Minas, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches faz uma análise do ano inaugural de Lula III e seu relacionamento com um Legislativo pós-Bolsonaro e orçamento secreto.

Em entrevista ao Estado de Minas no fim de 2022, Abranches fez um balanço do fim do mandato de Jair Bolsonaro (PL) na Presidência da República e projetou os percalços que Lula teria à frente de um país recém-saído da eleição mais acirrada da história. Doze meses depois, ele trata sobre como o bolsonarismo é um coadjuvante à sombra de um Centrão que se acostumou com seu lugar ao sol e mordidas generosas no orçamento, ampliando o desafio da governabilidade do petista.

O senhor destacou em 2022 que Lula precisaria focar em cumprir promessas no campo econômico para escapar de armadilhas deixadas pelo governo Bolsonaro. Esse foi o foco deste primeiro ano?
Ele focou nessa questão. Sobretudo porque o Fernando Haddad se empenhou pessoalmente em passar essa parte da agenda econômica. Interessava muito a ele por conta da necessidade do juros baixar e conseguir fazer a economia crescer. Ele conseguiu aprovar a pauta econômica, sobretudo a partir de impostos que ele precisava de criar para gerar receita e trabalhar com a meta do déficit zero no ano que vem.

Por outro lado, o que se diferenciou do que eu imaginava no começo é como se organizou o contraste. Primeiro, o Lula conseguiu o isolamento do grupo ligado ao Bolsonaro, que hoje é diminuto. Uma minoria que ficou muito evidente na promulgação da reforma tributária, com eles de costas para o plenário. É um grupo que não tem mais força nem relevância no Congresso, porque, na verdade, o que se impôs foram as origens do Bolsonaro, que é o Centrão. A separação entre o Centrão e o grupo de Bolsonaro era previsível porque o Centrão sempre esteve com o governo, não importa qual fosse, mas produziu uma maioria que dificulta a gestão política do Lula.

“Essa polarização transbordou da política para a sociedade, mas vejo os números da divisão e, na verdade, a maior parte da população brasileira não está mais de um lado nem do outro”

O núcleo do governo é minoritário no Congresso, Lula só consegue maioria quando o Centrão adere. E o centrão, para aderir, cobra concessões de vários tipos. O que está acontecendo de importante, diferente e arriscado para o equilíbrio institucional do país é o avanço do legislativo sobre o orçamento. Porque isso diminui a capacidade de formulação de políticas públicas do governo e aumenta a desigualdade distributiva, os parlamentares distribuem para suas áreas e os pontos onde não há representação parlamentar ficam descobertos.

O senhor avalia que nisso há uma certa herança dos quatro anos de Bolsonaro no poder?
Eu acho que sim. Bolsonaro começou dizendo que não queria governar com o congresso e viu que isso era impossível no presidencialismo brasileiro. Depois, ele tentou governar com as bancadas temáticas do boi, da bala e da bíblia, mas elas não formam uma maioria coerente porque há divergências. Por exemplo, na questão das armas a maior parte da bancada evangélica não concorda nem com os ruralistas nem com os representantes da bala. Essa estratégia fracassou porque essas bancadas não foram feitas para formar maioria, elas são fortes para suas áreas específicas.

Quando Bolsonaro começou a ser ameaçado por processos e viu que a governabilidade estava difícil, ele abriu mão dessa postura. Abdicou do controle e aceitou o orçamento secreto, que transferiu uma parte significativa dos recursos orçamentários para o Congresso, completamente sem transparência, da forma mais arbitrária possível.

“O que está acontecendo de importante, diferente e arriscado para o equilíbrio institucional do país é o avanço do legislativo sobre o orçamento”

Quando sai o Bolsonaro e entra o Lula e o orçamento secreto acaba por interferência do Supremo Tribunal Federal (STF), não acabou a gana e a voracidade dos parlamentares que tinham obtido uma quantidade, até então, inédita dos recursos orçamentários. E então começou a pressão, o Lula foi sendo forçado a fazer concessões e, na última semana, na aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no apagar das luzes nota-se um aumento significativo de emendas de comissão que, na verdade, substituíram as emendas secretas.
Hoje o Congresso tem de fato mais poder. Esse cenário não é imutável, a parte do orçamento é mais difícil de mexer. Quando o Congresso avança sobre o orçamento, fazer com que ele recue é quase impossível, a não ser que o governo tivesse uma eleição parlamentar com maioria muito grande, muito forte de partidos comprometidos com essa causa.

Uma outra questão é que houve uma ruptura no padrão eleitoral e essa ruptura tinha a ver com o fim do eixo bipartidário PT e PSDB para organização de governo e oposição. Como o PSDB acabou, ficou PT versus o candidato do momento, porque o PL não vai ser o partido que substituirá os tucanos. Houve ainda uma outra mudança que tem a ver com a reforma eleitoral, que ainda deve ter efeitos progressivos nos próximos ciclos eleitorais. O que aconteceu no Brasil de 2018 para cá? As bancadas começaram a diminuir de tamanho e o Congresso passou a ser formado basicamente por partidos de tamanho médio, com uma concentração grande de bancadas de 30 a 40 deputados, além do PP e do PL, que na última eleição tiveram uma votação perto do dobro desse tamanho médio.

O colégio de líderes, em um certo sentido, desieraquizou, porque antes você tinha os grandes partidos dominantes e os líderes de partidos menores que vinham a reboque. Agora, todo líder é mais ou menos do mesmo tamanho. Então, é impossível fazer a coalizão de um governo majoritário consistente e funcional, mesmo que seja à custa de concessões de verbas e cargos, mas que mantenha uma certa regularidade no apoio às políticas do governo e na sustentação da governabilidade.

Com essa pulverização, cada votação vira uma negociação à parte?
Mais do que nunca. E com uma diferença adicional que começou no governo Bolsonaro e se fortaleceu no governo Lula por conta dessa nova maioria que se formou que é dominada pelo Centrão e representada pelos presidentes da Câmara e do Senado. Na Câmara, não passa nada que o Arthur Lira (PP-AL) não faça parte direta da negociação e não libere. Rodrigo Pacheco (PSD-MG) não é tão poderoso quanto o Lira, até pela formação da bancada do Senado, mas também é muito poderoso. Esses dois não têm nenhum compromisso com o governo, tanto é que aprovaram medidas que o contrariam completamente. Eu destacaria como a principal e mais danosa matéria aprovada pelo Congresso contra o governo, o marco temporal das terras indígenas. É uma pauta que vai ser judicializada e considerada inconstitucional, mas o fato é que isso cria uma enorme instabilidade e mostra que dentro do Centrão, o poder da bancada ruralista ficou maior também.

Diante desse cenário e de uma articulação política do governo feita por nomes menos afeitos à agenda progressista do PT, como o senador Jaques Wagner e o ministro Alexandre Padilha, podemos dizer que Lula ficou um pouco de lado neste primeiro ano e deixou o protagonismo para Haddad?
O Lula é muito pragmático. Ele viu que consegue aprovar uma determinada direção que vai beneficiar o governo em longo prazo com essa pauta econômica, sobretudo se a política econômica no ano que vem conseguir manter a meta de déficit zero ou se aproximar disso e manter a inflação baixa. Isso vai trazer mais popularidade ao Lula e mais dividendos ao governo. Nas pautas mais difíceis ele só entra quando realmente são absolutamente essenciais. Então, tem esse lado que é o pragmatismo dele.
Outro lado é o fato de que o Lula sempre trabalhou com a ideia de ter duas posições, nesse sentido ele é um pouco parecido com Getúlio.

Ele tem o Haddad defendendo uma pauta que eu chamo de ‘nova esquerda‘, que admite a responsabilidade fiscal, mas que faz uma política de equilíbrio dando prioridade ao combate à pobreza e para a parte social; e ele tem a velha esquerda, com a Gleisi Hoffmann o tempo todo criticando o Haddad. Com isso, dado que ele tem uma coalizão já frágil, quando um lado não faz parte do núcleo da coalizão do Lula vê que a parte da esquerda está dividida, aí fica com mais força. Então, esse trabalho que o Lula faz de jogar um contra o outro para manter o equilíbrio e não deixar radicalizar demais, nessas circunstâncias está dando menos certo que em outros governos dele, porque o contexto mudou e ele ainda não conseguiu entender completamente essa nova dinâmica.

Em 2024, devemos continuar vendo esse Lula pragmático ou um presidente que abrace mais as pautas ideológicas levantadas durante a campanha?
Eu acho que, se a economia ajudar no ano que vem, apesar do problemas que teremos com a quebra de safra provocada pelo El Niño, por exemplo, só a manutenção da inflação em baixa e ao mesmo tempo o aumento do salário mínimo e a manutenção dos valores reais do Bolsa Família e garantir conforto econômico para a maioria da população, a popularidade do Lula vai aumentar. O meu chute, porque não podemos dizer nada com certeza, é que a polarização vai diminuir. Porque o aumento da popularidade do governo os políticos começam a ouvir em suas bases. Isso no Congresso significa mais apoio ao presidente e com um custo mais barato.

Acho que esse modelo dos ciclos econômicos do presidencialismo de coalizão, em que a popularidade alta aumenta a atração centrípeta do presidente, que é o centro do regime, e uma popularidade em queda produz fuga do centro da presidência para outras áreas sobretudo para as lideranças que podem substituir o presidente em uma eleição. Em um período anterior, a queda de popularidade de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) representava aumento de apoio a Lula. Durante os governos Lula e Dilma, representava aumento de apoio aos tucanos. Eu acho que esse ciclo continua funcionando.

Essa polarização que a gente está vendo ela transbordou da política para a sociedade, isso é um problema mesmo, mas eu vejo os números da divisão e vejo que na verdade a maior parte da população brasileira não está mais de um lado nem do outro. Você tem ali 30% do lado do PT, 25% do lado do Bolsonaro e o resto dizendo o seguinte: ‘Olha, eu não estou nessa’.

De qualquer forma, estamos vivendo ainda um momento ainda de crise política que começou no impeachment da Dilma e ainda não acabou. O sistema partidário ainda não se realinhou, nós não temos um partido capaz de galvanizar a parte da sociedade que não vota no governo Lula para fazer um contraponto como o PSDB fez até 2014. Isso precisa se recompor e é necessária ainda uma redução significativa da fragmentação das bancadas no congresso e um aumento do tamanho médio dos partidos para termos um sistema mais organizado que garanta a governabilidade com coalizões funcionais.

A síntese do governo Lula 3 até aqui é que o rival político não é mais o bolsonarismo, mas esse Centrão herdado do Bolsonaro e da reforma política?
Não é um rival porque ele não quer a Presidência, ele quer o dele. É mais uma dificuldade, ele cria dificuldades, vende poucas facilidades e produz uma governabilidade muito problemática. O que significa também que vamos seguir tendo uma judicialização da política, o que inexoravelmente leva à politização do Judiciário. Então veremos um Supremo cada vez mais politizado e cada vez mais provocado a se manifestar sobre temas políticos em que há divergência entre Executivo e Legislativo. O primeiro deles deve ser o marco temporal.