Tiago de Holanda*

Especial para o EM

 

No ensaio “Visão de Graciliano Ramos” (publicado em 1942), o crítico Otto Maria Carpeaux avalia que o autor alagoano obtém “um tipo diferente de romance” em cada um dos seus primeiros livros: “Caetés” (1933), “S. Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas secas” (1938). Em outro ensaio, “Ficção e confissão” (1955), Antonio Candido observa que o escritor, a cada romance, “esgotava uma direção, dizia nela o que podia e queria; em seguida, deixava-a por outra”. No vasto acervo de estudos dedicados a Graciliano, é comum que seja ressaltada a variedade da sua obra, não apenas da romanesca.


Uma nova direção, um escritor novo, surge (ao menos, pode surgir) em todo ato de leitura. A crítica especializada – feita dentro e fora das universidades, difundida por livros, sites, vídeos, podcasts e outros meios – contribui para se multiplicarem Gracilianos, irredutíveis a alguma unidade, embora vinculados ao mesmo nome. Na inumerável heterogeneidade, porém, é possível distinguir duas amplas linhas de pensamento, de variação. Trata-se de uma díade contraditória, traçada quanto à seguinte indagação: o que o autor faz com aquilo que é percebido como real? O que sua obra faz com o(s) mundo(s) que ela tematiza?


Retrato crítico

 

Segundo a linha mais frequente, uma função (talvez a principal) da escrita literária é expor, precisa e criticamente, elementos da realidade e, em particular, problemas da sociedade brasileira. A opinião de que Graciliano Ramos, com extraordinário engenho estético e visão perspicaz, cumpre tal papel foi e é decisiva para o autor ser integrado ao cânone nacional. Nesse modo de interpretar, o significado e o valor de uma obra – sua maior ou menor “expressividade” – subordinam-se àquilo que, numa operação de leitura, é aceito como mundo real, ainda que este parâmetro não se explicite. Aliás, o que é admitido como real não pode ser colocado sob suspeita, como se correspondesse ao real “em si mesmo”.


Alguma dúvida somente geraria um processo de verificações, após o qual a atividade crítica, pretensamente abrigada contra a inverdade, se reenviaria à obra literária e à questão de o material escrito ajustar-se ou não ao que tematiza. A ideia desse ajuste pressupõe o uso (atual ou virtual) de palavras perfeitamente decifráveis, unívocas.

 



 

Em tal padrão de leitura, portanto, o texto lido é constantemente “devolvido” à (suposta) realidade à qual é cotejado. O retorno seria afirmado na obra mesma – esta seria uma representação exata, ainda que associada a um olhar peculiar, não reputada por simples documento – ou executado a despeito de a obra ser julgada deformadora, inadequada. A novidade da criação literária, a potência criadora, é desconsiderada ou, no mínimo, enfraquecida, controlada, pois o trabalho analítico reafirma seu próprio modelo do que seria o real.


Essa perspectiva é adotada por Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido nos ensaios citados, dois dos mais prestigiados estudos sobre Graciliano. Apesar de qualificar os romances como uma série de experimentações, Carpeaux leva-os a espelharem as mesmas referências, divididas entre uma dimensão exterior (designada como “mundo das coisas”) e outra interior, onírica, na qual a primeira é deturpada. Já Candido, embora procure caracterizar as várias direções dos romances – inclusive, os modos de escrever, os “processos literários”, como os chama –, faz com que elas sejam redutíveis à orientação em que o texto ganha sentido por exprimir dados reais.

 

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Estes, segundo o crítico, mostram-se tanto em sua fisionomia objetiva quanto através de ângulos subjetivos singulares. Logo, pode-se concluir que os ângulos – até mesmo o olhar subversor atribuído ao narrador de “Angústia” – apenas revelam possibilidades objetivas, antes ocultas. Na opinião de Candido, as realidades fundamentais, de que deriva toda a produção romanesca, estão registradas em duas obras tradicionalmente classificadas como memorialísticas: “Infância” (1945) e “Memórias do cárcere” (1953).


Recriação interminável


Em outra linha de pensamento, não se espera que a literatura – em particular, a obra de Graciliano – exiba determinações inerentes ao mundo real e, especificamente, ao Brasil. Considera-se que a produção literária desfaz o que é percebido como real; este é usado como material de criação, o que implica que seja, a um só tempo, retomado e invalidado, afastado e remanejado. Nesse entendimento, a literatura e um mundo observado por ela (por exemplo, “Vidas secas” e aspectos do Nordeste brasileiro) servem de contexto um para o outro, de modo que nenhum dos dois elementos seja definível isoladamente.

 

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Na mútua contextualização, não há um dado que possa ser exprimido, alguma coisa para a qual se deva buscar (ou se tenha conseguido) uma fatura linguística adequada. O mundo ocupa posição ambígua, dentro e fora do texto que o focaliza, é objeto da escrita e configurado no tecido verbal. Pode-se dizer, ainda, que o mundo não está dentro nem fora do texto, pois é algo por vir, múltipla virtualidade que espera ser imaginada na variável experiência da leitura. Um dos estudos em que se pode identificar essa orientação crítica é “Corpos escritos” (1992), de Wander Melo Miranda – apesar de o livro pender, em alguns trechos, para a linha descrita na seção anterior. Miranda comenta maneiras pelas quais Graciliano, em diversos livros, cava um indissolúvel vão entre elaboração textual e dado empírico. “O texto postula-se e se efetiva como diferença e não como repetição”, constata.


Quanto a “Memórias do cárcere”, Miranda nota que o autor, ao rememorar o período (de 1936 a 1937) em que foi um dos presos políticos do governo de Getúlio Vargas, caracteriza sua vivência como inverossímil, absurda, inconcebível: o narrador mostra recriar, num processo potencialmente infinito, aquilo que foi vivido e, portanto, reinventar a si mesmo. Em tal perspectiva, o ato de leitura sempre pode refazer, reviver – preservar do esquecimento, portanto –, a luta contra os “mecanismos de repressão político-social” (como os define Miranda) constituintes da prisão.

 

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Em outra publicação, “O livro agreste” (2005), o pesquisador Abel Barros Baptista ajuda a perceber como a maior parte da crítica dedicada a “S. Bernardo”, divisando em Paulo Honório um representante de certas condições econômico-sociais, deixa de lado elementos que dificultam ao romance refletir realidades prévias. Ao demonstrar que o narrador-protagonista é atravessado por tendências contraditórias, Baptista diverge da tradição que o explica como consumado capitalista, unificado pela vontade de possuir, de dominar. O crítico destaca, por exemplo, que Paulo Honório, quando elege Madalena como esposa, denota ceder a uma motivação que “ele não entende nem domina”.


Como Baptista pondera, a literatura – não apenas a de Graciliano – resiste a tornar-se uma superfície transparente, um meio para que apareça algo independente dela. O texto literário particulariza-se por remeter a objetos que não terminam de ser (re)definidos. Ao ultrapassar o já determinado, a obra salienta que o real resiste a ser essencializado, contido por uma ou outra maneira de demarcá-lo. Regras vigentes, percepções atualmente aceitas, não totalizam a realidade, não encerram o campo do possível.


Ao se indagar o que Graciliano faz com os mundos que tematiza, não é justificável que se lhe atribua – e, pois, que a atividade crítica atribua a si mesma – uma percepção universalmente válida, fundada no real “em si mesmo”. Em sua força criativa, o escritor recoloca o mundo como produção aberta e convida a leitura a experimentar essa abertura.

 

* Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG, com uma tese sobre a obra de Graciliano Ramos

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