Salvador, Bahia, fim do século 16. No cenário paradisíaco dos trópicos, com a economia movida pela cana-de-açúcar, um jovem recém-saído do colégio dos jesuítas canta, em versos, seu amor pelas irmãs Correa, ambas cortesãs, Beatriz e Magdalena. Mas nem tudo era tão doce como melado. Em tempos do Santo Ofício, o poeta fica em maus lençóis: preso, tem seus escritos sequestrados em 1592 e a vida virada do avesso pela implacável Inquisição. Mais de 400 anos depois, os poemas inéditos de Bartolomeu Fragoso, português de Lisboa que chegou a Salvador aos 13 anos, chegam aos leitores em “O cancioneiro das Baldaias – Sete sonetos jocosos e uma balada” (Chão Editora), organizado pela pesquisadora e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Sheila Hue, também autora do posfácio.
O conteúdo da primeira obra de poesia laica e profana do Brasil foi encontrado por Sheila Hue nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa. Estava costurado com o processo inquisitorial de Fragoso, sendo, portanto, um raríssimo espécime bibliográfico. “Fruto da vida boêmia na cidade e destinado ao entretenimento, o panfleto provavelmente circulou em Salvador em cópias manuscritas”, observa a historiadora.
Na sua composição, a obra tem seção inicial de sete sonetos jocosos, seguida de uma balada, também cômica. Tendo vivido grande parte de sua vida no Brasil, o autor transforma a tradição poética europeia a partir de sua vivência na Bahia açucareira e mescla “vetustas metáforas petrarquistas à experiência colonial de chupar cana”. Assim, sua amada é “fresca mais que cana”, em vez de “mais branca que a neve”. Mais tropical, impossível.
PESQUISA
O ponto inicial de Sheila Hue para conhecer o jovem poeta foi a leitura de “Confissões da Bahia”, de Ronaldo Vainfas. Ela explica: “Ali achei, pela primeira vez, o Bartolomeu Fragoso. Era um dos acusados pela Inquisição, durante a primeira visita do Santo Ofício ao Brasil, e um dos leitores do livro proibido ‘La Diana’. Me intrigava um livro complexo e erudito ser lido por tantas pessoas em vários lugares da Bahia”. Continuando a investigar, encontrou dois artigos de Pedro Villas Boas Tavares, da Universidade do Porto, um deles sobre “os desconhecidos versos de Bartolomeu Fragoso”. Pela primeira vez, leu alguns sonetos do jovem poeta.
Na sequência, Sheila Hue folheou o processo da Inquisição. “É uma espécie de maço encadernado, com todos os papéis das denúncias, confissões, interrogatórios, sentenças, abjurações etc., ou seja, toda a documentação gerada ao longo do processo movido pelo Santo Ofício contra o jovem poeta”.
A pesquisa que resultou no livro demandou anos, sendo um deles dedicado à edição. “O trabalho tem a ver com o que venho estudando há muito tempo: a poesia escrita em português durante o século 16. O Bartolomeu foi realmente uma grande surpresa”. Na busca pelas informações, Sheila Hue foi algumas vezes a Lisboa. “Mas a principal viagem são as coisas que aparecem no percurso, as bibliotecas coloniais, os leitores daquela época, todo tipo de gente, os indivíduos, as relações entre eles e a circulação dos livros, a música que permeava o uso desses livros, as farras, as cortesãs, a poesia europeia sendo adaptada ao cenário colonial da monocultura do açúcar”.
VIDA CULTURAL
Preso juntamente com seus papéis, ao final do processo inquisitorial, Bartolomeu Fragoso foi degredado para sempre da Capitania da Bahia. “Banido da cidade no auge de sua produção, não deixa traços que possamos recuperar, mas, com seu pequeno livro milagrosamente preservado, nos dá uma pista de um mundo de músicos, leitoras e leitores, livros proibidos, bibliotecas particulares, poetas, mercadores e administradores da Coroa. Todos envolvidos na vida cultural de Salvador na última década do século 16”.
“O CANCIONEIRO DAS BALDAIAS: SETE SONETOS JOCOSOS E UMA BALADA”
De Bartolomeu Fragoso
Organização e posfácio: Sheila Hue
Chão Editora
168 páginas
R$ 54 (livro físico)
“A Inquisição foi ávida por detalhes das práticas sexuais dos habitantes da Bahia”
Entrevista/ Sheila Hue
(historiadora e pesquisadora)
Imagino a emoção da senhora ao encontrar, nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, o manuscrito de Bartolomeu Fragoso. A senhora “achou o que não procurava” ou já pesquisava a vida e a obra do jovem poeta?
Comecei a entrar nessa pesquisa lendo as “Confissões da Bahia”, de Ronaldo Vainfas, e ali achei pela primeira vez o Bartolomeu Fragoso. Ele era um dos acusados pela Inquisição, durante a primeira visita do Santo Ofício ao Brasil, e um dos leitores do livro proibido “La Diana”. Me intrigava um livro complexo e erudito ser lido por tantas pessoas em 1591 em vários lugares da Bahia. Conversei sobre isso com o Ronaldo Vainfas em uma viagem de carro de BH a Diamantina para um Festival de História que, aliás, foi ótimo. Continuei investigando e encontrei dois artigos que foram fundamentais, de Pedro Villas Boas Tavares, da Universidade do Porto, um deles sobre “os desconhecidos versos de Bartolomeu Fragoso”, onde, pela primeira vez, li alguns sonetos do jovem poeta e tomei conhecimento da existência deles. Quando folheei o processo da Inquisição, que é uma espécie de maço encadernado, com todos os papéis das denúncias, confissões, interrogatórios, sentenças, abjurações etc., ou seja, toda a documentação gerada ao longo do processo movido pelo Santo Ofício contra o jovem poeta, vi essas páginas diferentes das outras.
O que continham essas páginas?
Eram os papéis roubados da mesa de Bartolomeu Fragoso quando ele foi preso. Rascunhos, folhas soltas, mas também um livrinho manuscrito, muito caprichado, em um excelente papel e letra cuidadosa, decorado. Um cancioneiro poético autógrafo, ou seja, copiado pelo próprio autor. Uma raridade no mundo dos livros. Podemos imaginar que, naquela época, em Salvador, haveria outros semelhantes, folhetos manuscritos poéticos, humorísticos, para serem lidos e cantados pela cidade. O do Bartolomeu foi o único que chegou até nós. É uma espécie de panfleto poético que traz à luz duas jovens cortesãs letradas, um jovem recém-saído do colégio dos jesuítas, licenciado em Artes, e todo o mundo que os cercava, de diversão e arte.
Quando ocorreu essa descoberta? A partir do achado, quais foram seus passos? Pensou de imediato em publicar?
Foi durante a pandemia e o governo Bolsonaro, folheando os processos digitalizados na Torre do Tombo. Me pareceu uma correlação interessante a destruição que se via do mundo da cultura e da educação e a ação inquisitorial de que Bartolomeu Fragoso e todos os agentes de um ativo grupo cultural, liderado pela senhora Paula de Sequeira, foram vítimas. Todos foram denunciados, processados e presos, e essa célula poético-musical dissolvida. Comecei a pensar em publicar o livrinho a partir de um convite para um congresso, com o tema poesia e censura. Fui entendendo melhor a importância do manuscrito poético de Fragoso. A Chão abrigou a ideia, editora onde eu e Vivien Kogut já tínhamos publicado um livro, “Ingleses no Brasil”. Fui algumas vezes a Lisboa. Mas a principal viagem são as coisas que aparecem no percurso, as bibliotecas coloniais, os leitores daquela época, todo tipo de gente, os indivíduos, as relações entre eles e a circulação dos livros, a música que permeava o uso desses livros, as farras, as cortesãs, a poesia europeia sendo adaptada ao cenário colonial da monocultura do açúcar.
O que significa “Cancioneiro das Baldaias”? Quanto tempo trabalhou até editar a obra?
Trabalhei cerca de um ano para editar o livro, mas a pesquisa durou anos, e, na verdade, tem a ver com o que venho estudando há muito tempo, que é a poesia escrita em português durante o século 16. O Bartolomeu foi realmente uma grande surpresa. Como o livrinho não tem título, o intitulei “Cancioneiro”, pois ele é uma coleção de poemas, e “das Baldaias”, porque é assim que ele chama as duas irmãs Correa, cortesãs, Beatriz e Magdalena, baldais, baldias, sem dono.
Este é o primeiro livro conhecido de poesia profana, escrito no Brasil, de que se notícia, certo? Do que fala exatamente o jovem poeta em 1592?
Não temos conhecimento de outro livro de poesia laica, manuscrito ou impresso, escrito no Brasil durante o século 16 (a “Prosopopeia”, de Bento Teixeira, provavelmente foi escrito no Brasil, mas publicado em Lisboa em 1601). José de Anchieta escreveu poesia religiosa, que circulava no Brasil em folhas soltas e manuscritos, e no final da vida foi contemporâneo do nosso jovem poeta preso pela inquisição. O livrinho de Bartolomeu nos mostra que havia, naquele período, poesia musical, irônica, debochada, e ao mesmo tempo cheia de citações letradas, ditados e dizeres. O livro do Bartolomeu, como disse, é uma amostra dos diversos outros que deveriam correr de mão em mão naquele momento, onde todo mundo tocava um instrumento, cantava. Era uma sociedade onde havia muita festa, muito canto, declamação, muitas oportunidades para cantores, poetas e instrumentistas. Bartolomeu concentra o seu livro em duas irmãs portuguesas radicadas em Salvador, Beatriz e Magdalena Correa. Elas são moças educadas, letradas, e parecem participar do jogo poético em torno da anunciada volta delas para Portugal. Todo o livro é uma tentativa, cômica e debochada, de convencê-las a não viajarem, a permanecerem na Bahia, e a amarem o autor dos versos, que quer igualmente o amor das duas.
O livro nos conduz a Salvador, Bahia, no século 16. Como um jovem português vê a cidade, as pessoas, o “novo mundo”?
Ele parece completamente integrado. Chegou a Salvador com uns 13 anos, para morar com o tio Gaspar, que era rendeiro de um engenho de açúcar. Bartolomeu faz parte da elite colonial, é próximo de várias figuras do comércio internacional de açúcar, que liga Lisboa, Salvador, Pisa e Antuérpia. Ele é próximo do bispo, como várias pessoas de suas relações. Toca e declama no salão da senhora Paula de Sequeira, também processada, entre outras coisas, por ler o livro proibido “La Diana”. Está preparando uma peça musical para um evento em uma conhecida igreja, a pedido do “mordomo”. Traduz “O livro de Tobias”, da Bíblia, em voz alta para que um antigo capitão de Itamaracá, seu amigo, copie no papel. No que vemos em seus escritos, percebemos que ele é uma figura de Salvador, atuante na vida cultural local, autor de jogos poéticos e musicais que parodiavam a alta poesia. Vemos um pouco das diversões das tardes e noites de Salvador.
Bartolomeu Fragoso foi preso e julgado pelo Santo Ofício, e teve seus papéis sequestrados. Como os manuscritos “sobreviveram”?
Os papéis apreendidos juntamente com o poeta foram preservados até nossos dias porque permaneceram presos durante séculos dentro do processo da Inquisição, no meio de todos aquelas denúncias e confissões, e guardado em um arquivo estatal, ao lado dos demais processos inquisitoriais, que às vezes têm surpresas dentro deles. Ou seja, o livro de Bartolomeu Fragoso chegou até nós porque foi costurado e guardado dentro do processo contra seu autor, e levado de Salvador para Lisboa, como a prova de um delito.
Quais as principais características dos versos do poeta? Vê atualidade em seus escritos?
O jovem Bartolomeu teve uma educação humanística de alto nível no colégio dos jesuítas em Salvador, que era uma verdadeira universidade. Absorveu todos aqueles autores clássicos e contemporâneos lidos naquele momento. As rimas, o vocabulário, as metáforas, os modos, estava com tudo isso na cabeça. Escreve sonetos debochados imitando o modelo de Petrarca e outros, como Camões. Sua pena atua como um laboratório de colagem e atualização dos versos que ele sabia de cor, atuando naquela luz fantástica da cidade de Salvador. Não há muita atualidade nos versos do poeta, ele está em diálogo estreito com os poemas que lia e estudava. Mas é interessante observar como ele consegue tropicalizar metáforas muito incrustradas, renovando-as completamente a partir da paisagem colonial. Assim, sua amada, em lugar de mais branca do que a neve, é mais fresca que a cana, mais verde que os canaviais. Podemos ver atualidade na forma como foi preso pela Inquisição, que perseguiu e dissolveu uma ativa célula cultural em Salvador. Tudo isso graças a um homem que extrapolou as ordens que tinha recebido de Lisboa e foi muito mais persecutório e intolerante do que havia sido determinado, o visitador Heitor Furtado de Mendonça, um verdadeiro tirano. Bartolomeu Fragoso conseguiu ser solto na Bahia, com penas relativamente leves, mas seu colega mais velho, Bento Teixeira, não teve a mesma sorte, foi preso e levado para os cárceres de Lisboa.
Acha que ele desafiou a Inquisição com versos profanos? Na verdade, por que ele foi preso e julgado pelo Santo Ofício?
Ele nunca poderia imaginar que seus versos seriam lidos pelo visitador do Santo Ofício, que inclusive declamou alguns diante de Bartolomeu durante o interrogatório. Isso acabou acontecendo porque o prenderam e levaram também os papéis que ele tinha em casa com ele. O que não é muito comum, não vemos isso nos outros processos do Brasil. Bartolomeu é principalmente acusado por dizer blasfêmias (como chamar uma joia cara de “negra cruz”), por elogiar em seus versos damas “públicas” dizendo que elas eram “dignas”, por traduzir a Bíblia em português (o que era proibido), e por ler e copiar a novela pastoril “La Diana” que, na verdade, era usada como um “songbook”, pois seus poemas eram repetidamente cantados. Foi preso também por sua família ser “tida por” cristã-nova, ou seja, por supostamente serem judeus conversos ao catolicismo, um dos principais alvos da Inquisição portuguesa. Estado que ele nunca admitiu. Mas tanto Bartolomeu Fragoso quanto Bento Teixeira se moviam na esfera dos cristãos-novos em Salvador, Bahia.
O que mais lhe chamou a atenção ao ler os versos de Bartolomeu?
A piada, o deboche erudito, o humor, achei uma delícia de ler. Os sonetos têm um ar pomposo, mas é tudo paródia, brincadeira de estudante com as matérias que estuda, com os livros que lê, com a alta poesia renascentista. A balada é uma colagem de dizeres, provérbios, trechos de livros impressos versificados, uma grande brincadeira, feita para a diversão em grupo. Foi isso que me chamou a atenção também, a característica musical dos versos, que parecem ser feitos para performance, para serem declamados, cantados, e toda a forte vida cultural em Salvador naquela época. Ou seja, não havia apenas os versos religiosos de Anchieta (que são, aliás, belíssimos, sou uma grande fã do teatro de Anchieta). Havia todo um outro mundo que não havia chegado até nós, até o Bartolomeu ser finalmente solto em um livro impresso pela Chão e poder ser lido pelos brasileiros. Esse livro é um resgate de um autor de tempos bem remotos que andava bastante esquecido.
Nos versos, ele mescla o jeito de viver na colônia aos modos da corte portuguesa? Sentia-se mais livre no Brasil?
O mundo juvenil dos estudantes me parece que era bem semelhante em Portugal e na colônia. Por exemplo, estudantes da universidade de Évora fizeram uma paródia ao canto I dos “Lusíadas” ao “de-vinho” (e não ao divino, como se costumava fazer). Assim, “As armas e os barões assinalados” viraram “Borrachas e borrachões assinalados”, ou seja, bêbadas e bêbados assinalados. Os poemas de Bartolomeu deixam ver essa vida de boemia, festas, jogos amorosos, brincadeiras, piadas, paródias. Vemos neles também os amores do jovem poeta pelas duas irmãs Correa, que aparentemente não queriam dar os seus “favores” para ele, coisa que ele pede repetidamente em seus versos. Nas “Confissões da Bahia”, onde se encontram publicados alguns dos depoimentos dados ao Santo Ofício, podemos ver como a vida era livre: Paula de Sequeira se encontrava com a amante em casa, à tarde, para beber vinho e namorar, meninos se divertiam sexualmente em camas em que dormiam muitos, e por aí vai. A Inquisição foi ávida por detalhes das práticas sexuais dos habitantes da Bahia. No entanto, os versos de Bartolomeu não são obscenos. Ao contrário, são “altos”, como se dizia, mas fazem piada de tudo. n
