Os anos eram de chumbo. O “Show Medicina” abusava da ironia para achincalhar a realidade política e social do país, com apresentações anuais no teatro Marília. A encenação tinha, a princípio, a intenção de espairecer as emoções de estudantes e professores do cenário dramático de doença e morte, tão desgastante na academia. À frente dessa iniciativa cultural, dois intelectuais, professores e médicos de primeira grandeza: Jota Dangelo e Ângelo Machado. Entre o aprendizado de suturas e diagnósticos, ambos estimulavam firulas nas artes cênicas.

A Faculdade de Medicina da UFMG era por demais politizada. No primeiro dia de aula, em abril de 1964, os calouros foram presos e conduzidos ao Dops. A lente microscópica da censura oficial em Brasília e Minas dissecava os textos da lavra dos dois médicos. O professor de neuroanatomia e médico Júlio Anselmo de Souza Neto, no livro “O humor do Show Medicina”, narrou a abrupta interrupção de um ensaio geral.

Censor - Não pode falar gonorreia! Diretor - Mas por quê? C - É muito pesado! D - Mas é termo técnico. C - Não é não! D - Mas está nos livros de medicina. C - Não é possível, gonorreia é palavrão! D - Alguém aí traz o Bogliolo! C - Quem é esse? D - É um professor da escola. C - O que ele está fazendo aqui? D - Ele não está aqui. Pedi para trazerem o livro dele. Ele escreveu um livro de patologia, que a gente chama pelo nome dele. C - Hummmm... D - Olha aqui, o termo é gonorreia mesmo e o agente etiológico é o gonococo, denominado cientificamente Neisseria gonorrheae. C - Hummm... é mas não pode! D - Mas o que é que a gente vai falar então? C - Ah... Doença de mulher de vida fácil, por exemplo. D - Mas... C - Ou então... Doença de rua! É mais leve. D - Então tá. Ô gente, muda aí! Gonorreia é muito forte! Bota doença de rua mesmo! Alguém nos bastidores comentou: “Essa nem Bezetacil resolve!”. Acabara de ser criada no país a “censura venérea”.

Polígono de três ângulos

A ideia de elaboração de uma nova constituição corria a mil, no ano de 1987, em Brasília. Em pauta, também a criação de outros estados na federação. Uberlândia virou caso à parte. Elegera cinco constituintes: Ronan Tito (PMDB), Luiz Alberto Rodrigues (PMDB), Chico Humberto (PDT), Homero Santos (PDS) e Virgílio Galassi (PDS). Todos imbuídos do propósito fervilhante da emancipação do Triângulo Mineiro. Sonho antigo, dos tempos de Dona Beja, posto que o território pertencera a São Paulo e Goiás, anteriormente. Chico Humberto tremulava a bandeira da rica região, produtora de soja, café e milho, com pecuária avançada. Seu esforço pela causa a certa altura ganhou a dimensão de um boeing, que aterrissou no aeroporto de Uberlândia com mais de uma centena de constituintes sensíveis ao projeto.

O então governador Newton Cardoso tomou um susto com o grau de mobilização. Moveu meio mundo, inclusive as entidades de classes, para reverter a situação, que parecia liquidada. Uma voçoroca separatista rasgaria o mapa de Minas. Passional, dono de corpanzil fora do padrão, Israel Pinheiro Filho encontra-se com Chico Humberto no plenário da Câmara Federal. Como que ofendido pelo movimento emancipacionista, talvez ensandecido pelo espírito do pai, Israel Pinheiro, que fora governador, trocou tabefes com Chico Humberto.

O nariz de Minas estava pronto a escorrer com o choro de alegria na polêmica votação. Entretanto, 16 votos da bancada do PT (16) sepultaram a criação do novo estado. Pairou no ar a frase do jurista Afonso Arinos, de família tradicional de Paracatu, diante da consagração do insucesso: "Não quero deixar de ser mineiro para ser triangulino, uma figura geométrica”.

Justiça seja feita


A Constituição, desde sua promulgação, em 1988, sofre infindável cobrança revisionista. Luiz Alberto Rodrigues, ex-secretário de Planejamento de Estado, disse que no processo de elaboração da Carta Magna, pelos corredores do Congresso Nacional, circulavam diariamente cerca de 10 mil pessoas, interessadas na manutenção, ampliação ou criação de direitos, o que lhe deu caráter popular. O relator era Bernardo Cabral. Amazonense para o qual todos os holofotes estavam voltados. Ele derrotara o mineiro Pimenta da Veiga, querido de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, na disputa pelo importante posto, depois de um empate em 84 votos.

Fernando Henrique, que também cobiçara o posto, mas ficara em terceiro lugar, tramou com Mário Covas a vitória de Cabral no pleito de desempate. "O Pimenta da Veiga, como sub-relator, foi quem fez um trabalho extraordinário, pouco reconhecido", observou Rodrigues. Consolidada a nova Constituição, Henry Maksoud, empresário da área de hotelaria e defensor do liberalismo, disse-lhe frase lapidar: "Essa Constituição é um rosário de sonhos e aspirações”.

Pleitos antigos

Pois saibam todos que o imperador romano Caio Júlio César (100-44 a.C.), aquele que nominou julho no calendário gregoriano, pois muito estimado pela população, morreu esfaqueado em pleno Senado. Ele tinha por meta acabar com a usura (a aristocracia cobrava juros exorbitantes), dar um fim aos privilégios (toda a riqueza, inclusive os escravos, ficava com os abonados) e implantar uma reforma agrária (a elite se apossava dos territórios conquistados, não os soldados na frente de batalha). Isso bem antes do nascimento de Cristo.

Reviravolta geral

Não há como contestar o fenômeno da modernidade. O Pix fechou agências bancárias; a roleta eletrônica sumiu com os trocadores; os leituristas são minguantes nas contas de energia elétrica; os frentistas de postos de combustível, para lá de 500 mil, devem pensar com seriedade no dia de amanhã. Até os idosos se renderam aos novos tempos. Uma maioria hoje circula de short ou bermuda e tênis no cumprimento de tarefas fora de casa, a despeito de seus cabelos brancos, o que seria impensável há uma década.