Rafael Fava Belúzio
Especial para o EM
Fabrício Marques permanece instável, movendo os dados no tabuleiro do tempo e de si mesmo. Reelabora seus poemas, cria outros, dialoga com artistas, liga pequenos fragmentos de luz a criar constelações inesperadas. Nessa dinâmica, emerge “Fora do alcance da memória” (Martelo), com lançamento neste sábado, 29/11, de 14 às 17h, na Quixote Livraria e Café.
Mineiro de Manhuaçu, Marques possui graduação em Jornalismo (UFJF), mestrado e doutorado em Estudos Literários (UFMG). Ao longo da carreira, transita por jornalismo, literatura infantil, ensaio, crítica literária e, em especial, poesia. Recentemente, organiza as obras de Maria do Carmo Ferreira (em três tomos, também pela Martelo) e Adão Ventura (“A cor da pele”, pelo Círculo de Poemas).
No campo da poesia, sua estreia ocorre em periódicos esparsos por volta de 1990; o primeiro livro, “Marquises”, sai em 1992. O segundo, “Samplers” (2000), aparece após oito anos, marcando notável alteração de voltagem e condensação estética. A multiplicidade de vertentes abarcadas prossegue: “Meu pequeno fim” (2002), “A fera incompletude” (2011), miniantologia “O começo de tudo” (2015), “A máquina de existir” (2018), plaquete “Haja” (2023) e, agora, (não só) autoantologia “Fora do alcance da memória”. Lendo esse caminho de mais de 30 anos, é notável que no autor a máquina do mundo está lá, sempre a mudar.
Quem sabe isso quer dizer uma poética.
“Fora do alcance da memória” rearranja percursos e celebra 60 anos do escritor por meio de anarquivamentos. No Brasil, aliás, um forte conjunto de poetas dessa idade vem, nessa década e de modos vários, reunindo suas produções. É o caso de “Poemas coligidos” (2022), de Rodrigo Garcia Lopes; “Tempo diverso” (2022), de Kiko Ferreira; “Desforra” (2023), de Anelito de Oliveira; e “A extração dos dias” (2025), de Cláudia Roquette-Pinto. Diante disso, pode ser um momento oportuno para estudos críticos efetuarem balanços da safra.
A nova obra de Fabrício Marques, em particular, anarquiteta alternativas temporais. Longe de uma coletânea convencional, aglomera composições originais, reformulações e agrupamentos antes imprevisíveis de poemas; traz paratextos de Alícia Duarte Penna, Edimilson de Almeida Pereira e Ricardo Aleixo; e repensa a si por meio das montagens cinematográficas das seções. Frente aos acervos migrantes, a antologia também pode ser lida como projeto autoral e inédito. Esquecimentos, lembranças e talvez recordações inventadas tecem passados – retratos subjetivos e mobilistas do presente.
Na primeira estrofe de “Totem para o Homo Zapping” está caracterizada essa estética zapping do sujeito poético marquesiano:
“Acordo João, vou à feira João, passeio João
mas João até certo ponto:
é só sair para o olho da rua e já me chamo Násser.
Conto histórias, manobro vocábulos
e logo me chamam Heródoto.
Sou Heródoto até me cansar.
Das oito às nove sou Mwaka
e na hora seguinte dou expediente como Zanchi.
Saio à esquerda à caça de frutas – de preferência vermelhas.
Descanso no parque como Chang,
sou Chang de sobreaviso.
Entro no trabalho e meus colegas me cumprimentam:
“Olá, Gorki; tchau, Gorki”.
Na hora do café a atendente me reconhece como Xerxes.
O mercado se inquieta, a Bolsa oscila ao saberem que sou Zeki.
Às seis da tarde, horário de Brasília, me despeço como Ximenes.
Estranho os homens que atravessam a existência carregando o um só nome.
Frequento os bares contando façanhas, agora me chamo Baltazar.
O Corvette sibila no asfalto.
Luzes grátis e alegres piscam à distância,
luzes alegres e grátis acenam pra mim (me chamo Raoni)”.
Não nos percamos, leitor: Fabrício Marques é João Násser Heródoto Mwaka Zanchi Chang Gorki Xerxes Zeki Ximenes Baltazar Raoni e outros e outros e outros. Realiza um verdadeiro “zapping”. O termo vindo da língua inglesa (“to zap”) está ligado ao universo televisivo do controle remoto, mas não somente a ele. Designa a mudança rápida de canais. Transposto para a poesia, expressa o salto de identidades e o deslizamento fragmentário do sujeito. Ou seja: o eu lírico aqui zapeia, fica se multiplicando, tende a se tornar outros, a criar espécies de alteridades líricas.
Em “Fora do alcance da memória” e com a rearticulação das reminiscências, despontam temáticas como tradição do sujeito fragmentado, memória, metalinguagem, intertextualidade, melancolia, amor, elementos corpóreos, Minas Gerais e ancestralidades afro-brasileiras. Predomina a variabilidade formal: do poema-piada ao longo poema meditativo, de versos métricos a opções melódicas, de imagens que convocam Federico Fellini e diagramações que exploram o espaço em branco da página a conceituações abstratizantes. Na pluralidade de mundos possíveis, ademais, há convergências para ontologias religiosas e para afastamentos céticos. A perspectiva política oscila, mas não raro se revolta, na fúria da mais justa ira, contra o desconcerto do mundo.
Assim Fabrício Marques se inscreve na linhagem do sujeito lírico multi/despersonalizado. Consoante a isso, ecoam em sua lírica, de maneira mais próxima, Leminski e Drummond. São notáveis também os convívios com poesia portuguesa (Sá-Carneiro, Pessoa), francesa (Baudelaire, Rimbaud), estadunidense (Whitman, Dickinson, Pound, Eliot) e afro-mineira (Milton Nascimento, Adão Ventura, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo).
Além dos diálogos, “Fora do alcance da memória” lembra das coisas que ninguém viu. Revê a vida inteira – fragmentada. Um convite para perceber uma poética batendo mais forte pela alteridade.
RAFAEL FAVA BELÚZIO é formado em Letras (UFV) e Filosofia (UFMG), com mestrado e doutorado em Estudos Literários (UFMG). Analisa tradições do eu lírico fragmentado no livro “Quatro clics em Paulo Leminski” (Ed. UFPR, 2024). Atualmente é pesquisador IFES/FAPES.
“Resposta a estímulos”: o livro nas palavras do autor
Fabrício Marques
Especial para o EM
Certo dia, no ensino fundamental, li pela primeira vez com atenção um poema escrito no século 18, o XCVIII, do Cláudio Manuel da Costa, aquele que começa com “Destes penhascos fez a natureza”. Esse soneto provocou uma revolução interna em mim, me apresentando para um mundo que até então desconhecia. A partir daí, fui conhecendo poemas e poetas, e percorrendo um lento aprendizado sobre a linguagem poética – mergulhando, também, na música e no cinema.
Esse livro, “Fora do alcance da memória”, é o resultado de uma parte desse percurso, no último quarto de século, reunindo 85 poemas distribuídos em seis seções. Entendi que todo poema é a resposta a um estímulo, seja do mundo exterior ou do mundo interior, e que é importante entender o que é que nos estimula, diante do excesso de tudo que vivemos e das informações que chegam até nós.
Os poemas deste livro nasceram daqueles estímulos que julguei importantes: os encontros e desencontros com as pessoas, o cotidiano violento e angustiante, as imposturas, os conflitos, a utopia, o mundo e Minas, o diálogo com outros poetas, artistas e amigos. Por exemplo: uma tarde o poeta Francisco Alvim esteve em Belo Horizonte e eu e o jornalista João Pombo Barile almoçamos com ele. Na conversa, falamos do Brasil e da “vida danificada”, de que fala Adorno. Essa conversa levou ao poema “Na encruzilhada”.
Se Rimbaud escreveu que “Je est un autre”, em “Fotografias” – um poema que não está no livro – está dito que “O outro é um eu”. Então, se há algo em comum em todos os poemas, seria essa tomada de posição de colocar a alteridade em primeiro plano. No nível da linguagem, isso se efetiva com uma poética de ecos, que remete a “eu” (e um “outro!) fragmentados.
“Fora do alcance da memória”
De Fabrício Marques
Martelo Casa Editorial
208 páginas
Lançamento neste sábado na Quixote Livraria e Café (R. Fernandes Tourinho, 274, Savassi), das 14h às 17h.
Poemas selecionados
“Êxodos”
vá para o ardor que te adense
vá para o salto que te sacuda
vá para o passado que te pertence
vá para o ruído que te restaure
vá para o frêmito que te festeje
vá para o vértice que te vasculhe
vá para o crepúsculo que te carregue
*
“Mais-valia”
Esses homens de pé,
ao longo de geleiras indestrutíveis,
repetem sem cessar suas certezas
também indestrutíveis.
O carro vale mais que a sinfonia.
A faca vale mais que a poesia.
As ações na bolsa valem mais que as nuvens.
O míssil vale mais que o cacho de uva.
E se o compositor diz que
a coisa mais certa de todas as coisas
não vale um caminho sob o sol,
eles não têm a menor ideia
do que o compositor está falando.
E seguem solenes, solenes
sob a luz severa, escolhendo o carro, a faca, a bolsa e o míssil.
Mas eu escolho ser a chuva
que lentamente dissolve,
fibra por fibra,
as geleiras seculares
*
“Ficando tarde”
Estou ficando tarde.
E o tempo vai carpindo antes do tempo
rugas de cansaço e lucidez.
Com ar de melancolia
(estou ficando tarde)
percorre o rosto um sorriso.
As horas amarelam, se gastam
como quando a vida arde
– ó albor – na pele, sem aviso.
*
“Lagoa”
Pampulha. Pampulha. Pampulha.
Voa à deriva a ave sim vermelha
à esquerda de quem tanto olha
pois tanta maravilha é quase falha.
Longe, ao que parece, a lua brilha.
Na superfície da lagoa mexem-se folhas,
e agora é que no lado oposto mergulha
a ave, distraindo quem não percebe
o discreto gesto de adeus dos solitários
que se atiram em suas velhas águas.
*
“Esgotados”
Meus livros estão esgotados.
Meus tios e tias, meus primos e avós estão esgotados.
Meu melhor amigo está esgotado.
Meu cachorro está esgotado.
Eu mesmo estou esgotado.
Sentado no sofá,
com as quatro patas de fora
e estrias à mostra
o amor está definitivamente esgotado.
Decido então pegar meus livros,
meu cachorro, minha família,
o amor e meu melhor amigo
e partir para o Mundo Novo.
Chegamos em festa
e sugerem um show mais à noite.
Pegamos a Via Expressa e topamos com dezenas de fãs
do lado de fora no portão principal.
Todos esperam, presumo, com ingressos esgotados.
Na volta, placas e setas indicam que devemos nos apressar
pois as mesas estão fartas
e os caminhos definitivamente esgotados.
*
“Minas”
Nuvens, montanha
Estação de trem desativada
O progresso bem ali na esquina
Tempos que correm pelo mesmo trilho
No outono, esperar pelo inverno
No inverno, esperar pelo outono
As nuvens sempre têm razão
A montanha liberta
*
“Só um”
sou só um
a imaginar
azul
o silêncio
da aurora
