“Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?” Os versos colhidos para a epígrafe de “Lavoura arcaica” por Raduan Nassar em “Invenção de Orfeu” (1952), de Jorge de Lima, podem servir de mote para pensar os cinquenta anos da estreia da narrativa nassariana; um modo de operar guiado pelo fervor. Combina com Raduan. 

Sedução


Foi por contágio a primeira leitura. O ano era 1995 em uma sala de aula do mestrado da UnB, diante da professora, tradutora e amiga Ligia Cademartori. Guiada pela paixão crítica da mestra (para ficar na expressão do escritor mexicano Octavio Paz, outro criador de peso lido naquela disciplina), segui o caminho em busca de um dos muitos livros que ainda tinha por ler. Comprado na Banca do Chiquinho, livreiro mais famoso da Universidade, o exemplar me deixou petrificada com o fluxo verbal delirante daquela história de uma família devorada por paixões e rancor. 


Meses depois leria “Crônica da casa assassinada” (1963), de Lúcio Cardoso, em associação imediata. Décadas passadas, hoje os exemplares-irmãos dividem a prateleira na estante de casa, afinados pelo barroquismo da linguagem e o tema da brutalidade dos afetos. O contato com esses textos pavimentou caminho para futuras leituras, como a dos romances de Milton Hatoum, com quem Nassar partilha a ascendência libanesa e a temática do lar em ruínas, além do lirismo evocativo de suas páginas. Juntos, os três autores integram a galeria da grande prosa brasileira dos últimos cem anos. Sobre Nassar, é bom saber que os anos fizeram bem: “Lavoura arcaica” é um cinquentão cheio de vigor.


Como se não bastasse, o escritor completa 90 anos em 27 de novembro. Nas datas redondas, seria importante ir além da purpurina do calendário oficial: tudo isso combina pouco com Raduan, avesso a noites de autógrafos, lançamentos e entrevistas. De costas para grande parte do burburinho da vida literária, o escritor nascido em Pindorama (SP) preferiu a vida rural e apostou na criação de galinhas, conforme afirmou a quem quisesse ouvir. 


Sobre o assunto, sempre é possível ir direto na fonte e ler “Mãozinhas de seda”, conto publicado na coletânea “Menina a caminho” (1997), que encena a lição dada por um patriarca a seu bisneto, em que o primeiro transmite noções de convívio baseadas na troca de favores: “o negócio é mesmo fazer média, o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página”. Junto à “Teoria do medalhão” (1881), célebre conto de Machado de Assis, a narrativa nassariana forma uma demolidora radiografia da cultura brasileira a partir das entranhas de sua elite. 

 

 

Selton Mello e Leonardo Medeiros em uma cena do filme "Lavoura arcaica", do cineasta Luiz Fernando Carvalho

Divulgação

Viço

O sétimo filho dos libaneses João Nassar e Chafika Cassis passou na juventude pelos cursos de Letras e Direito da USP, e acabou se formando em Filosofia na mesma instituição. Desde a publicação do primeiro romance pela José Olympio, ao longo do tempo foi lido por especialistas de grande sensibilidade, que vão de Marilena Chauí a Modesto Carone, Leyla Perrone-Moisés a Octavio Ianni, de Sarah Wells a Sabrina Sedlmayer, Masé Lemos e Analice Martins, entre muitos outros. A despeito da pouca presença no circuito literário, ao ganhar o Prêmio Camões de 2016, concedido pelos governos do Brasil e de Portugal, Nassar compareceu para receber a honraria em São Paulo no ano seguinte, manifestando-se contra o Governo Temer.

A vida rural marcou desde sempre a vida do escritor. Em 2011, doou a fazenda Lagoa do Sino, de 643 hectares, para a Universidade Federal de São Carlos, sinalizando o apoio público dado ao presidente Lula em artigo publicado na imprensa, em 2016.

É nessa ambientação que “Lavoura arcaica” encontra o tom narrativo, ancorada na casa de fazenda de uma família de ascendência árabe. Em torno da mesa, a hierarquia de seus membros, posicionados de acordo com uma rígida divisão dos afetos: à esquerda do pai, a mãe e os filhos André, Ana e Lula, as ovelhas tresmalhadas. Do lado direito, os filhos Pedro, Rosa, Zuleika e Huda, o braço ordeiro do grupo. Estruturado em duas partes, entre a longa “Partida” e o violento “Retorno”, o romance principia com parágrafos de alta voltagem narrativa, no “quarto-catedral” de uma pensão barata, quando André narra em primeira pessoa o embate com o primogênito Pedro, que viera convencê-lo a retornar para a morada familiar. Tempos atrás, o jovem partira sem maiores explicações, deixando todos perplexos, sobretudo a irmã Ana, por quem nutria uma grande paixão.

Nesse quadro, o avô árabe paira como figura austera, “(...) velho esguio talhado com a madeira dos móveis da família”. Fábula sobre o tempo e o modo de narrá­lo, o romance traz um personagem emudecido que materializa uma temporalidade suspensa, sempre a pronunciar o Maktub, “estava escrito”. No texto, a tradição oriental comparece no uso constante de provérbios e parábolas, em máximas de sentido prático comum ao grupo. Da parte do avô e do pai Iohaná, é preciso ensinar, doutrinar e convencer o grupo sobre as virtudes do trabalho e a necessidade da paciência na semeadura da terra (e da palavra). Dentro dessa dinâmica, André se vê oprimido pelo discurso da transmissão de valores.

Um dos momentos marcantes do livro surge no diálogo travado no retorno à casa, encenando as brutais diferenças com o pai: “– Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra”. O duelo dos debates antecipa o desfecho da obra, provocado pela revelação de Pedro de que André e a irmã teriam consumado o incesto - ao contrário da adaptação de Luiz Fernando Carvalho para o cinema, em 2001, a cena erótica não é figurada diretamente.

Nessa trama de afetos em constante definição de limites, a sensualidade do amor materno se prolonga na figura da irmã. O tom das relações familiares, sempre à beira do abismo, vai formando pares endogâmicos como aquele entre mãe e filho, pai e filha, Ana e André, e ainda o irmão Lula e André. Por trás da ordem prescrita pelo patriarca há todo um universo libidinoso prestes a entrar em erupção; desordem e obscuridade se encontram em cada fresta da casa, na palma de cada mão e no cesto de roupa suja vasculhado pelo narrador em busca do cheiro dos corpos.

Para convencer Ana sobre a intensidade de sua paixão, as promessas de André são inúmeras (amor, trabalho, dedicação, bondade) e surgem de um apelo de reintegração: “me ajude a me perder no amor da família com o teu amor, querida irmã, sou incapaz de dar um passo nesta escuridão”. Enquanto o narrador fundamenta seu mundo psíquico por meio da fala convulsa, a irmã se expressa com outros códigos. Dela não teremos nenhuma versão da história, a não ser por gestos e breves palavras pronunciadas ao longo do romance.

Em meio ao ambiente pastoral, na confraternização da pequena comunidade em homenagem ao retorno do filho, irrompe a violência. Na dança oriental executada sobretudo para André, Ana integra a linhagem de personagens femininas cuja sensualidade reprimida se manifesta pela linguagem corporal, encarnando uma espécie de feiticeira demoníaca que desencadeia a tragédia. Os pés em contato com a terra, o corpo febril, as mãos de cigana, tudo em sua figura atrai a ira paterna. A narrativa é interrompida no ápice, na cena da morte da personagem pela mão de Iohaná com golpes de alfange, e assistida por toda a família. Na catarse final, o patriarca poupa o filho e pune a filha, silenciada tanto pelo narrador, de forma simbólica, quanto na ação concreta do assassinato.

No estudo “Literatura, violência e melancolia” (2013), Jaime Ginzburg chama a atenção para a insistência da imagem da morte de uma mulher e na constituição de um homem narrador. Centrando a análise em romances como “São Bernardo” (1934), de Graciliano Ramos, “Grande sertão: veredas” (1956), de Guimarães Rosa e “Lavoura arcaica”, entre outros, o crítico identifica nessas obras a necessidade de “que uma mulher morresse para que um homem contasse uma história”, o que constituiria uma cena sacrificial que alavanca importante reflexão sobre o passado. Em “Lavoura arcaica” a tragédia tinge de sangue a todos os familiares, cumprindo a missão de vigiar os membros desgarrados desse clã.

 

Constância


“Lavoura arcaica” foi publicado em plena ditadura militar no Brasil, momento de brutal ameaça à liberdade de expressão e de perseguições, desaparecimentos e assassinatos. Parte da ficção literária daquele contexto se dá pelo viés de um engajamento explícito, como “O que é isso, companheiro?” (1979), de Fernando Gabeira. O tema é largamente explorado pela crítica Flora Sussekind no hoje clássico “Literatura e vida literária” (1985), em que identificava nesse tipo de narrativa uma “vontade de verdade”, que redundaria em espécie de armadilha documental, pelo excesso de certezas. A autora constatava que o romance nassariano seguia por outra trilha, em que a linguagem foge da referencialidade e aposta em um dizer indireto. 
 
Nassar problematiza o tema do autoritarismo de modo oblíquo, traduzindo no discurso contestador da descendência uma forma de recusa da lei. Nesse duelo com a autoridade da palavra paterna, André se apresenta como descendente da figura bíblica de Caim, na “insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem (...)”. 
Romper, blasfemar e profanar são ações decisivas nessa parábola do filho pródigo às avessas. Na arquitetura do texto, Nassar se apropria da palavra alheia, surgida em citações de fragmentos autorais sem identificação, a exemplo de Thomas Mann, André Gide, Walt Whitman e do verso de Friedrich Novalis repetido pelo pai – “estamos indo sempre para casa”. Sem culpa, a poética nassariana pratica o saque discursivo e, barrocamente, faz lembrar Lope de Vega: “Todos furtam: paciência”, afirmou o poeta espanhol dos seiscentos.
 
Os gestos de contestação da autoridade (das Sagradas Escrituras, da lei, da literatura) reconhece a força de todos esses discursos, ao mesmo tempo que os devora e desestabiliza. Lugar de furto e manipulação, a palavra em Nassar acena para a ambiguidade, e seu manejo pertence a André. A despeito do movimento de ruptura, o protagonista no último capítulo acaba por transcrever as sentenças paternas, homenageando sua memória. Separado por parênteses, o bloco narrativo final confere dubiedade ao texto, devolvendo o filho desgarrado ao espaço de poder patriarcal que tanto contestou. Entre familiaridade e estranheza, o triunfo seria enfim ocupar o lugar do pai à mesa?
 
Há cinco décadas temos o privilégio de ler esse romance magistral, em páginas que transbordam, comovem e revoltam. Ao lembrar sua estreia, fica o desejo de que surjam novas leituras atentas à linguagem engenhosa do escritor e às suas temáticas, atualizando o olhar sobre a obra - não faltam elementos que o conectem ao nosso conturbado presente, a começar pelas alarmantes taxas de feminicídio e a crescente adesão a discursos autoritários. 
 
“Em literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias”, afirmou Nassar em célebre entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira do IMS, em 1996. Passado meio século, a seta dirigida ao coração dos leitores segue afiada. Resta a nós acusar o golpe e aceitar o convite para o mergulho nesse universo impregnado de seiva vital. 
 

Sobre o autor 


Raduan Nassar nasceu em novembro de 1935, na cidade paulista de Pindorama, onde passou a infância. Adolescente, foi com a família para São Paulo, onde cursou direito e filosofia na USP. Exerceu diversas atividades e estreou na literatura em 1975 com “Lavoura arcaica”, adaptado para o cinema em 2001 pelo diretor Luis Fernando Carvalho em filme estrelado por Selton Mello, Raul Cortez e Simone Spoladore. A novela “Um copo de cólera” ganhou versão cinematográfica em 1995, dirigida por Aluizio Abranches, com Alexandre Borges e Julia Lemmertz. Raduan tem livros traduzidos em diversas línguas e recebeu o prêmio Camões em 2016. Em 2021, ganhou o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de São Carlos.

“No Lavoura eu cavoquei muito longe. A coisa foi meio complicada, mesmo se só levei uns oito meses para escrever, tudo somado. Nos anos 60, eu andava entusiasmado com o behaviorismo, por conta de um dos cursos de psicologia que eu fazia. Daí que tentava um romance numa linha bem objetiva. Só que em certo capítulo um dos personagens começou a falar em primeira pessoa, numa linguagem atropelada, meio delirante, e onde a família se insinuava como tema. Tudo isso implodia com o meu esqueminha de romance objetivo. Diante do impasse, abandonei o projeto, o que coincidia também com minha ida pro jornal. Quando deixei o jornal alguns anos depois, retomei aqueles originais, mas logo acabei me debruçando em cima daqueles capítulos em primeira pessoa, e desprezando todo o resto. Sem hesitar, transformei um velho, que ouvia aquela fala delirante, em irmão mais velho do personagem que falava, e foi aí que começou a surgir o Lavoura.”  

Raduan Nassar, em entrevista ao “Cadernos de Literatura Brasileira”, publicado em setembro de 1996 pelo Instituto Moreira Salles  
 

STEFANIA CHIARELLI é professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Suas publicações mais recentes são o volume “Epigramas críticos” e a coorganização da coletânea “Histórias de água: o imaginário marítimo em narrativas brasileiras, portuguesas e africanas”.
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