Dirce Waltrick do Amarante
Especial para o EM
Há quem diga que a crítica literária já não é levada em consideração pelos leitores, e não seria de hoje que se pensa assim. Há quem diga também que ela é atualmente inócua. Mas o fato é que a crítica não desapareceu e ainda circula, embora o seu espaço seja cada vez mais restrito.
Segundo essa visão negativa da crítica, que se estende para outras áreas, tampouco os jornais tradicionais são considerados meios de comunicação importantes, uma vez que se pode obter gratuitamente informações rápidas e satisfatórias em outras plataformas.
Essas conclusões algo apocalípticas são, a meu ver, colocadas em xeque no livro “Eu escreve: dilemas das escritas de si” (Record), organizado por Gabriela Aguerre e Natalia Timerman. Ao fazer o explícito elogio da autoficção por intermédio de textos críticos, o livro também faz um consistente elogio à crítica, pois, como se lê na apresentação do volume, assinada pelas organizadoras, bastou a consulta a uma resenha publicada num jornal impresso para que “Eu escreve” começasse a ganhar forma: “Folheávamos o jornal como mudávamos de assunto, e o tema a que chegamos – olhando desde agora, aquele passeio por diversos tópicos era um preâmbulo – era a diferença entre verdade e ficção, discutida em um texto do jornal”.
Leia: 'Eu escreve': coletânea debate autoficção e escritas de si na literatura
As organizadoras descrevem o que as incomodou naquela matéria, da qual não citam a autoria. Tampouco identificam o veículo no qual ela foi publicada. Ambas chegam à conclusão de que a autoficção “tem sido alvo de discussões fervorosas, mas, em geral, pouco aprofundadas, o que parece encaminhar o termo a seu esvaziamento e banalização”.
Vale lembrar que, dependendo do espaço no qual o texto crítico é publicado, ele fica restrito a um número determinado de caracteres. Não é o caso de uma publicação em livro. Nesse espaço privilegiado, pode-se estender o pensamento crítico, como se verifica em “Eu escreve”, que contém textos bastante oportunos. Josélia Aguiar vai dos gregos à literatura contemporânea, passando por Gertrude Stein, que, como se lê em “A autobiografia de Alice B. Toklas”, afirmou, com seu característico estilo redundante: “Eu escrevi a autobiografia de todo mundo. Eu escrevi a autobiografia de todo mundo. Eu escrevi a autobiografia de todo mundo e não escrevi a minha”.
Lubi Prates, no mesmo volume, escreve uma espécie de pós-crítica. Prates narra fatos autobiográficos enquanto pensa essa forma de escrita. Ao final, concluiu: “Mesmo que as histórias que eu quero contar não interessem a ninguém, exceto a mim mesma e a mais duas ou três pessoas, ainda assim irei contá-las”.
As organizadoras do volume também escrevem sobre o tema em capítulos individuais. Natália Timerman enumera suas reflexões quase como se estivesse escrevendo uma petição inicial em defesa da escrita de si. Já Gabriela Aguerre parte de sua experiência em sala de aula, em cursos de escrita criativa, para concluir que: “Coragem é escrever e mostrar, e melhorar, e botar o texto em pé, e rabiscá-lo até que chegue à sua melhor forma ...”.
Poderia citar outros textos importantes, como os densos “O direito à própria história e a ética de contar”, de Julián Fuks, e “Autoficção, uma crítica e um incômodo”, de Adriano Schwartz. O fato é que o livro mostra na prática que as opiniões críticas, mesmo aquelas consideradas “banais”, segundo as Timerman e Aguerre, levam adiante a discussão sobre determinado tema e estimula uma “conversa infinita”, como diria o pensador francês Maurice Blanchot.
Como muitos estudiosos afirmam, e parece haver se tornado lugar comum, tudo o que escrevemos, assim como a forma como interpretamos o que lemos, é autobiográfico, pois partimos das nossas vivências e do nosso repertório intelectual. Não temos, portanto, acesso ao texto em si, pronto e acabado.
No Brasil, Conceição Evaristo cunhou tempos atrás o importante termo “escrevivência”, que tem sido muito citado, mas não foi tão citado assim em “Eu escreve”. Segundo Evaristo: “Eu venho trabalhando com esse termo desde 1994, 1995, quando eu faço a minha dissertação de mestrado, e aí eu começo a fazer um jogo entre escrever-viver, escrever-se-ver, escrever-se-vendo, escrevendo-se, até chegar ao termo escrevivência”. Esse é um exemplo de reflexão em muitos sentidos pioneiro sobre a autoficção em nosso país.
A prática da autoficção, de fato, não nasceu hoje e, por isso, a história dos conceitos relacionados a esse tipo de escrita tão atual tem muito a nos revelar. O escritor francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), cujos livros trazem a marca da autobiografia ficcionalizada, comenta, já no primeiro parágrafo de “Norte”, romance monumental sobre a Segunda Guerra, traduzido por Vera de Azambuja Harvey (Nova Fronteira), o quão difícil havia se tornado para ele achar uma editora para seus livros, e desabafa:
“. . . ‘venda seus rancores, cale a boca’! . . . bolas, eu aceito! . . . sim, mas para quem? . . . os compradores me amarram a cara, é o que parece . . . só apreciam e compram os autores quase iguais a eles, os que já foram condecorados . . . o lacaio, o lambe-sola, o limpa-rabo, indiscrições, beatas, forcas, bidês, guilhotinas, envelopes por baixo do pano . . . para o leitor sentir-se em terreno conhecido, como um semelhante, um irmão, bem compreensivo, disposto a tudo. . .”
Céline prossegue dialogando diretamente com o leitor de sua autoficção, a fim de expor os dilemas da recepção de obras com fundo biográfico:
“ . . . não me queiram mal, se conto tudo em desordem . . . o fim antes do começo! . . . tanto faz! o que vale é a verdade! . . . vai dar para entender! . . . eu entendo direitinho! . . . é só ter um pouco de boa vontade . . . é como quando se olha um quadro moderno, dá mais trabalho!”
O problema que inquietava Céline, e tantos outros escritores que vieram depois dele, não era, parece-me, uma desconfiança sobre o valor literário desse gênero narrativo devotado a algo “verdadeiro”, mas a adoção de uma forma ingênua ou oportunista, para acomodar o escrito ao paladar de certo grupo de leitores cativos.
Todo mundo tem algo para contar. Todo mundo tem o direito de contar a sua história, como se lê em “Eu escreve”. Mas é o modo como se conta uma vida que vai determinar até que ponto o resultado merece ser considerada obra de arte ou não.
Como afirma Sérgio Rodrigues em “Escrever é humano” (Companhia das Letras), “Saber escrever e ter o que dizer são a mesma coisa, ou melhor, não existe na literatura – ou em parte alguma – a possibilidade de separar como dizer e o que dizer. Ou se tem o pacote completo ou não se tem nada”. Sobre a autoficção, o escritor teme que “a supervalorização da experiência como moda cultural” acabe limitando “de modo severo o cardápio daquilo que a literatura pode alcançar”.
DIRCE WALTRICK DO AMARANTE é professora, ensaísta, tradutora e autora, entre outros livros, de “Metáforas da tradução” e “Interferências: censura, apagamento e outros temas contemporâneos”
“Eu escreve: dilemas das escritas em si”
Organização de Gabriela Aguerre e Natalia Timerman
Record
294 páginas
R$ 89,90
