Rogério Faria Tavares
Especial para o EM
Quatro décadas separam a estreia de Edimilson de Almeida Pereira em livro – com os poemas de “Dormundo”, surgido em 1985, pela Editora d’lira – da bela caixa contendo os dois volumes de “Poesia & Agora”, lançados nesta segunda quinzena de outubro de 2025 pela Mazza Edições, numa iniciativa que reúne as vinte e oito obras poéticas vindas a lume até 2017. A coletânea deixou de fora aquelas dedicadas às crianças e aos jovens, bem como “Melro”, “O som vertebrado” e “A morte também aprecia o jazz”, aparecidos em 2022 e 2023.
No esmerado projeto gráfico, Mário Vinícius procurou reverberar alguns dos aspectos que mais lhe chamam a atenção na poesia do autor, que ele qualifica como crítica, combativa, aguda, cortante e expressiva, sem nunca perder a elegância. A família de fontes ‘Figural’, um resgate mais recente do trabalho de Oldrich Menhart, tipógrafo tcheco expressionista, foi a escolhida para as lombadas e as capas, que acolhem o preto, o vermelho e o amarelo como as cores principais, gravadas sobre uma foto de Edimilson, clicada, para cada um dos tomos, por Prisca Agustoni (no primeiro, aparece a imagem do ‘artista quando jovem’; no segundo, uma imagem mais atual).
Postos na ordem em que foram publicados, os livros merecem refinada análise no posfácio assinado por Carolina Anglada de Rezende, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), ao qual sucedem informações sobre o percurso biográfico de Edimilson e a sua bibliografia completa. A lista contempla ficção (romance) e a sua importante obra ensaística, com destaque para a que produziu em parceria com a professora Núbia Pereira, com quem percorreu, por muitos anos, o interior do estado, onde o poeta se fez etnógrafo. Dessa experiência, resultaram estudos fundamentais sobre os mineiros, como “Assim se benze em Minas Gerais”, “Negras raízes mineiras: os Arturos” e “Mundo encaixado: significação da cultura popular”.
Nascido na zona ‘semi-rural’ de Juiz de Fora, em 1963, Edimilson de Almeida Pereira volta e meia conta ter passado a infância no meio das culturas populares e entre distintas etnias e confissões religiosas, elementos que permeiam sua obra. Ingressando, aos vinte anos, no curso de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), começou a militar, na mesma ocasião, no movimento negro, e a participar do movimento literário e cultural ‘Abre alas’, em que conviviam, em torno da poesia, gente ligada ao jornalismo, à música e às artes visuais. São de sua geração nomes como Luiz Ruffato, Iacyr Anderson Freitas, Fernando Fábio Fiorese Furtado e Júlio Cesar Polidoro. Leitor voraz, desde novo bebia de fontes como Drummond, Bandeira e João Cabral, sem esquecer os concretistas - com eles dialogando ao longo de sua carreira. Depois de lecionar em escolas públicas e particulares de sua cidade, tornou-se, em 92, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na UFJF, de onde se aposentou, recentemente, na condição de titular. Dedicado à vida acadêmica, ao longo do tempo tornou-se mestre e Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-doutorado pela Universidade de Zurique. Sua atividade docente, no entanto, nunca o afastou da literatura, que o fez vencer importantes prêmios, como o Oceanos, em 2021, pelo romance “O ausente”, e o São Paulo de Literatura, no mesmo ano, por “Front”.
Na leitura das quase duas dezenas de livros que formam “Poesia & Agora”, os leitores acabam identificando os temas que Edimilson seguidas vezes explorou, bem como as características mais recorrentes de sua escrita, algumas presentes desde “Dormundo”, como a perspectiva filosófica sobre a realidade e o olhar o mundo de um determinado ponto de vista político, mais à esquerda. O livro de estreia igualmente já revela a ‘voz coletivizada’ que fala nos poemas, representada por Antônios, Josés e Terezas, assim como anuncia o interesse na investigação das complexidades do cotidiano, em visão que se recusa a simplificá-lo. A relação do sujeito contemporâneo com a chamada ‘tradição’ é outro assunto sempre prioritário para o autor, que concebe o termo como portador de vários sentidos. Tradição, para ele, é manutenção, mas é, ao mesmo tempo, inovação. É permanência e modificação. É referencial, mas não é imutável.
Poeta sofisticado e engenhoso, Edimilson de Almeida Pereira ainda apresenta, na arquitetura de seus textos, uma diversidade de sujeitos poéticos, como ele mesmo gosta de elencar. Há o que enfatiza a musicalidade, a sonoridade das palavras e o ritmo do texto. Há o que viajou, como antropólogo, por todos os cantos de Minas, embebendo-se de suas ‘ruralidades’, de uma paisagem humana e natural que é sólida, que muda pouco, ou muda lentamente, mas que, paradoxalmente, não deixa de experimentar um processo de transformação permanente, gerando mundos novos e linguagens distintas. Há o sujeito poético que mergulha no mundo das tradições afro-diaspóricas, sobretudo do meio rural, interessado nos ritos, nas cerimônias e nas práticas cotidianas de que elas são compostas, atraído por sua linguagem rica e extremamente metafórica. E há, finalmente, o sujeito atordoado com o aviltamento da linguagem, com a fragmentação do humano, com a ascensão das formas de violência, o sujeito ferido, que se depara com cicatrizes profundas em si e no outro, um sujeito, por tudo isso, meditativo e reflexivo.
A inspirar todos eles, o autor que entende a poesia como instrumento de escavação do real e que defende a sua autonomia criativa radical, vendo-a muito mais como um lugar de proposição da dúvida que da afirmação de certezas, preferindo erguê-la como algo que gere menos conforto – e mais inquietação – na apreensão do mundo, como é possível notar em “Oráculo”, do livro “E”, de 2017: “O que é do meu entendimento/se enerva, pulsa/rompe a saliva/ Fora de si se atreve:/expulsá-lo é colocá-lo dentro da vida./Esse o roteiro, a promessa./Colocar-se vivo/onde nos imaginam a ferros.”
Em depoimento ao Pensar, Edimilson de Almeida Pereira comenta o lançamento de “Poesia & Agora”
Os méritos dessa edição (“Poesia & Agora”) são de Maria Mazarello Rodrigues, que a tornou possível com o apoio de Pablo Guimarães, Mário Vinícius e Bruno D’Abruzzo. O sonho de Mazarello (de colocar ordem no que será sempre a desordem do autor) e a preparação editorial deram aos livros a oportunidade de regressarem ao público como se em primeira edição. Daí, a ideia de fazer da caixa e das capas uma cortina intensa e solar que contrasta com a nudez dos poemas, em luta ou diálogo com a página. O título da reunião “Poesia & Agora”, se lido de maneira afirmativa, nos faz pensar no esforço para organizar num “aqui/agora” o que foi presenciado no caos-mundo ao longo do tempo. E não esteve sozinho, o poeta: outros viventes e não-viventes, muitos lugares e acontecimentos – tudo o que foi real ou imaginado se coloca à vista do leitor. O que se celebra, então, é a permanência de algo, apesar das perdas. Por outro lado, a pausa e a interrogação subliminares no título (poesia, e agora?) insinuam que não se deseja, nem se vive o suficiente. Depois de tudo e de tanto, o que é preciso ou possível fazer no caos-mundo? Essa pergunta indica que nem a poesia, nem os leitores, nem o poeta podem se retirar da arena. Ela perpassa toda a reunião, de “Dormundo” (1985) e até “Qvasi” (2017). O neologismo do primeiro livro pressupõe o quanto o bem e o mal nos assolam como dualidade insolúvel. A metalinguagem do segundo, por sua vez, como a poesia ao lidar com esse enigma nos revela como um “um teatro/ de sombras.”
O poeta da palavra-mundo
Michel Mingote
A editora Mazza acaba de brindar o seu público com o fundamental box “Poesia & Agora”, antologia que compila 28 obras do poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira. Reunindo produções do autor entre os anos de 1985 e 2017, o livro recupera títulos fora de circulação, fixa a versão final dos textos e também apresenta ao leitor uma lista contendo a obra ensaística individual do autor, além de elencar os diversos ensaios produzidos sobre a sua obra poética e ficcional.
Autor de uma vasta e importante obra crítico/literária, o poeta apresenta ao leitor uma poética singular e múltipla, que atravessa diversas temáticas como aquelas advindas da diáspora africana, das tradições afro-religiosas, dos processos de sociabilização do negro hoje, das inquietações filosófico-existenciais, a abertura à palavra-mundo, ao pensamento global, em um atrito constante entre o local e o global, o nacional e o transnacional, o aqui e o alhures, sempre atenta aos múltiplos diálogos intertextuais e interartísticos.
“Poesia & Agora” resgata livros essenciais e incontornáveis do autor como “Homeless” (2010), em que a diáspora negra é apresentada através do imaginário do Atlântico negro em sua forma sensível. Atravessando tempos e espaços díspares, o poema começa com uma cena de pesca em Tsolike, Lesoto, na África austral, aborda a passagem do meio até chegar na contemporaneidade, por exemplo, na vida do imigrante Khaleb “tão íntimo das rodoviárias”. Outra reedição que merece destaque é a do livro “Caderno de retorno” (2003), que propõe um diálogo direto com o seminal “Diário de um retorno ao país natal”, de Aimé Césaire, onde surgiu pela primeira vez, na literatura, o termo negritude.
Assim, o leitor terá a oportunidade de ter acesso a um imaginário poético em constante expansão, aberto às diversas manifestações culturais e aos diversos diálogos transnacionais e transculturais, modulados na palavra-mundo do autor.
MICHEL MINGOTE é professor adjunto do Departamento de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Sobre o autor
Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz de Fora (MG) em 1963. É professor de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem livros publicados nas áreas de antropologia social e literatura infantil e infantojuvenil. Seus livros de poesia mais recentes são “Relva” (Mazza Edições), “Guelras” (Mazza), “E” (Patuá), “Qvasi – segundo caderno” (Editora 34) e “Poesia + antologia 2015-2019” (Ed. 34, São Paulo, 2019). Sua obra de ficção inclui os livros “Front” (Nós Editora), “O ausente” (Relicário) e “Um corpo à deriva” (Edições Macondo).
“Poesia& Agora”
De Edimilson de Almeida Pereira
Volume 1: 840 páginas.
Volume 2: 912 páginas.
R$ 294,00
lLançamento com palestra e sessão de autógrafos na próxima quinta-feira (30/10), às 19h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia
1466 - Lourdes)
Entrada gratuita
Poemas selecionados
(De “Poesia & Agora”, Volume 1)
“Povoado”
(De “Dormundo”, 1985)
Nos fundos do país mora uma sombra,
não vem cá: sombra de escaler e anta,
projeto de estrada inútil, antanha.
Imagino pernas nessa rua delimita,
Sombra alguma ponta no igapó.
País perdido ido ido
mando tiro tiro tiro nada
depois sombro malassombro.
*
“As águas”
(De “Livro de falas”, 1987)
A ponte que aproxima não está em nós.
Ouço os arcos quando curvam a tarde.
As pontes sobrevivem aos ossos
procurando a cabeça de um imenso peixe.
A ponte é quase a decisão dos olhos
Alimento enlameado e calmo.
As pontes atravessam as imagens.
“Curiangu”
(De “Árvore dos Arturos”, 1988)
Silêncio veio no
raio.
Os ossos voltados
para o mundo.
A família surgiu na
floresta rubra.
São pequenos de mãos
pequenas, adultos
antes do tempo.
Os meninos criaram
memória
antes de criarem cabelos.
*
“Jogadores”
(De “Bailo”, 1988)
O carteado desculpa
os viventes.
A polícia captura.
Um lance não esconde
a morte: expõe
à procura.
Os do carteado
fintam no escuro.
Tiros mitigam sob a luz.
*
“Livraria”
(De “Corpo imprevisto”, 1989)
Não há temor pelo desaparecimento
quando lemos Drummond
numa antiga edição.
O poema murmura de coração novo.
*
“Passagem”
(De “Blanco”, 2003)
Para os que se buscam não há muito
além do livro entre sirenes e frutos.
Não existem alarmes, telefones, nem
Janelas se um no outro se mira.
O que vêem na paisagem ainda não sabe
a fome e se multiplica. O que esperam
gera inumeráveis perguntas. O desejo
tira o carro da garagem, ensina ao corpo
novas leituras. Para os que se buscam
resta um quarto de hora a vida inteira.
Poemas selecionados
(De “Poesia & Agora”, Volume II, de Edimilson de Almeida Pereira)
“O passado monta o presente”
(De “Relva”, 2015)
não com esporas: os mesmos
olhos
sobre a noite, a noite mesma
quase humana.
O século monta uma terrina
de ossos
para guardar
a fúria de
quem se fez-refez e não sabe.
O presente não logra expulsar
essa mosca
azul. Veste-a por ser vespa:
um cálculo
que excede o tempo, o lucro,
o corpo. Montado
sobre a noite – um
fotógrafo – o século passado
é presente. Não com esporas,
não.
À francesa
sua roda monta
a quem lhe permite montar.
O século passado a noite
quase humana.
O passado monta o presente
com seus órfãos.
*
“Janela indiscreta”
(De “O, maginot”, 2015)
Antevejo o assalto
e a ventura
da sombra. Sua posse
tirada aos incautos.
Vejo sua face,
a ruga
que se funde ao laudo:
gesto ligeiro,
salto mortal.
Antevejo o espanto
e a fúria,
- não, a náusea
de quem de si foi levado.
Não em objetos
ou
na casa incendiada.
Mas em calos,
em bens
que se recupera e ainda
faltam,
sempre faltam.
“Náusea”
(De “Guelras”, 2016)
A luz atravessa o vidro, esbate na estante.
Ninguém estancou o próprio sangue
por isso, mas é certo
que algo se anuncia: rude e sem piedade,
rói a lombada dos livros.
Não lê os afazeres e a flora,
que entre pausas se insinua. Não esperemos
passeios na ilha
ou vistos de entrada.
O que se anunciou polidamente nos devora.
*
“Para dizer em casa”
(De “Guelras”, 2016)
Essa é a última noite para nasceres
outra filha ou filho.
Os que vieram e os que viriam,
Franzem suas dúvidas.
Selos da memória, eles se nutrem
Dessa concha,
Que ressoa um sinal extinto.
No entanto, teus ossos se equilibram
E medem o abismo.
É inevitável sucumbir à nuvem
E à febre, jamais à vitória dos execráveis.
Nessa noite – sem heranças,
todo itinerário é um rastro.
*
“Argumento”
(De “E”, 2017)
O que se come à mesa
Tem menos de matéria.
Tem algo da sintaxe
que devora a si mesma.
Algo do ritmo que o corpo
Aprende como se lesse.
À mesa da casa ancestre
a ausência põe sua mão
sobre o alimento.
À mesa, chão suspenso,
os presentes se põem
à prova, atentam para
o grão, a folha, os poros
- à mesa se traduzem
no corpo alimentado.
“Tudo o que foi
real ou imaginado
agora se coloca
à vista do leitor”
