Rogério Faria Tavares
Especial para o EM
“Fazer a palavra chegar a todos os lugares onde anda a ser maltratada.” Este é um dos desafios da literatura no século 21 na opinião da escritora angolana Ana Paula Tavares. Vencedora em 2025 do Prêmio Camões, a mais alta distinção da língua portuguesa, ela é autora de livros de poemas como “Ritos de passagem”, de 1985; “O lago da lua”, de 1999; “Dize-me coisas amargas como frutos”, de 2001 (lançado no Brasil com o título reduzido para “Amargos como os frutos” pela editora Pallas), e “Manual para amantes desesperados”, de 2007, além de coletâneas de crônicas e do romance “Os olhos do homem que chorava no rio”, de 2005.
Ana Paula Tavares nasceu na Huíla, sul de Angola, em 1952. É historiadora com doutoramento em História e Antropologia. De passagem pelo Rio de Janeiro para participar da Primeira Festa Literária da Fundação Casa de Rui Barbosa, a Fli Rui, na sede da instituição, em Botafogo, ela concedeu esta entrevista exclusiva ao Pensar do Estado de Minas.
A senhora é historiadora e tem doutorado em Antropologia. Como estas duas formações se fazem presentes em sua escrita literária?
A atenção ao detalhe, o olhar implicado, o trabalho continuado e a procura incessante de olhar o chão que piso são tributários do aprendizado da história. A antropologia coloca no espaço tudo o que o tempo perturba.
A senhora também é professora. O que a atividade docente ensina a uma escritora?
Que a vida se renova e impõe dinâmicas que não são as da pessoa, mas as do mundo. Ensinar exige disciplina, atenção, olhar à volta. A escrita agradece.
É notória a sua preocupação com a preservação do patrimônio cultural de Angola – sobretudo de suas tradições orais. Sua literatura também comprova seu apreço pela memória cultural. Por que ela é tão importante?
As culturas da região do continente africano onde se situa Angola são ágrafas. A escrita foi incorporada e faz parte do cotidiano, mas as sociedades têm na oralidade uma riqueza antiga que não pode perder-se. A poesia se beneficia desse universo e pode fazer com que seja conhecido e se renove.
Angola celebrou 50 anos de sua independência em 11 de novembro. A senhora tinha 23 anos no momento da declaração. Como recorda aquele momento?
Estava numa região (Kwanza-sul) onde o exército sul-africano se preparava para entrar. Vivemos o dia e fugimos no dia seguinte. No meio do caos uma certeza: Angola era independente, o colonialismo tinha acabado e isso foi motivo de celebração e de esperança.
Como avalia esses primeiros cinquenta anos? O que ainda precisa ser conquistado?
O que precisa ser conquistado é escola para todos, acesso à saúde, proteção às mulheres. A desigualdade existe. As mulheres e as crianças são as principais vítimas.
Qual foi o percurso da literatura produzida em Angola neste meio século?
Publicou-se muito e as surpresas são algumas. Há cadeias que têm que ser rompidas. O livro tornou-se um objeto caro e as bibliotecas públicas são raras. Os circuitos de edição são controlados por quem tem dinheiro. Mas há quem resista e inscreva originalidade e pensamento crítico nas obras que vão aparecendo. Fenômenos como a slam poetry trazem o regresso (por vezes poderoso) à oralidade e estamos de novo a ouvir as vozes.
"“O Brasil foi importante na descoberta da própria identidade: João Cabral de Melo Neto (sabíamos de cor), Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles. Manoel de Barros, Ana Cristina César, Adélia Prado são alguns nomes que estão comigo desde sempre. A descoberta de Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira, entre outros, fez aumentar a lista e pensar que do Brasil há sempre coisas novas debaixo do céu.” "
por Ana Paula Tavares, escritora angolana
No quadro atual das literaturas africanas em língua portuguesa o que mais chama a sua atenção?
O fato de alguns mais velhos continuarem a escrever e a energia dos novos.
Nesse contexto (das literaturas africanas em língua portuguesa), gostaria de um comentário especial seu sobre as vozes femininas.
O cotidiano de tal forma desmesurado que no lugar de fala que lhes pertence ainda não estão todas as vozes.
A senhora sempre destacou a importância da literatura brasileira em sua formação, tanto como leitora, quanto como escritora. Que autoras e autores do Brasil permanecem importantes em seu repertório?
O Brasil foi importante na descoberta da própria identidade: João Cabral de Melo Neto (sabíamos de cor), Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles. Manoel de Barros, Ana Cristina César, Adélia Prado são alguns nomes que estão comigo desde sempre. A descoberta de Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira, entre outros, fez aumentar a lista e pensar que do Brasil há sempre coisas novas debaixo do céu.
O júri que lhe concedeu o Prêmio Camões em 2025 destacou que sua obra ‘resgata a dignidade da poesia’, chamando também a atenção para a dicção de seu lirismo – sem concessões evasivas. Como falaria de sua poesia?
Feminina, africana e em busca permanente da economia da palavra. Se eu pudesse chegar ao silêncio!
Para terminar: qual é o lugar da literatura no século 21, ainda atormentado por guerras e ameaçado por crises ambientais e climáticas sem precedentes?
Resistir. Fazer a palavra chegar a todos os lugares onde anda a ser maltratada. Ser Literatura.
ROGÉRIO FARIA TAVARES é jornalista, doutor em Literatura e presidente emérito da Academia Mineira de Letras (AML)
Poemas selecionados
Ana Paula Tavares
Do livro "Ritos de passagem” (1985)
“Alphabeto”
Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes.
*
“No fundo tudo é simples”
No fundo tudo é simples
Voa
faz-se em átomos
plas-ti-fi-ca-se
anelante
em círculos mais pequenos
No fundo a gente vive
agora ou logo à tarde
urdindo de memória
a esperança violenta
de construir a mar
O nosso tempo.
**
Do livro “O lago da lua” (1999)
Mukai (1)
Corpo já lavrado
equidistante da semente
é trigo
é joio
milho híbrido
massambala
resiste ao tempo
dobrado
exausto
sob o sol
que lhe espiga
a cabeleira.
“Mukai” (2)
"O ventre semeado
desagua cada ano
os frutos tenros
das mãos
(é feitiço)
Nasce
a manteiga
a casa
o penteado
o gesto
acorda a alma
a voz
olha p'ra dentro do silêncio milenar.
Mukai (3)
(Mulher à noite)
Um soluço quieto
Desce
a lentíssima garganta
(rói-lhe as entranhas
um novo pedaço de vida)
os cordões do tempo
atravessam-lhe as pernas
e fazem a ligação terra.
Estranha árvore de filhos
uns mortos e tantos por morrer
que de corpo ao alto
navega de tristeza
as horas.
**
Do livro "Dizes-me coisas amargas como os frutos" (2001)
“Tecidos”
Meu corpo
é um tear vertical
onde deixaste cruzadas
as cores da tua vida: duas faixas um losango
marcas da peste.
Meu corpo é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho
Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio.
“O lago”
Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.
“A guerra”
A hiena uivou toda a noite
o bicho esfomeado uivou toda a noite
as vozes saíram das casas como o fogo se levanta das cinzas
altas todas juntas no medo
os dentes dos guerreiros
batiam sem parar
os pés das velhas juntaram-se para aquietar a poeira
um companheiro nosso não regressou
o filho único de nossas mães
não vai voltar de pé
é só o seu cheiro que volta agora
e um corpo separado daquilo que era antes
um filho dos nossos não regressou
a hiena uivou toda a noite
a terra ficou dura sob os nossos pés.
**
Do livro "Dizes-me coisas amargas como os frutos" (2001)
“Otyoto, o altar da família”
Cansada de voar pássaros
a boca do vento
a avó
cortou o pão e a mandioca.
“O viajante”
Parou para traçar as sandálias
E olhar a terra arrepiada
A dar à luz
Luas de prata.
**
Do livro "Ex-votos" (2003)
a) OTYOTO (o altar da família)"
"Todas as mães da casa redonda disseram/Guarda os tesouros/ Os telhados de vidro/ O silêncio/ Cuida do corpo da casa e das tranças/ Desfaz-te em leite/ Para a fome das crianças/ Ninguém falou de dor/ Abandono solidão/ A loucura é palavra interdita/ Ficam os sonhos a voar/ Pássaros na boca do vento."
b) FALA DA VELHA
"Navego uma solidão de búzios/ No mar verde de canela e açafrão/ A noite é mais fechada/ No ar de prata e pólen/ Que respiro/ Meu coração é um lago/ Por onde deslizou a vida/ Sem flores/ Sem nenúfares".
**
Do livro “Como veias finas na terra” (2010)
“Adorno”
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas.
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.
